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fides

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Tradução de Antonio Carneiro   de excertos da «História dos Dogmas de Elisabeth Gössmann» (pp. 27-37) — Saint-Victor Summa sententiarum - 4. HUGO DE SAN VICTOR, LA « SUMMA SENTENTIARUM » Y RICARDO DE SÃO VICTOR

A doutrina da fé implícita no redentor dos homens a níveis históricos de salvação anteriores, que já conhecemos por Hugo, se defende na Summa sententiarum contra os que pensam de outro modo, formulando-a aliás com mais precisão. É rechaçada a opinião daqueles que em todas as épocas do Antigo Testamento   só quiseram fazer valer como estabelecedora de salvação uma fé explícita no « Christus venturus, moriturus, resurrecturus » e « ad iudicium venturus ». Como devem crer nestes artigos da fé aqueles aos que todavia não puderam de fato ser revelados ? Portanto, é preferível a opinião que reconhece como salvadora uma « fides Christi velata in mysterio » nos homens a níveis históricos de salvação anteriores. Esta doutrina da fé implícita em Cristo soa muito atual e evoca a discussão de hoje sobre a salvação dos não-cristãos. Na Summa sententiarum , a « fides Christi velata in mysterio » se refere não só aos crentes de níveis históricos-salvíficos anteriores, cujo conhecimento da fé era menor que o dos cristãos, como também na Igreja, como o « status gratiae », conta-se com aqueles « simplices », cuja fé se apoia mais na autoridade frente aos que possuem compreensão da fé mais profunda: « Sicut hodie in Ecclesia multi simplices, etsi ita distince nesciant Trinitatem assignare, credunt tamen quia in fide et humilitate adhaerent illis qui et hoc sciunt et credunt ». Mas, essa fé implícita em Cristo está restringida aos homens de níveis histórico-salvadores anteriores e aos simples na Igreja. Os filósofos pagãos, que não se aproximaram do conhecimento cristão de Deus, se excluem expressamente, uma vez que só se fiam da demonstração da « ratio » humana e não pretenderam integrá-la pela revelação no conhecimento completo da fé. Semelhante « ratio » encontra-se, pois, aqui também em contraste com o conhecimento da fé.

A fé implícita em Cristo é, para a Summa sententiarum como para Hugo de São Victor, um privilégio dos « simplices » tanto no sentido histórico-salvífico quanto também no psicológico. É um « creder credentibus », quer dizer, uma adesão respeitosa ao conhecimento da fé que os outros têm, ao que, por assim dizê-lo, entrega-se a própria fé imperfeita. De este modo evoca aqui o tema da solidariedade na fé, se bem que de outro modo que em Abelardo.

A contribuição de Hugo na discussão da chamada definição da carta aos Hebreus consiste, por um lado, em uma detalhada descrição psicológica do ato de fé; por outro, no acento do "ser em si" dos objetos da fé. Por esta razão, em sua interpretação da primeira parte da dita definição « fides est substancia rerum sperandarum », a palavra « substancia » não se aplica todavia em primeiro grau à fé como atividade dos homens mas sim aos conteúdos da fé: « Fide ea quae vere subsistunt bona sperantibus et expectantibus illa ventura creduntur ». Na paráfrase da definição da fé em sua obra De sacramentis legis naturalis scriptae, Hugo, por sua vez, dá importância, como Bernardo de Clairvaux, à certeza subjetiva da fé sobre tudo. estes bens estáveis em si da salvação não formam parte precisamente da base do espírito humano e só em quanto são « substancia » possuem melhor seu próprio ser, se o homem participa deles ou não, e só se convertem em uma realidade humana interior em uma segunda inserção, quer dizer, pela fé. A fé tem a virtude de fazer presente o futuro: « Bona invisibilia quae per actum nondum praesentia sunt, iam per fidem in cordibus nostris subsistunt; et ipsa fides eorum in nobis subsistentia eorum est ». Mas, sublinha-se que a fé nunca pode ser uma possessão humana interior como os resultados da percepção sensorial ou das representações mentais ou das experiências humanas, por exemplo, a alegria, a tristeza, o amor e outros. A fé é no homem algo mais que mera subjetividade humana. A presença humana interior dos objetos da fé está garantida por seu "ser em si" mais além da consciência. humana.

O que disse Hugo sobre a « fides » como argumento é menos fecundo. Outros deram mais importância a esta segunda parte da dita definição da carta aos Hebreus. Hugo se desdobra na interpretação do sentido de « argumentum per similitudinem », que mais tarde de forma parecida foi introduzida e muito difundida sobretudo por Pedro Corbeil ( Pierre de Corbeil, ?- – 1222). Um argumento necessita uma « similitudo » com aquilo para o que argumenta. Mas os objetosda fé transcendem todo « similitudo ». Então, em razão de que semelhança pode a fé ser argumento ? Hugo reduz a fé na função do argumento; portanto, naquilo donde se presume o mais (sendo) a « ratio » e o menos (sendo) a « autoritas », a uma pura fé de autoridade: ... « quia ex fide et devotione praecedentium sanctorum colligimus, quoniam ad illa quae futura praedicantur bona increduli esse non debemus ». Assim, pois, trata-se de novo de uma fé na fé dos outros, uma qualidade de argumento da fé em sentido impróprio. A fé é algo parecido a um argumento, já que desperta convicção como esta, se bem que de outra maneira. Mas, ao mesmo tempo aparece aqui também no conceito « futura bona » a objetivação da espera da salvação concentrada na fé. Sua subsistência no crente é uma antecipação do futuro, e apesar de todas as tendências desprezíveis do mundo, afirma em Hugo com mais energia a existência terrena. A transcendência do cristianismo medieval se relativiza com isto um tanto a favor da realização religiosa do homem, possível já nesta vida. O conhecimento, impossível de dispor dos objetos da fé, que só raramente se manifestam diretamente no valor da experiência mística, não pode, no entanto, expressar-se na mentalidade medieval de outra maneira que como uma antecipação do futuro.

A definição da fé própria de Hugo, apresentada independentemente da chamada definição da carta aos Hebreus, soa muito profana e muito teórica-científica. Com a crescente acolhida de Aristóteles tem feito escola em grau surpreendente. Hugo defende a fé como « certitudo quaedam animi de rebus absentibus, supra opinionem et infra scientiam constituta ». Ele vê nela, em oposição à da chamada definição da carta aos Hebreus, não tanto uma explicação da eficácia da « fides » quanto de sua essência.

Esta definição da fé como certeza, ampliada todavia mais pela Summa sententiarum com a palavra « voluntaria », dá ocasião agora a Hugo para desenvolver sua doutrina de participação de «cognitio» e «affectus» na fé. Quando se classifica a fé em conceitos de conhecimento teórico, é mais que mera opinião e menos que rigorosa ciência. Hugo não pôde todavia mostrar como a fé transcende não só «opinio», como também a « scientia », mas sublinhou que esta classificação só compreende parte da fé teológica, a saber, em seu aspecto cognoscitivo, que, não obstante, não representa o próprio nela. A «materia» da fé, se diz, está na «cognitio», sob a qual poderia ser entendido um tanto aquilo que a escolástica tardia chama «intellectus speculativus», mas a «substantia» da fé reside no «affectus». No entanto, é problemático identificar o «affectus» com o entendimento prático. O que significa «affectus» ou «affectio», não se pode declarar só pela doutrina aristotélica posterior do espírito na escolástica medieval. O «affectus» como potência mais afetiva, mas determinante da estrutura da alma humana, dá à fé religiosa a firmeza, quase poder-se-ia dizer originalidade, e a faz se fundir com a natureza humana. Hugo coordena a «substantia» e «materia» da fé com os conceitos agostinianos «fides qua» e «fides quae». « In affectu invenitur fides in cognitione id quod fide creditur. Proptera fides in affectu habet substantiam, quia affectus ipse fides est; in cognitione habet materiam, quia de illo et ad illud quod in cognitione est, fides est ». A grande valorização do afetivo frente ao cognoscitivo chega, pois, até o extremo de que, para Hugo, a «fides qua» é a verdadeira «fides».

Isto permite já contar com que o « intellectus fidei », em Hugo como em Guilherme de Saint-Thierry  , não pode ser uma coisa de compreensão especulativa dos mistérios da fé, mas sim um saborear afetivo de experiências místicas. O crescimento da fé se refere por certo a ambas as coisas «cognitio» e «affectio», mas Hugo atribui a maior importância ao crescimento afetivo, que se mostra na «devotio» e na «constantia». Deste modo, a força purificadora da fé é, como em toda tradição agostiniana, o caminho para o « intellectus fidei » afetivo-emocional.«Devotione autem mundatur et purificatur (sc. totus homo), ut mundo corde iam quodammodo praegustare inicipiat id ad quod fide et devotione cognoscendum manifestat ». Esta é a expressão especial que o « intellectus fidei » acha nos teólogos místicos do século XII, sobretudo na escola dos vitorinos. Não só a faculdade cognoscitiva do homem é de importância para a realização do « intellectus fidei », como todo o fundo do espírito. Mas, Hugo tampouco ignora o esforço espiritual que é preciso para a fé. Tanta compreensão tem para os cristãos simples quanto pouca compaixão para com os cristãos rotineiros. Para estes nega a autêntica fé, ainda quando realizem a vida sacramental. A razão é que não se esforçam em dar conta de sua fé:

« Quamvis fidei christiane sacramenta cum caeteris fidelibus usu percipiunt, quare tamen christianus sit homo vel quae spes christiano sit in expectatione bonorum futurorum, non attendunt. Hi, quamvi nomine fideles dicantur, re tamen et veritate longe sunt a fide ».

Hugo trata também em sua Didascalicon da necessidade de poder dar conta da fé e assim vencer, no possível, a situação de « simplicitas ». Aqui se perfilam já claramente as três funções da « ratio » para a fé, que mais tarde se acharão na escolástica medieval, sobretudo em Guilherme de Auxerre, a saber, a defesa da fé a instrução dos simples e o próprio aprofundamento na fé.

O homem necessita, segundo Hugo, para ser um crente, alguma experiência religiosa, ainda que só seja a de sua própria imperfeição e debilidade, que aspira a transcender, remetendo sua fé à dos outros. esta curiosa ideia de uma substituição na fé, que se refere sobretudo ao « intellectus fidei », impede o mútuo isolamento dos crentes simples e daqueles que ao mesmo tempo creem e entendem o que creem. Pela solidariedade de uns para om outros chegam também os « simplices » à realização de sua vida terrena. Semelhante compreensão sociológica-salvífica da fé na escola dos vitorinos fecha o passo a todo gnosticismo  . Pelo demais, também segue caracterizada pela obscuridade e pela promessa a situação da fé dos que conseguiram a compreensão da fé:

« Quod ergo videmus nunc per speculum in aenigmate, sacramentum est ad illud quod videbimus facie ad faciem in manifesta contemplatione...Imago in speculo fides in corde tuo... Qui fidem non habent nihil vident; qui fidem habent iam aliquid videre incipiunt, sed imaginem solam. Si enim fidelis nihil videret, ex fide illuminatio non essset, nec dicerentur illuminati fideles... Fides ergo sacramentum est futurae contemplationes ».