O conteúdo do mundo é-nos dado a cada um de nós numa ordem tão alheia aos nossos interesses subjetivos que mal podemos por um esforço de imaginação, representar-nos a nós próprios o seu quadro. Nós temos de quebrar completamente essa ordem, — e colhendo dela os itens que nos interessam e ligando-os com outros muito distantes, que nós dizemos “pertencerem-lhes”, poderemos construir os nossos fios definidos de sequência e tendência; para prever percalços especiais e aprontarmo-nos para eles; e para gozar a simplicidade e harmonia, em lugar do que era caos. Não é a soma da vossa atual experiência, tomada neste momento e imparcialmente conjugada, um perfeito caos? O tom da minha voz, as luzes e as sombras dentro e fora do aposento, o murmúrio do vento, o tique taque do relógio, as várias sensações orgânicas que a gente possua individualmente, formará isto, na verdade, um todo? Não é a única condição da vossa sanidade mental no meio de tudo isto, que a maior parte destas manifestações se tornem não existentes para vós e que algumas outras — os sons, espero-o, que eu estou emitindo — evoquem, de lugares na vossa memória que nada têm com esta cena, associações de ideias próprias para se combinarem com elas naquilo que chamamos uma teia racional de pensamento — racional, porque leva a uma conclusão para a apreciação da qual devemos ter algum órgão? Nós não temos órgão ou faculdade para apreciar a ordem simplesmente dada. O [9] mundo real, como é dado objetivamente neste momento, é a soma total de todos os seus seres e acontecimentos agora. Mas podemos nós pensar em tal soma? Podemos nós compreender, por um instante, o que seria um quadro concatenado de toda a existência num espaço definido de tempo? Enquanto eu falo e as moscas zumbem, uma gaivota agarra um peixe na embocadura do Amazonas, uma arvore cai nas montanhas Adirondack, um homem espirra na Alemanha, um cavalo morre na Tartária, e dois gêmeos nascem na França. Que significa isso? A contemporaneidade destes acontecimentos uns com outros e com um milhão de outros disseminados formará um laço racional entre eles e uni-los-á em qualquer coisa que signifique para nós um mundo? Contudo, precisamente uma tal contemporaneidade colateral, e nada mais, é que é a ordem real do mundo. É uma ordem com a qual nós nada temos a fazer exceto fugir dela, o mais breve possível. Como eu disse, nós quebramo-la: partimo-la em histórias, partimo-la em artes, e partimo-la em ciências; e depois começamos a sentir-nos à vontade. Nós fazemos dela mil ordens seriadas e separadas, e sobre qualquer destas nós reagimos como se as outras não existissem. Nós descobrimos entre as suas várias partes ligações a que nunca se deu sentido algum (relações matemáticas, tangentes, quadrados e raízes e funções logarítmicas), e de entre um número infinito destas, nós chamamos, a uma determinada quantidade, essenciais e legiferas, e ignoramos o resto. Essenciais nos são essas relações; mas apenas para o nosso desígnio, sendo as outras relações justamente tão reais e presentes como elas; e o nosso desígnio é conceber simplesmente e prever. Não são essas relações, mas apenas para o nosso desígnio, sendo e simples? Estes são os fins daquilo a que chamamos ciência e o milagre dos milagres, milagre ainda não exaustivamente esclarecido por qualquer filosofia, isto é, que a ordem dada oferece-se ela própria à remodelação. Mostra-se plástica a muitos dos nossos desígnios científicos, a muitos dos nossos desígnios estéticos, a muitos dos nossos desígnios e fins práticos.