Página inicial > Termos e noções > paixão

paixão

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

  

Acaso a determinação fenomenológica da interioridade como afetividade competirá ao eidos, será ela coextensiva ao aparecer originário considerado em sua imediação, se as paixões da alma, no sentido específico que Descartes   dá a esse conceito, designarem somente certos modos do pensamento? Mas de que modo esses modos se circunscrevem, qual é o princípio dessa limitação que faz com que, na dimensão originária da experiência denominada “alma”, apenas certas modalidades dessa experiência mereçam stricto sensu a designação de “paixões”? Como se sabe, na medida em que elas são determinadas pelo corpo. A “paixão”, segundo Descartes, – a alegria, a tristeza – desenvolve seu ser em uma esfera de imanência radical, ela ignora o ver, não o traz em si e nada vê, ela se propõe antes como uma pura interioridade. Mas a afetividade que afeta seu sentir-se a si mesma não é a essência desse sentir nem sua possibilidade, ela depende de coisas totalmente diferentes, da ação do corpo sobre essa subjetividade imanente e da sua determinação extrínseca pelo corpo. Mas no cartesianismo do começo, no cartesianismo da redução, o “corpo” não existe. A “explicação” da afetividade da alma pela ação do corpo sobre ela não é somente absurda, como também não deve ser exposta aqui nem pode sê-lo. Ou então seria a redução provisória? Mas o que significa tal redução, a não ser a leitura daquilo que ela é na subjetividade? Ela significa a fulguração do primeiro aparecer em seu conteúdo fenomenológico puro – o qual é para sempre o que é em seu cumprimento incansável e não deve ser modificado posteriormente por uma decisão arbitrária do filósofo. A afetividade do pensamento, porquanto esse pensamento está só no mundo, pode, então, ser explicada apenas a partir de si e de sua essência própria, mais ainda, ela deve ser compreendida como essa essência e como sua possibilidade mais interior, como a autoafecção na qual o pensamento se revela imediatamente a si mesmo e se sente a si mesmo em si mesmo tal como é. Ela é o sentir originário, o videor no qual o videre faz a prova de si [s’éprouve] mesmo e advém, desse modo, à efetividade de sua realidade enquanto experiência da visão.

Enquanto possibilidade última do pensamento, a afetividade reina sobre todos os seus modos e os determina secretamente. Não vemos esse reino da paixão estender-se estranhamente no próprio Descartes? Ainda que, consideradas no sentido restrito, as paixões sejam somente as percepções que se relacionam com a alma (a alegria, a tristeza), torna-se manifesto, todavia, que “todas as nossas percepções, tanto as que se referem aos objetos que estão fora de nós, quanto as que se referem às diversas afecções de nosso corpo [são] verdadeiramente paixões” [1]. Elas são paixões, segundo Descartes, não somente em razão de sua afetividade intrínseca, mas porque encontram a sua causa no “corpo” – causa conhecida no caso das percepções que se referem aos objetos ou a nosso próprio corpo, causa desconhecida por nós – mas que o Tratado das paixões se propõe justamente nos fazer conhecer – no caso das paixões que “se referem à alma”. Mas já mostramos que a afetividade imanente ao pensamento como sua imanência si mesmo, como seu conteúdo fenomenológico primeiro e irrecusável, nada tem a ver com sua suposta causação por um corpo abatido pelo golpe da redução, quer dizer, não compreendido no campo definido pela fenomenalidade desse conteúdo puro. Aliás, em vez de poder fundar a afetividade dessa subjetividade originária, toda explicação pelo corpo ou por alguma outra causa pressupõe-na, pelo contrário, como aquilo mesmo que se trata de explicar: em seu desdobramento fenomenológico prévio, somente a afetividade pode formular para si esse tipo de questão e saber o que, desde então, vão pôr em movimento o cartesianismo em geral e as Paixões da alma em particular, porquanto se movam fora da redução e em seu esquecimento.

O que, involuntariamente, sem dúvida, mas incansavelmente, Descartes se vê forçado a reconhecer é que a paixão em si na sua efetividade fenomenológica, isto é, em sua afetividade, não depende do corpo. O artigo 19 leva em consideração as percepções que têm como causa não mais o corpo – como são em geral nossas paixões – mas “aquelas percepções que têm por causa a alma”: são “as percepções de nossas vontades”, as quais são ainda denominadas “ações”, “porque a experiência que temos é que elas vêm diretamente de nossa alma e parecem depender tão-somente dela” [2]. Ora, daí que essas vontades, que não são justamente para nós senão enquanto “percepções”, isto é, enquanto “pensamentos” que emanam de nossa alma e não tem nada em comum com o corpo, em vez de afastar delas em razão disso o conceito de paixão, implicam-no, pelo contrário, e são subsumidas [71] por ele. É o que advém desde que se trata de considerar nelas não mais as modalidades específicas do pensamento que elas são enquanto vontades, mas a apercepção originária que as dá a si mesmas na imediação. “Pois é certo que não poderíamos querer algo que não nos seja apercebido pelo mesmo meio que a queremos; e ainda que, no que diz respeito à nossa alma, seja uma ação de querer algo, pode-se dizer que aperceber que ela quer seja nela também uma paixão” [3]. Assim, mais forte que o prejuízo cartesiano que se vai esforçar por desvalorizá-la ao excluí-la como tal da essência pura do pensamento, a afetividade se propõe, pelo contrário, como constitutiva dessa essência, ela é aqui, sob o nome de “paixão”, a aperceptio primordial, a passividade insuperável do aparecer em relação a si mesmo, sua autoafecção imanente que faz dela o que é, o originário aparecer-se a si do aparecer, o “pensamento”.

A sequência do texto é mais do que é estranha, ela traduz, de fato, o retrocesso de Descartes diante de sua descoberta essencial: “todavia, porquanto esta percepção e esta vontade não são, com efeito, senão uma mesma coisa, a denominação se faz sempre por aquilo que é o mais nobre, e assim não se tem, de modo algum, o costume de denominá-la uma paixão, mas somente uma ação”. “Percepção” e “vontade”, todavia, não são, de modo algum, “uma mesma coisa”. Vontade designa uma modalidade do pensamento na qual esse se experimenta [s’éprouve] como a fonte de sua atividade e é, nesse sentido, como causa de si mesma, que ela é uma “ação”. Assim, a vontade, a “ação”, opõe-se a todas as outras modalidades de sua vida nas quais, pelo contrário, a alma faz a prova [s’éprouve] de que “não é ela que as constitui tais como são, mas recebe-as sempre das coisas que são representadas por elas”: são justamente nossas “paixões”. Percepção designa inteiramente outra coisa, a saber, a apercepção imanente originária em virtude da qual cada modalidade da alma, qualquer que seja, é uma modalidade dela. Percepção designa a essência universal do pensamento como consistindo nessa apercepção, tornando-a possível. Ora, é da apercepção que o artigo 19 denomina, em geral, uma “paixão”. O conceito originário de paixão funda tanto as “ações” como as “paixões” e domina a oposição existente entre elas. Seguramente, pode-se dizer também, como faz Descartes, que percepção e vontade “são, com efeito, apenas uma única e mesma coisa”, porquanto uma tal percepção ignore a ek-stasis e porquanto na percepção, enquanto apercepção imanente que consiste no sentir a si mesmo e no sofrer a si mesmo da paixão originária, a vontade, tal como toda e qualquer outra modalidade do pensamento, permanece una consigo o poder que a dá a si mesma na imediação de sua afetividade. [MHPsique:69-71]


LÉXICO: paixão

Observações

[1Les passions de l’âme, FA, III, p. 972 ; AT, XI, p. 347.

[2FA, III, p. 966; AT, XI, p. 342.

[3FA, III, p. 967-968; AT, XI, p. 343, grifo nosso.