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Tomás Morus / Morus / Thomas More / Thomas Morus

  

TOMÁS MORUS (1478-1535)

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A utopia de Tomás Morus começa por uma crítica à situação econômico-social da Inglaterra de então, em consequência da centralização da riqueza e das terras em mãos de uma aristocracia do dinheiro. Morus descreve como os nobres e senhores, não lhes bastando viver ociosa e esplendidamente, sem favorecer em absoluto o Estado, foram tomados pela febre de ampliar os seus domínios, com o fito de aumentar os seus rebanhos de ovelhas, cuja lã constituía a principal fonte de riqueza do país. O rolo compressor do assenhoramento econômico das terras trouxe como consequência a miséria, a corrupção dos costumes e o crime. A oposição entre os homens não consistia mais numa dicotomia entre a consciência nobre e senhorial, por um lado, e a massa dos servos e trabalhadores, por outro. É frequente encontrar em Morus a assimilação do estatuto da nobreza à mera disposição e fruição predatória dos bens materiais. Em vista desses desacertos inerentes à forma privada da propriedade, Morus sonha com um Estado comunista, onde houvesse total igualdade de bens. Afirma ao utopista: “Estimo que onde quer que exista a propriedade privada e onde se meça tudo pelo dinheiro, será difícil conseguir que o estado atue justa e acertadamente, a não ser que se considere justo permitir que o melhor vá para as mãos dos piores, e que se viva felizmente no lugar em que tudo se acha repartido entre poucos que, enquanto os demais padecem de miséria, desfrutam da maior prosperidade”. E mais adiante: “Por isso, estou absolutamente persuadido de que, se não se suprime a propriedade, não é possível distribuir as coisas com um critério equitativo e justo, nem proceder acertadamente nas coisas humanas”. [202] Na utopia de Morus, suprimidas as vantagens do privilégio econômico, ninguém pode se subtrair ao trabalho. O trabalho produtivo, seja na esfera agrícola, seja nos ofícios urbanos, é um dever imposto a todos os utópicos. Estamos, pois, diante de um estado total do trabalho. Esse já se torna, na consciência de Morus, o único título que faculta ao indivíduo o beneficiar-se das vantagens do convívio social. A atividade agrícola é obrigatória para todos os membros da comunidade, por ser a mais árdua tarefa, havendo rodízio na sua execução. Todos devem ter uma profissão, desde que ninguém poderá estar ocioso, existindo mesmo um funcionário – o Sifogrante – cujo papel é o de cuidar que ninguém se exima de suas obrigações para com o Estado. A vida é totalmente programada, dividindo-se o dia em horas de trabalho, horas de lazer, horas de repouso, horas de divertimento, tudo estritamente determinado, inclusive a hora de levantar, deitar e comer, como se fora um internato de colegiais. O trabalho, entretanto, na República   utópica, nunca é excessivo a ponto de levar à fadiga, à doença e à infelicidade. Apesar dos utópicos trabalharem unicamente seis horas por dia, possuem tudo que lhes é necessário, ou aquilo que reclama seu bem-estar. Sobre esse ponto, esclarece Morus que a abastança dos utópicos é devida ao fato de que, enquanto nas outras nações grande parte da população permanece inativa, “em primeiro lugar, quase todas as mulheres, ou seja, metade da população”, no Estado utópico todos estão comprometidos na grande tarefa do sustento comum. E Morus prossegue, caracterizando a desordem e a inépcia dos outros povos: “Acrescenta-se ainda essa multidão tão grande como ociosa de sacerdotes e dos chamados religiosos. Unam-se a estes os ricos proprietários de terras, denominados vulgarmente nobres e cavalheiros. Somem-se-lhe seus servidores, famosa mescla de truões armados. Agreguem-se finalmente os mendigos sãos e robustos que, para justificar sua preguiça, fingem alguma enfermidade, e resultará que o número dos que produzem com seu esforço o necessário para a vida humana é muito menor do que se crê”. Mas não é só sobre esse aspecto dos ofícios e artes produtivas que a [203] República de Morus se caracteriza como um sistema absolutamente organizado da existência. Entretanto, a finalidade de todo esse esforço social ordenado não é – segundo Morus – a consecução de uma simples felicidade material ou utilitária. Pelo contrário, os utópicos têm à sua disposição a maior parte do tempo para se dedicarem ao cultivo da inteligência e das terras, que consideram o escopo primordial do homem sobre a terra. Para os utópicos – diz Morus – os prazeres do espírito são considerados como os primeiros e os principais entre todos. Apesar de disputarem acerca da virtude e do prazer, e de debaterem se a felicidade do homem radicaria em uma ou em múltiplas causas, propendem em geral a considerar a felicidade humana como unida ao prazer e às doçuras da vida. Esses prazeres, entretanto, e esse sentido festivo da existência derivam de um viver conforme à natureza. O hedonismo reinante na República é, portanto, uma aritmética de prazeres de índole temperada e burguesa, repelindo todas as perspectivas espasmódicas da dor e do prazer. Todos os costumes são determinados pelo sentido do justo, do honesto e do mediano de modo a manter o equilíbrio e o pleno funcionamento do todo. “Vereis – diz Morus -como não existe em parte alguma ocasião para a ociosidade, nem pretexto para a preguiça, nem tabernas, cervejarias ou lupanares e focos de corrupção, nem esconderijos e reuniões secretas, pois o fato de estar cada qual sob a vigilância dos demais, os obriga sem excusa a um trabalho diário ou a um honesto repouso”. A regulamentação da praxis social se estende desde a vigilância dos ofícios e atividades econômicos até a determinação dos trajes e do regime alimentar. Toda a vida coletiva é subordinada a uma legislação uniforme e rígida, visando à manutenção do status utópico. Como essa ordenação é pensada imediatamente como a mais perfeita e inexcedível, a vida humana se nos apresenta como uma reiteração do igual e como um mero sistema administrativo das coisas sociais. Afirma Morus que conhecer uma de suas cidades equivale a conhecer todas, a tal ponto se assemelham entre si. O traçado das ruas, o tipo das casas, o aspecto dos “restaurantes” para onde [204] se dirige a população a horas certas, ao toque dos clarins, tudo isso obedece a uma ordenação fixa e homogênea. Quanto ao domínio de suas convicções filosófico-religiosas, professam uma tolerância religiosa que faculta a diversidade dos credos, evitando desta maneira qualquer conflito ou desacordo interso-cial. Foi o próprio Utopo, imaginário fundador da República utópica, quem – segundo Morus – tomou essa disposição tolerante, por ignorar se Deus, desejando uma multiplicidade de cultos religiosos, tivesse inspirado a alguns homens uma religião e a outra, outra. Entretanto, os utópicos vão se afastando dessas crenças divergentes, para coincidir numa religião única, racional, que se apresenta como a religião definitiva do Estado. Nessa tendência racionalista, admitem os utópicos um numem único, invisível, providencial, que sustenta e mantém a ordem moral do mundo. O pacifismo, que se revela tanto no que diz respeito aos fatos religiosos, como no que concerne à vida pública, é um dos traços que já prefigura, nesse contemporâneo da Reforma, o sentimento ético-social da burguesia. A profissão de fé da tolerância, os ditames de uma vida laboriosa, utilitária e honesta, avessa às aventuras, ao quixotismo, e aos sobressaltos de uma ação orgulhosa e cavalheiresca, são os sintomas do novo ideário que se anuncia nos albores da época moderna. O sentido da vida é dado pelos éthos do trabalho, da transformação da natureza, pela descoberta de aparatos que permitam a afirmação do homem empírico e de sua concepção da existência. Essa concepção nasce do projeto de diluição de todas as formas e instituições que configuravam a estrutura feudal da História. Na dialética do senhor e do escravo, o servo, isto é, o futuro homem livre, se apresentava como o instrumento do senhor, subordinado às finalidades econômicas da classe dominante. A única forma de redenção do servo era o trabalho e através deste empreendeu a sua marcha histórica. Em última análise, não existe uma ética burguesa independente das condições da proficiência do próprio trabalho. Todas as condições impostas à vida, às liberdades franqueadas ao cidadão burguês, formavam um sistema de segurança de um orbe   humano que [205] havia se afiançado no terreno da luta social, pela vindicação de suas qualidades econômicas próprias. Essa subordinação inicial do mundo dos valores aos ditames da utilidade econômica é o ponto de partida dessa progressiva cientifização dos usos e costumes que tem o seu apogeu na constituição da ordem socialista. Se tudo é passível de uma reelaboração técnico-científica, se não existe um mundo de formas substanciais e de modelos valiosos de ação, então tudo pode ser matéria de uma manipulação indefinida e de um projeto industrial universal. [VFSTM  :202-206]