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Natureza Sábia

domingo 31 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

NATUREZA SÁBIA E NATURPHILOSOPHIE  
Excertos da tradução em português de Dimas David   Santos Silva, do livro de Steven Wasserstrom  , Religion after Religion

A lei oculta que governa a história é a lei da natureza — não, porém, a natureza empírica e, portanto, não-natural. Ao contrário, a realidade histórica é condicionada pelas leis identificadas na tradição filosófica conhecida como Naturephilosophie. Esta visão foi tornada popular por Corbin   como ’a Ideia Hermética da Natureza Sábia’. A exposição brilhante de Corbin dessa ideia impressionou tão bem a Scholem   que ele a citou, como esclarecimento do simbolismo cabalístico, em dois de seus ensaios de Eranos. De maneira mais ainda contudente, ele concluiu seu primeiro aparecimento em Eranos, com ’Cabala   e Mito’, citando explicitamente Corbin:

Se os símbolos, porém, surgem de uma realidade prenha de sentimentos e iluminada pela luz sem cores da intuição, e se, como já foi dito, todo tempo preenchido é mítico, então certamente podemos assim dizer: que maior oportunidade teve o povo judeu de no horror na derrota, nas lutas e vitórias desses últimos anos, em sua retirada utópica para o meio de sua própria história, de encontrar sua genialidade, sua verdadeira e ’sábia natureza’?

Em outro local, Scholem explica que a ’visão de si mesmo se transforma assim de profética em uma experiência messiânica’. Tal escatalogia retorna, por vezes vigorosamente, na contribuição que Scholem fez ao Festschrift de Corbin. O uso que Scholem fez de ’Natureza Sábia’, com certeza, foi contemplando Corbin explicitamente. Mais uma vez, em seu ensaio ’Walter Benjamin   e Seu Anjo’, ele tomou emprestado de Corbin a ideia para esclarecer a filosofia pessoal de seu caro amigo Benjamin.

A História em si assume propriedade mística quando, encontrando a ’Natureza Sábia’, sua verdadeira personalidade de Antropo se revela. A natureza em si, a totalidade do cosmo, por intermédio da imaginação revelada, pode ser vista assim, como o Grande Homem, Macantropo. Os historiadores das Religiões escreveram amplamente sobre esse tema. A personificação da Natureza é o ensinamento básico da Naturphilosophie, de cuja tradição intelectual eles descendiam. Eliade  , dos três, foi o único a apontar esta noção de forma explícita como central de seu pensamento. Seu livro amplamente usado, O Sagrado e o Profano: A Natureza da Religião, inclui como capítulo central "A Sacralidade da Natureza e da Religião Cósmica". Religião Cósmica era a abreviação que Eliade usava para definir sua teoria sobre a natureza sagrada, da qual ele muito se orgulhava. Assim, por exemplo, no dia primeiro de junho de 1969, ele anotou em seu diário: "Penso que posso me contar entre os poucos europeus que tiveram sucesso em reavaliar a natureza, descobrindo a dialética das hierofanias e a estrutura da religiosidade cósmica". A natureza, quando ’aperfeiçoada’ revela com transparência a transcendência e a liberdade. Para Eliade, a alquimia   "segue implicitamente o ’aperfeiçoamento’ da natureza — que -em última análise, é sua realização absoluta e sua liberdade". Em uma de suas últimas palestras públicas ele enfatizou que "a tendência da natureza é se encaminhar para a perfeição". Ao término, assim como no início, usou uma nota escatológica trazendo essa tendência para o presente, sugerindo a existência de uma Naturphilosophie contemporânea ao sustentar que "tudo no universo possui uma consciência".

Scholem aqui também empacava. Em nome da teologia judaica ele rejeitou a Naturphilosophie."Todo Judaísmo vivo, independentemente de seu conceito de Deus, deve sistematicamente se opor ao puro naturalismo." Com certeza, alguns pensadores panteístas judeus da Idade Média chegaram a ponto de afirmar que "a realidade em si como um todo é a forma mística da deidade" imaginada, por vezes, como Homem celestial, o Antropo Universal. "A fé judaica, porém, em Deus Criador, seguirá ocupando seu lugar, além de todas as imagens e mitos, quando a questão for de escolher uma alternativa: o mundo como Criação e o mundo como algo que se cria por acaso".

Neste aspecto, os compromissos pessoais de Scholem fizeram-no afastar-se, decididamente de Corbin e de Eliade. Por compromissos pessoais, não me refiro ao judaísmo em si mas ao seu projeto político-teológico do sionismo. Nunca é demais enfatizar-se que este fator crucial levou Scholem a rejeitar a soterologia da natureza. Em simples palavras: Scholem foi o único deles que se comprometeu a uma identificação de vida pública com uma comunidade teológica, uma religião corporativa com um perfil político. Ele levou tal compromisso tão a sério que quando confrontado enfrentava a questão real: "Se, quando, e de que forma a religião é uma força efetiva na sociedade". Corbin e Eliade fizeram a escolha pelo esoterismo, que por definição incorre em petição de princípio, evitando assim a necessidade de uma prestação de contas pública.

No fim, Scholem não rompeu os laços de relacionamento e de diálogo com eles, mas parecia ver em sua Naturphilosophie uma espécie de laicização clandestina. "Tal conceito contrabandeia um valor absoluto para um mundo que nunca poderia ter se formado por si, por seus próprios recursos, um valor que aponta subrepticiamente para uma teleologia da Criação que é, afinal, negada do ponto de vista puramente naturalista de visão do mundo." Seu naturalismo pode ser definido com transracionalismo, porém não obstante, aspirava à perfeição da natureza como consumação da história. Sua ciência alternativa, baseada nesta visão, era nada menos que gnose, um projeto de Redenção. Corbin insistia sem a mínima hesitação que tal projeto se dava como uma atividade pública ao erigir uma nova sociedade, mas de forma meio secreta, "na escuridão dos símbolos":

Se certa ciência de nossos tempos vê a Natureza (como cadáver), pode dizer-se que é esta a transgressão que todo esoterismo tenta redimir, e este é o significado de uma história espiritual invisível aos historiadores dos eventos externos... Nenhum esoterismo, até a chegada do Imã, pode ser algo mais que uma testemunha, percebida por um número pequeno, ridicularizada por todos os outros, e sem progressão a não ser na noite dos símbolos.

Falando sobre tal esoterismo, porém o ’puro’, isto é, sobre secularização racional, Scholem respondeu à sua própria questão, isto é, "a se, quando, e de que forma a religião pode ser uma força efetiva na sociedade". Ele o fez não como uma profecia, porém como uma receita. "Considero que um diálogo com tal secularização sobre sua validade, legitimidade e limitações é muito necessário e decisivo." Mutatis Mutantis, o mesmo pode ser dito de suas conversações com Corbin e Eliade.