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Schuon Prece Elementos

quarta-feira 27 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Schuon   — Da oração e da integração dos elementos psíquicos

A oração, no sentido mais habitual deste termo, apresenta-se como uma prática que parece implicar um ponto de vista antropomórfico e sentimental: antropomórfico porque parece atribuir a Deus uma natureza temporal e um entendimento humano, e sentimental porque reveste-se de bom grado de expressões que decorrem do sentimento. Ora é legítimo e mesmo necessário conceber a Divindade sob um aspecto mais ou menos personificado, pois Ela o comporta realmente, a nosso respeito; e por outro lado, a atitude do homem pode sem inconveniente, e em função mesmo deste ponto de vista, afirmar-se por meio de modalidades estritamente humanas. A oração assim concebida não implica de modo algum por definição a concepção de um Deus arbitrariamente humanizado e desprovido de sua transcendência infinita, nem implica no homem a presença de um disposição propriamente emocional. De uma maneira geral, esquece-se frequentemente que o sentimento como tal não se identifica com seus desvios, e que ele é ao contrário um fato psíquico normal, suscetível de desempenhar um papel positivo na espiritualidade; o simples fato que o homem em oração faz participar todas as suas faculdades interiores junto a seu elan para Deus, e por conseguinte também sua sentimentalidade natural que ele não saberia eliminar e ter por inexistente, não significa que o sentimento deva ser posto como um fim em si e acarretar por consequencia uma alteração mais ou menos individualista das verdades doutrinais (tal Shri Sankaracharya que implora a misericórdia de Shiva ou que suplica a Mãe divina; estamos aqui longe do erro ingênuo segundo o qual a oração seria incompatível com o jnana "puro"; quanto a Sankara   ou bem ele seria um jnani ou jamais houve um; quando o Homem-Deus ora, sua oração é cósmica; donde o emprego nas orações reveladas, tais como o Pater ou o Fatihah, da primeira pessoa do plural). A oração não poderia ser contrária à intelectualidade mais pura; sem contradizer qualquer verdade transcendente, a oração tem sua razão de ser na existência do eu humano o qual deve, pois que existe, ser canalizado para sua razão suficiente derradeira; em outros termos, o indivíduo enquanto tal não cessa jamais de ser eu, e como a oração é o ato espiritual do eu, ela deve ser praticada enquanto o indivíduo exista, quer dizer na medida que ele ainda guarda a noção de ego — isto toca de perto a teoria das duas naturezas de Cristo — vide Cristologia -. A atitude do homem, na oração, deve permanecer de alguma forma egocêntrica por definição; na meditação metafísica, ao contrário, o homem se situa simbolicamente sob o "ponto de vista" da natureza das coisas.

Por outro lado, quando se diz que as formas são suportes, não se deve perder de vista que um suporte, para ser tal, deve ser inteiramente aquilo que ele é em si-mesmo, e que ele não deve e não pode ser uma "parte" daquilo que ele deve transmitir, assim como uma luz não pode ser o suporte de reflexão de outra luz; a oração deve permanecer, em todos os casos, uma conversação com Deus ou um apelo dirigido a Ele, e só na condição que a oração seja de antemão inteiramente aquilo que é por sua possibilidade mais imediata, quer dizer a tradução e expressão de uma intenção do indivíduo, que ela pode servir de suporte a intelecções que vão além do plano individual. Queremos dizer por isso que a oração não poderia ser substituída pela meditação impessoal e abstrata, pois esta tem uma outra meta imediata que aquela: mas isto não significa de modo algum que a meditação não possa ser integrada, segundo os modos apropriados, na oração, ou que as fórmulas de orações reveladas não guardem um sentido universal.

Tudo aquilo que acabamos de dizer permitirá melhor compreender que não há lugar pra se invocar a qualquer preço a oposição entre a razão e o sentimento; se as faculdades psíquicas relativamente inferiores podem fazer obstáculo à atividade da razão, sede do conhecimento teórico, a razão ela-mesma não constitui desde que se trate do conhecimento efetivo, um obstáculo a esta: pois então é todo o mental como tal que pode se tornar obstáculo, a razão não sendo o reflexo mais direto do Intelecto, o qual está além das contingências cerebrais.


O intelecto do momento que ele é de essência universal, penetra necessariamente todo o ser e engloba todos os elementos constitutivos; pois existir, é conhecer, e todo aspecto de nossa existência é um estado de conhecimento ou, em relação ao Conhecimento absoluto, um estado de ignorância. Se é verdade que a razão é o espelho central do intelecto cujo órgão é o coração sutil, as outras faculdades não deixam de ser igualmente planos de manifestação para o Intelecto; o ser individual não poderia ser integrado no Absoluto sem que todas as faculdades participem na medida necessária a este processo. O conhecimento espiritual, longe de se opor a algum modo de conformidade — ou de participação — qualquer que seja, põe em jogo, ao contrário, tudo aquilo que somos, logo todos os elementos constitutivos, psíquicos e mesmo físicos, de nosso ser, pois nada de positivo não pode ser excluído do processo de transmutação; nada pode se eliminado, e logo é preciso que as faculdades e energias psíquicas, que fazem parte de nossa realidade e cuja existência deve ter um sentido para nós, sejam determinadas e canalizadas pela mesma Idéia diretora que determina e transforma o pensar. Mas isto só é possível na condição de se pôr em campo mesmo, as faculdades psíquicas; não é suficiente considerar estas pela razão e à luz teórica; é preciso realizar a Idéia, na medida do possível, no plano destas faculdades mesmas, universalizando-as de algma forma em virtude de seus simbolismos respectivos (por exemplo, a paixão de Amor se torna o Amor de Deus, a cólera se torna a "santa cólera", ou ainda, a paixão guerreira encontra seu sentido e sua razão suficiente na "Guerra santa"). O homem deve transpor para um plano superior todas as reações positivas que a realidade ambiente provoca nele, lembrando-se, através das coisas sensíveis, das Realidades divinas; poderia-se dizer também que, se é preciso humanizar de certa maneira as coisas espirituais, será preciso igualmente, em sentido inverso, espiritualizar as coisas humanas; o primeiro modo simbólico envelopa a Verdade, e o segundo a revela.

Vimos que a existência mesmo dos elementos individuais ou psíquicos é uma razão suficiente para toma-los em consideração, e devemos faze-lo, por força das coisas, ao contrário de toma-los de uma maneira puramente negativa, pois que estes elementos não são outra coisa que nós-mesmos enquanto somos indivíduos; se podemos ser, enquanto tais, absolutamente espirituais, suposição evidentemente contraditória, seríamos idênticos ao Princípio divino, e nós não teríamos que nos livrar do que quer que seja. Afim de ser mais preciso, adicionamos ainda isto: o homem que, por ignorância ou preconceito teórico, negligencia integrar seus elementos psíquicos a sua atitude espiritual, não os possui menos em si-mesmo, seja que os deixe vagar à vontade ao lado de concepções teóricas e em contradição a elas, seja que os reprima de maneira que adormecem no seu subconsciente como obstáculos mais ou menos latentes. Importa, para toda realização espiritual, que o homem não seja imobilizado, se assim pode-se dizer, em uma porção restrita de seu ego; é preciso ao contrário que todas as possibilidades sejam despertas, recapituladas e canalizadas conformemente a suas naturezas respectivas, pois o homem é tudo isto que o constitui; suas faculdades são solidárias umas às outras. Não é possível abrir a inteligência ao Divino sem enobrecer o ser psíquico e mesmo físico; não há espiritualidade sem grandeza e sem beleza.

Ilustraremos as considerações precedentes pelo exemplo seguinte: em muitos casos, a possibilidade psicológica da infância não chega a seu desabrochar normal; a manifestação necessária desta possibilidade pára, frequentemente, pelos malfeitos da educação escolar, e subsiste como que sufocada ou recalcada, ou semelhante a um núcleo retraído e duro, durante todo o desenvolvimento ulterior do indivíduo, donde um desiquilíbrio psíquico que se manifestará pela aparente ausência de elemento infantil por um lado, e por reações infantis de outro, reações que não sofreria o homem equilibrado, pois sua possibilidade viril integrou a possibilidade infanil, e esta será como um pano de fundo de sua virilidade. A virilidade — virtus — é sempre o aspecto e o fato de um equilíbrio; o homem que só é adulto, ou seja que o é pela exclusão de todo elemento infantil, só o é imperfeitamente e de alguma maneira por incapacidade de permanecer criança; ora, uma incapacidade não é jamais uma superioridade. É preciso ir além do estado infantil pela integração, pela "digestão" se assim se pode dizer, e esta necessidade já é indicada pelo fato de que há uma perfeita continuidade entre as diferentes idades; isto significa que o indivíduo deve gozar em toda idade de tudo aquilo que as idades precedentes comportam de positivo (se a idade infantil não tivesse um aspecto positivo que lhe é particular, que sentido poderia ter o simbolismo do Menino Jesus, e que significaria a palavra do Cristo sobre a santa infância?), e que ele assim reagirá a respeito dos eventos, não de uma maneira que dependerá estritamente de sua idade, mas do pleno equilíbrio, unindo por exemplo a espontaneidade da juventude à ponderação da idade madura; em outros termos, ele possuirá seu "eu" temporal em um estado integral; toda atitude positiva, que seja infantil ou outra, é necessária e preciosa (estas considerações tendem a mostrar que o elemento infantil não é um resíduo mas um elemento necessário, logo legítimo, do adulto, que jamais deixa absolutamente de ser infantil).

A razão, sede do conhecimento teórico, é de substância muito abstrata para representar ela apenas o "eu"; logo é preciso que o sentimento e o desejo, quer dizer aquilo que é mais estritamente o ego, sejam transmutados pela Idéia. Mas esta trasnmutação faz intervir um princípio muito importante que não se deve perder de vista: deve-se distinguir a faculdade psíquica como tal — que é uma limitação — de seus conteúdos possíveis; este conteúdos traduzem a sua maneira a Idéia e são necessários ao equilíbrio psíquico e físico do homem. O sentimento é mais distante da inteligência pura que a razão; no entanto, os impulsos naturais do sentimento são menos prejudiciais — se tanto é que o sejam por si-mesmos — para a intelectualidade que as concepções racionais; estas, quando elas são tomadas muito ao pé da letra por falta de intuição intelectual, arriscam de paralisar as possibilidades de compreensão, enquanto o sentimento, a este respeito, permanece neutro.

A conformidade psíquica, que se funda sobre o simbolismo do sentimento ou do desejo, só é possível, no entanto, na condição de uma conformidade racional por um lado, quer dizer de um conhecimento teórico suficiente, e de uma conformidade da ação por outro lado; e assim deve ser, visto que os elementos mais claramente individuais não podem ter razão suficiente e por conseguinte determinação ideal a não ser pelo Intelecto, e que, por outro lado, estes elementos dependem substancialmente do mundo físico onde se exerce a ação. Pela Idéia, as emoções naturais são por um lado reduzidas às proporções que correspondem ao equilíbrio psíquico do indivíduo, e por outro dotadas de uma essência espiritual, se assim se pode dizer; pela ação, — ou pela participação da ação na Idéia, — logo pela ação simbólica e tornada por assim dizer ritual, as emoções recebem como uma nova substância.


Para o homem enquanto tal, a questão da Realidade divina pode ser posta assim: se os outros indivíduos — ou os objetos, os alimentos por exemplo — possuem uma realidade imediatamente tangível e empiricamente incontestavel, de sorte que é muito natural falar a outro ou se nutrir de alimentos, Deus — que é o sumo Protótipo de toda coisa — possui uma realidade incomensurável em relação àquela que nos cerca e da qual nós vivemos; ora, se é lógico falar a indivíduos, ou comer alimentos, porque uns como os outros são reais, será ainda mais lógico — ou menos ilusório — falar a Deus, que é a Causa infinita de todo bem, e viver de seu Verbo, que é a Essência infinita de toda nutrição.

Dissemos acima que na oração Deus é concebido de algum modo automaticamente como pessoal; Deus se revela com efeito, por força das coisas, sob um aspecto mais ou menos humano desde de que entra em contato com o homem; se assim não fosse, nenhum ponto de encontro seria possível entre Deus e o indivíduo; mas este aspecto humano não pertence de outro modo à Divindade assim como tal cor não pertence à luz. Deus escuta nossas orações e a elas responde sem sofrer em Si-mesmo, obviamente, qualquer modificação; nossas orações não poderiam penetrar em Deus, pois não são nada diante Dele. As respostas divinas são efeitos na mesma proporção da Plenitude absoluta; nós, os reflexos, que somos atingidos pela Causa universal, e não inversamente. "Antes" que tenhamos formulados nossas orações, as respostas divinas "eram" na eternidade; Deus é para nós a Resposta eterna e omnipresente, e a oração não poderia ter outra função que eliminar aquilo que nos separa desta Resposta inesgotável.