Stokes (Naked Self) – individualidade em Kierkegaard

nossa tradução

As articulações de Kierkegaard sobre a individualidade [selfhood] são completamente não substancialistas. De fato, desde o início, o pseudônimo de Kierkegaard, o juiz William, rejeita ativamente a noção de si mesmo como uma substância à qual quaisquer predicados psicológicos poderiam ser atribuídos sem comprometer sua identidade, como se um indivíduo ‘pudesse ser modificado continuamente e permanecesse o mesmo, como se seu si mais íntimo fosse um símbolo algébrico que pudesse significar qualquer coisa que fosse assumida como sendo’ (Either/Or, 2: 215). Os pseudônimos de Kierkegaard localizam a individualidade, mesmo quando mencionada como “espírito”, não na superadição de um ego cartesiano ou alma imaterial ao animal humano, mas em uma dinâmica relacional na qual uma massa de fatos e disposições psicológicos se relaciona consigo mesma e com seu ambiente em modo irreduzível a uma primeira pessoa. É deste modo específico em que esta psicologia se relaciona consigo mesma que um ser humano passa a constituir um si. A individualidade para Kierkegaard, como o intelecto para Fichte, é pura atividade. Hubert Dreyfus observa que uma das coisas que Heidegger retira de Kierkegaard (em grande parte sem reconhecimento) é a “compreensão do si como um conjunto de fatores que são definidos pela postura que esta estrutura assume sobre si mesma” — que, se for verdade, sugere que Kierkegaard foi fundamental na transmissão de um certo tipo de concepção relacional não substancialista do si entre o idealismo pós-hegeliano e a fenomenologia pós-husserliana.

No entanto, as discussões de Kierkegaard sobre o si não soam modernas em seu próprio contexto, mas no nosso também. Como os neo-Lockeanos contemporâneos, Kierkegaard considera a individualidade como um status que se mantém em virtude das relações entre eventos psicológicos: para que um si seja co-idêntico a algum si passado ou futuro, deve ser relacionado a esses eus de uma maneira particular. E o modo específico dessa relação psicológica também tem um sabor moderno. Para os neo-Lockeanos, as formas de continuidade psicológica que ligam os estágios da pessoa a um único indivíduo são (quando especificadas) amplamente passivas: a persistência da memória, propriedades disposicionais, crenças e assim por diante. Para Kierkegaard, por outro lado, um ser humano (considerado como um conjunto de fatos físicos e psicológicos diacrônicos) se torna um si através de um processo de apropriação ativa, referido de várias formas como ‘escolha’ e ‘se relacionando consigo mesmo’ (em forholde sig til sig selv). […]

 

[…] Essa noção de ponto de vista que integra a personalidade e normativamente estrutura a compreensão e as respostas volitivas ao mundo ecoa por toda a autoria de Kierkegaard. Tal afirmação, e a concepção de Kierkegaard de si como um projeto ético escolhido livremente, ressoam com afirmações contemporâneas de que a identidade é uma função de ‘projetos de base’, volições de segunda ordem e auto-descrição normativa. Isso é especialmente importante no que diz respeito à discussão do juiz William sobre a autoconstituição em “Ou/Ou”, pois William vê a escolha de si mesmo dentro de papéis éticos socialmente definidos (especialmente o casamento) como integrando uma massa de elementos psicológicos atomísticos em um coerente, diacronicamente estendido si mesmo. Ao fazer isso, o si adquire como uma ‘história’ — um termo cheio de possibilidades, pois a historie em dinamarquês significa ‘história’ e ‘estória’. Assim, o juiz William serviu como ponto de partida para leituras de Kierkegaard, como as oferecidas por John J. Davenport e Anthony Rudd, que o alinham aos relatos narrativistas contemporâneos da identidade pessoal. Se a leitura narrativista está correta, então os filósofos “contemporâneos” de Kierkegaard em relação à personalidade são figuras como Alasdair MacIntyre e Paul Ricoeur, para não mencionar os muitos ativos proponentes da identidade narrativa que trabalham atualmente.

Original

Kierkegaard’s articulations of selfhood are thoroughly non-substantialist. Indeed, as early as Either/Or, Kierkegaard’s pseudonym Judge William actively rejects the notion of the self as a substance to which any psychological predicates could be assigned without compromising its identity, as if an individual ‘could be changed continually and yet remain the same, as if his innermost being were an algebraic symbol that could signify anything whatever it is assumed to be’ (EO, 2:215/ SKS 3, 206). Kierkegaard’s pseudonyms locate selfhood, even when spoken of as ‘spirit’, not in the superaddition of a Cartesian ego or immaterial soul to the human animal, but in a relational dynamic whereby a mass of psychological facts and dispositions relates to itself and its environment in an irreducibly first-personal way. It is in the specific way in which this psychology relates to itself that a human being comes to constitute a self. Selfhood for Kierkegaard, like intellect for Fichte, is pure activity. Hubert Dreyfus notes that one of the things Heidegger takes from Kierkegaard (largely without acknowledgement) is the latter’s ‘understanding of the self as a set of factors that are defined by the stand this structure takes on itself ’— which, if true, suggests that Kierkegaard was instrumental in transmitting a certain type of relational, non-substantialist conception of self between post-Hegelian idealism and post-Husserlian phenomenology.

Yet Kierkegaard’s discussions of the self don’t just sound modern in their own context, but in ours as well. Like contemporary neo-Lockeans, Kierkegaard regards selfhood as a status that holds by virtue of relations between psychological events: for a self to be co-identical with some past or future self is for it to be related to those selves in a particular way. And the specific mode of this psychological relation also has a modern flavour to it. For neo-Lockeans, the forms of psychological continuity that bind person-stages into a single individual are (when specified at all) largely passive: the persistence of memory, dispositional properties, beliefs, and so on. For Kierkegaard, by contrast, a human being (regarded as a set of diachronic physical and psychological facts) becomes a self through a process of active appropriation, variously referred to as ‘choice’ and ‘relating to oneself ’ (at forholde sig til sig selv). (This split between the human being and the self is also one that, as we’ll see in coming chapters, has emerged as an important feature of the personal identity debate in the last three decades.)

[…] This notion of a viewpoint that integrates the personality and normatively structures one’s understanding of and volitional responses to the world echoes throughout Kierkegaard’s authorship. Such a claim, and Kierkegaard’s conception of the self as a freely chosen ethical project, resonate with contemporary claims that identity is a function of ‘ground projects’, second-order volitions and normative self-description. This is especially salient with respect to Judge William’s discussion of self-constitution in Either/Or, for William sees the choice of oneself within socially defined ethical roles (especially marriage) as integrating a mass of otherwise atomistic psychological elements into a coherent, diachronically extended self. In so doing, selves acquire themselves as a ‘history’—a term pregnant with possibilities, for the Danish historie means both ‘history’ and ‘story’. Thus Judge William has served as the point of departure for readings of Kierkegaard, such as those offered by John J. Davenport and Anthony Rudd, which align him with contemporary narrativist accounts of personal identity. If the narrativist reading is correct, then Kierkegaard’s philosophical ‘contemporaries’ with respect to selfhood are figures like Alasdair MacIntyre and Paul Ricoeur, not to mention the many active proponents of narrative identity working today.

[STOKES, P. The naked self: Kierkegaard and personal identity. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 12-13]

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