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Yates Kircher

domingo 31 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Frances Yates  Giordano Bruno   e a Tradição Hermética
Excertos da tradução de Yolanda Steidel de Toledo
Hermetistas reacionários: Atanásio Kircher  
Deixando de lado o impenetrável tema das "confraternite ed associazioni variamente caratterizzate", como designou E. Garin [1] os canais esotéricos nos quais o hermetismo perdurou depois de fixada a data de "Hermes Trismegisto", consideremos agora uma massa considerável de obras publicadas nas quais, como em Fludd  , a data de Trismegisto é tranquilamente desconsiderada, e a síntese hermético-cabalística da Renascença é preservada como que sobre alicerces ilesos.

"To thee belongs the fame of Trismegist
A righter Hermes; th’ hast outgone the list
Of’s triple grandure. . ." [2]

Esses versos, endereçados ao jesuíta Atanásio Kircher por um admirador inglês, servem de epígrafe para a vasta obra a respeito dos hieróglifos, o Oedipus aegyptiacus [3], publicada em 1652; são um reflexo da sua reputação e preparam-nos para as inúmeras citações do Pimandro de Ficino   e do Asclépio, com que salpicou seus extensos tomos. Kircher fixa a data de Trismegisto nos termos de Abraão, [4] acreditando que o egípcio fosse o autor das obras a ele atribuídas. Ele tivera a presciência da Trindade, que, no entanto, não definira com precisão, embora não se possa negar que escreveu sobre o assunto antes e melhor do que qualquer outro gentio. [5]

A grande paixão de Kircher foram os hieróglifos egípcios [6] e o seu significado. Ele dá prosseguimento à tradição renascentista da interpretação dos hieróglifos como símbolos que encerrariam verdades divinas ocultas, expandindo-a com uma pseudo-arqueologia. Essa obra imensa, na qual floresceu pela última vez a exuberante erudição renascentista sobre os hieróglifos, apareceu numa data tão tardia que sem demora ficou superada pela descoberta da verdadeira natureza dos hieróglifos. [7] Para manter o pensamento sobre os hieróglifos na linha renascentista, foi absolutamente necessário conservar a crença em Hermes Trismegisto, pois como um antiquíssimo sacerdote egípcio sua sabedoria estava oculta nos hieróglifos egípcios e nas imagens dos seus deuses. Kircher escreveu páginas interessantes onde relaciona as definições de Deus do Corpus hermeticum   com os símbolos egípcios. Assim, depois de citar o início do Corpus hermeticum IV, sobre Deus, concebido como o criador imanente de um mundo que, por assim dizer, é o seu corpo, e o Corpus hermeticum V, sobre Deus concebido como latente no mundo, Kircher prossegue, com a ênfase habitual de um hermetista religioso, exclamando que nenhum cristão ou teólogo poderia ter falado de Deus com maior profundidade, acrescentando que todas essas coisas estavam ocultas nos hieróglifos. [8] Ambas as citações seguem a tradução latina [9] de Ficino, que foi utilizada do mesmo modo pelos renascentistas especialistas em hieróglifos. A tradição renascentista, com as suas interpretações dos hieróglifos como verdades relativas a Deus e ao mundo, moldou a religião hermética do mundo durante toda essa época — e atingiu seu clímax, bastante tardio, nas obras de Atanásio Kircher. No fim do Oedipus aegyptiacus, numa explosão derradeira de hermetismo, Atanásio Kircher expressa a crença central na sua obra sobre os hieróglifos.

"O egípcio Hermes Trismegisto, o primeiro a instituir os hieróglifos, com o que se tornou o príncipe e o ancestral de toda a teologia e a filosofia egípcias, foi o primeiro e o mais antigo entre os egípcios, e o primeiro a pensar com acerto nas coisas divinas; gravou a sua opinião para toda a eternidade em pedras duradouras e rochas imensas. Desde então, Orfeu, Museu, Lino, Pitágoras, Platão, Eudóxio, Parmênides  , Melisso, Homero  , Eurípides e outros aprenderam noções sobre Deus e sobre as coisas divinas. . . E esse Trismegisto foi o primeiro que, no seu Pimand.ro e no seu Asclépio, afirmou que Deus é Um e é Bom, e os demais filósofos o seguiram". [10]

Assim, os hieróglifos e a Hermética seriam criações de Hermes Trismegisto, nas quais teria adotado o mesmo ponto de vista sobre as coisas divinas que foi imitado por todos os poetas e filósofos da Antiguidade. A luz dessa crença profunda, Atanásio Kircher interpretou os monumentos e obeliscos egípcios como se neles estivessem registradas em hieróglifos as verdades do hermetismo ficiniano.

Kircher se preocupava muito com Ísis e Osíris, os principais deuses egípcios. Numa das discussões sobre o significado deles, declarou:

"O divino Dionísio atesta que tudo quanto foi criado nada mais é do que um espelho que reflete para nós os raios da sabedoria divina. Eis por que os sábios do Egito fingiram que Osíris, depois de encarregar Isis de tudo, ficou pairando invisível no mundo. Que mais isso pode significar, salvo que o poder do Deus invisível penetra intimamente em tudo?" [11]

Aqui se combina a divina imanência egípcia com o misticismo pseudo-dionisíaco da luz, combinação que resulta no agudo senso do divino nas coisas, tão característico do hermetismo renascentista. Para Kircher, Ísis e Osíris têm um significado que, entre os filósofos da Renascença como.Giordano Bruno, é chamado "pan-psiquismo".

A paixão de Kircher pelo Egito o conduziu às complexas pesquisas geográficas no decorrer das quais localizou uma cidade egípcia chamada Heliópolis, ou "Civitas Solis", a Cidade do Sol. Afirmou que os árabes lhe davam o nome de "Ainschems", isto é, "o olho do sol", e que no Templo do Sol dessa cidade havia um espelho maravilhoso, construído com grande arte para refletir os raios do sol. [12] Aparentemente, essa é a atmosfera miraculosa da cidade de Adocentyn, a versão árabe da Cidade do Sol do Picatrix, embora Kircher não cite essa obra nem estabeleça qualquer associação entre Heliópolis e as profecias do Asclépio. Ainda assim, as suas observações confirmam a ideia de que a Città dei Sole, de Campanella, era em última análise de origem egípcia.

Kircher explica o sacerdócio egípcio (baseado principalmente numa citação de Clemente de Alexandria  ), [13] as leis dos egípcios, [14] o amor do povo pelo rei e a monarquia egípcia como representante da ideia do universo, [15] a filosofia dos egípcios e a doutrina platônica das ideias originárias do Egito (via Hermes), [16] a "mecânica" dos egípcios [17] ou a sua ciência aplicada e, finalmente, a magia do Egito. [18] E isso nos conduz à questão de saber se, no tardio prolongamento do egipcianismo renascentista, derivado em última análise do culto da Hermética de Ficino, ainda havia lugar para a magia.

Há uma citação do De vita coelitus comparanda no Oedipus aegyptiacus [19] que é exatamente a passagem onde Ficino explica a versão egípcia da cruz. Kircher começa declarando que Hermes Trismegisto inventou a forma da cruz egípcia, a crux ansata, a qual batizou de "cruz hermética". A citação de Ficino é seguida de uma dissertação longa e extremamente complexa [20] sobre a cruz hermética, sua relação com o mundo e seu poder de atrair para a terra influências celestes. A cruz egípcia ou hermética, segundo Kircher, era um "amuleto muito potente"; era um "caráter" fabricado com habilidade magnífica que indicava o caminho da única luz; e Marsílio Ficino teria descoberto o seu poder. [21] Kircher concorda, portanto, com Ficino quanto ao poder mágico da cruz egípcia, e a explicação erudita e astrológica que ele próprio lhe dá é um prolongamento da obra ficiana, à qual Kircher, por um singular lapso de linguagem, chama De vita coelitus propaganda. Não faz, nessa passagem, comparação com a cruz cristã, embora tal comparação esteja explícita em algumas das suas interpretações dos monumentos egípcios.

Por exemplo, aos hieróglifos do obelisco de Heliópolis, [22] que incluem diversas representações do que Kircher chama cruz egípcia, atribui-se o significado do obelisco central, no qual há uma cruz cristã e um sol (figura 16b). A interpretação de Kircher dos hieróglifos do obelisco [23] é permeada pela influência do De vita coelitus comparanda de Ficino. Graças a uma intricada argumentação, ele faz a sua interpretação hermético-ficiniana dos hieróglifos concordar com a cruz cristã, que tem no centro o Sol e a Trindade. Toda essa interpretação nada mais é do que a expressão em termos hieroglíficos do hermetismo religioso; "Hermes Trismegisto" escrevera em hieróglifos, no obelisco dedicado ao sol, as mesmas verdades que contêm escritos herméticos, com a presciência do cristianismo e da Trindade, e com a cruz mágica egípcia que prenuncia a cristã, como no De vita coelitus comparanda de Ficino.

Devemos lembrar que Giordano Bruno tinha ideias próprias a respeito das formas da cruz crista e egipcia, fundamentadas numa passagem do De vita coelitus comparanda e sobre as quais os inquisidores o interrogaram. [24]

O grande teste da magia é a passagem do Asclépio que descreve como os egípcios introduziam demonios nos ídolos com artes mágicas. Kircher cita duas vezes essa passagem; na primeira transcreve-a totalmente, inclusive a parte do "Lamento", sem qualquer desaprovação; [25] isso ocorre na parte do livro onde ele descreve o Egito e a sua vida como historiador e arqueólogo. A segunda citação, apenas uma paráfrase ou um resumo da passagem sobre a feitura dos ídolos, aparece num trecho relativo à magia egípcia no qual Kircher expressa uma viva desaprovação por tais "artes" de magia perversa e diabólica rejeitando-as e tachando-as de "Trismegisti impia doctrina". [26]

Em vista de tão viva condenação, seria de presumir que Kircher, ao apresentar sua lista das imagens mágicas dos decanos, [27] inspirada na passagem do Asclépio sobre esses mesmos decanos, [28] não tivesse por tais imagens mais do que um interesse acadêmico e inofensivo. Não é fácil aquilatar as concepções de Kircher. Seus instintos eram os de um historiador ou de um arqueólogo, [29] mas como vivia intensamente envolvido na atmosfera hermética, sua abordagem de tais assuntos não podia ser inteiramente desapaixonada. Ele desaprovava definitivamente a magia diabólica. Por outro lado, interessava-se vivamente pelos meios mecânicos com que os egípcios animavam as estátuas, com roldanas e outros engenhos [30] que provocavam o interesse intenso e entusiástico dos sacerdotes egípcios.

Kircher era um adepto da magia natural. No seu Ars magna lucis et umbrae, [31] livro do qual reproduzimos anteriormente a página de rosto, há um trecho sobre a Magia lucis et umbrae; essa magia é descrita não como coisa diabólica, mas sim natural. [32] O trecho se encerra com extáticos capítulos sobre o que disseram o Pseudo-Dionísio   e Hermes Trismegisto a respeito da luz, [33] reminiscentes de outros trechos similares de Patrizi sobre o tema da luz.

Além disso, Kircher foi um cabalista de enorme erudição; empreendeu, como fez Pico em suas Conclusiones, uma síntese do cabalismo e do hermetismo; o trecho sobre a cabala   no Oedipus aegyptiacus intitula-se "De allegorica hebraicorum veterum sapientia, cabalae aegyptiaca & hieroglyphicae parallela". [34] Ele apresenta um plano-complicado para o arranjo dos sefirots. [35] Mas condena resolutamente a magia cabalística. [36] Kircher era, portanto, um cabalista-hermético de autêntica tradição renascentista, mas precavido quanto à magia e à cabala.

A paixão de Kircher pelas coisas egípcias, combinada com seu intenso hermetismo religioso, torna-o uma figura interessante. O egipcianismo de Giordano Bruno foi demoníaco e revolucionário, e exigia uma total restauração da religião hermético-egípcia. No egipcianismo do jesuíta Kircher, a magia diabólica é severamente condenada, concedendo-se a primazia ao cristianismo; todavia, o Egito e a cruz mágica egípcia têm seu lugar abaixo do cristianismo, do qual depende a polêmica aceitação de Hermes Trismegisto na Igreja.

Se o hermetismo permaneceu tão profundamente enraizado na mente de um piedoso jesuíta até a data tardia do século XVII, isso pode insinuar que o conselho de Patrizi aos jesuítas no sentido de que adotassem o hermetismo não foi tão descabido.

No final do Oedipus aegyptiacus, logo após o hino do Pimandro com o qual se encerra, Kircher introduz um hieróglifo e impõe sigilo e silêncio a respeito dessas sublimes doutrinas. Com efeito, nessa sobrevivência, em pleno século XVII, de um jesuitismo que lembra o entusiasmo hermético-religioso da Renascença, temos talvez outro daqueles canais esotéricos que preservaram a tradição hermética e que explicam por que Mozart podia ser um maçom e ao mesmo tempo um católico.


[1Garin, Cultura, pág. 144.

[2"A ti pertence a fama de Trismegisto, / Hermes mais perfeito; superaste a lista / Na tríplice grandeza..."

[3A. Kircher, Oedipus aegyptiacus, Roma, 1652.

[4Op. cit., I, pág. 103.

[5Ibid., II (2), pág. 506.

[6Do mesmo modo que Ficino (verificar acima, pág. 188), Kircher sustentou que Hermes Trismegisto inventara os hieróglifos.

[7A descoberta de Champollion que finalmente permitiu a decifração das inscrições dos hieróglifos foi publicada em 1824. Sobre a história dessa descoberta, consultar Iversen, The myth of Egypt, págs. 137 e segs. Champollion representa a segunda fase da demolição do mito egípcio; a primeira consistiu na fixação da data da Hermética, por Casaubon.

[8Kircher, op. cit., II (2), págs. 504-505.

[9Consultar Ficino, Opera, págs. 1 842, 1 843-1 844.

[10Kircher, op. cit., III, pág. 568.

[11Ibid., I, pág. 150.

[12Ibid., I, págs. 29-30. Consultar também III, pág. 331, sobre o obelisco "solar" de Heliópolis.

[13Ibid., I, págs. 115 e segs.

[14Ibid., págs. 118 e segs.

[15Ibid., págs. 119, 137, etc.

[16Ibid., pág. 148 (Platão, Pitágoras e Plotino apresentados como seguidores de Hermes Trismegisto); II (2), pág. 323 (doutrina das ideias, originária dos egípcios e caldeus, com referência ao Pimandro e ao Asclépio).

[17Ibid., II (2), págs. 280 e segs. (sobre os engenhos mecânicos de que se serviam os egípcios para as suas construções, ou para produzir efeitos aparentemente milagrosos nos templos, etc.). Os egípcios são considerados os inventores da mecânica, e deles os gregos aprenderam tudo o que sabiam (ibid., pág. 322).

[18Ibid., II (2), págs. 436 e segs.

[19Ibid., II (2), pág. 399; consultar Ficino, pág. 556 (essa passagem é também citada acima, pág. 86, nota 1).

[20Kircher, op. cit., II (2), págs. 400 e segs.

[21Ibid., II (2), pág. 399. Kircher escreveu outra longa passagem a respeito da cruz egípcia no seu Obeliscus Pamphilius, Roma, 1650, págs. 364 e segs., novamente citando Ficino (ibid., págs. 377-378).

Nessa passagem sobre a cruz egípcia, Kircher também cita longamente o Monas hieroglyphica de John Dee, 1564, e reproduz uma versão glorificada do diagrama "monas" de Dee, que lhe pareceu a forma da cruz egípcia (figuras 15 a, b) (Kircher, Obeliscus Pamphilius, págs. 370-373).

[22Kircher, Oedipus aegyptiacus, III, págs. 332 e segs.

[23Ibid., pág. 334.

[24Verificar acima, pág. 392. Bruno, como sempre, entendeu o assunto pelo avesso.

[25Kircher, op. cit.., I, págs. 142-145.

[26Ibid., II (2), págs. 442-443. Kircher já condenara anteriormente a magia egípcia, citando Del Rio (Ibid., págs. 436-473).

[27Ibid., II (2), págs. 182-186. A lista das imagens de decanos de Kircher é explicada em Gundet, Dekane und Dekansternbilder, págs. 370-372.

[28Kircher, op. cit., II (2), pág. 182; verificar igualmente ibid., pág. 519; "Nam in Pimandro & Asclépio Hermes vários deorum ordines, uti sunt Usiarchae Horoscopi, Decani, Pantomorphi.. . vários coros assignat..." (consultar acima, págs. 48-49, sobre as ordens dos deuses egípcios, no Asclépio).

[29A obra de Kircher como arqueólogo, particularmente os seus estudos sobre os coptas, não deve ser desconsiderada; consultar Iversen, op. cit., págs. 92 e segs.

[30Kircher, op. cit., II (2), págs. 280 e segs.

[31Kircher, Ars magna lucis et umbrae, Roma, 1646.

[32Op. cit., pág. 769. A opinião de Kircher pode, portanto, ser idêntica à do jesuíta Del Rio, citado por ele com frequência, que condena a magia diabólica mas louva a natural; consultar Walker, págs. 178-185.

[33Kircher, op. cit., págs. 919 e segs.

[34Kircher, Oedipus aegyptiacus, II (I), pág. 209. O objetivo de Kircher ê uma síntese de todas as tradições místicas. Nesse sentido, ele é um Pico delia Mirandola do século XVII, mas sua síntese abrange fontes desconhecidas de Pico, tais como o México e o Japão, que haviam sido visitados pelas missões jesuítas.

[35Ibid., II (2), pág. 480.

[36Ibid., II (I), pág. 358.