Sontag: a doença


Britto & Figueiredo

A DOENÇA É A ZONA NOTURNA DA VIDA, uma cidadania mais onerosa. Todos que nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como cidadãos desse outro lugar.

Quero analisar não como é de fato emigrar para o reino dos doentes e lá viver, mas as fantasias sentimentais ou punitivas engendradas em torno dessa situação: não se trata da geografia real, mas dos estereótipos do caráter nacional. Meu tema não é a doença física em si, mas os usos da doença como figura ou metáfora. Minha tese é que a doença não é uma metáfora e que a maneira mais fidedigna de encarar a doença — e a maneira mais saudável de estar doente — é aquela mais expurgada do pensamento metafórico e mais resistente a ele. Porém é quase impossível fixar residência no reino dos doentes sem ter sido previamente influenciado pelas metáforas lúgubres com que esse reino foi pintado. Dedico esta investigação a uma elucidação de tais metáforas e à libertação do seu jugo.


No século xix, a ideia de que a doença condiz com o caráter do paciente, assim como o castigo condiz com o pecador, foi substituída pela ideia de que ela expressa o caráter. É um produto da vontade. “A vontade se manifesta como um corpo organizado”, escreveu Schopenhauer, “e a presença da doença significa que a vontade mesma está doente.” A recuperação de uma doença depende de a vontade saudável simular “um poder ditatorial a fim de subjugar as forças rebeladas” da vontade doente. Uma geração antes, o grande médico Bichat usou uma imagem semelhante e chamou a saúde de “o silêncio dos órgãos” e a doença de “a sua revolta”. A doença é a vontade que fala por intermédio do corpo, uma linguagem para dramatizar o mental: uma forma de auto-expressão. Groddeck definiu a doença como “um símbolo, uma representação de algo que se passa por dentro, um drama encenado pelo Isso”.

Segundo o ideal pré-moderno de uma personalidade equilibrada, supõe-se que a expressividade deva ser limitada. O comportamento é definido pela sua potencialidade para o excesso. Assim, quando Kant usa o câncer de maneira figurada, o faz como metáfora para um sentimento excessivo. “As paixões são cânceres para a razão prática pura, e não raro incuráveis”, escreveu Kant em Antropologia (1798). “As paixões […] são afetos desventurados que se encontram grávidos de muitos males”, acrescentou, aludindo ao antigo vínculo metafórico entre câncer e gravidez. Quando compara as paixões (ou seja, sentimentos extremados) a cânceres, Kant, é claro, utiliza o significado pré-moderno da doença e uma apreciação pré-romântica da paixão. Em breve, o sentimento turbulento passaria a ser visto de modo muito mais positivo. “Não existe no mundo ninguém menos capaz de esconder seus sentimentos do que Émile”, disse Rousseau — como um elogio.


Pode parecer menos moralista deixar de considerar a doença como uma punição condizente com o caráter moral objetivo e torná-la uma expressão do eu interior. Mas tal concepção termina por revelar-se igualmente ou ainda mais moralista e punitiva. Com as doenças modernas (antes a tuberculose, hoje o câncer), a idéia romântica de que a doença expressa o caráter é invariavelmente ampliada a fim de assegurar que o caráter causa a doença — porque ele não se exprimiu. A paixão se move para dentro, atacando e devastando os redutos celulares mais profundos.

“O homem doente cria, ele mesmo, a sua doença”, escreveu Groddeck; “ele é a causa da doença e não precisamos procurar nenhuma outra causa.” “Bacilos” encabeçam a lista de Groddeck das meras “causas exteriores” — seguidos por “calafrios, voracidade, excesso de bebida, trabalho ou o que for”. Ele insiste em que os médicos preferem “atacar as causas exteriores com profilaxia, desinfecção e assim por diante”, em vez de voltar-se para as causas verdadeiras e interiores, “porque é desagradável olhar para dentro de nós mesmos”. Na formulação mais recente de Karl Menninger: “A doença é em parte aquilo que o mundo fez a uma vítima mas, na maior parte, é aquilo que a vítima fez ao seu mundo e a si mesma”. Tais concepções absurdas e perigosas põem o ônus da doença no paciente e não só enfraquecem a capacidade do paciente para entender o alcance do tratamento médico adequado como também, de forma implícita, afastam o paciente de tal tratamento. Acredita-se que a cura depende sobretudo da capacidade de auto-estima do paciente, uma capacidade já debilitada e posta à prova de forma cruel.

Original

Illness is the night-side of life, a more onerous citizenship. Everyone who is born holds dual citizenship, in the kingdom of the well and in the kingdom of the sick. Although we all prefer to use only the good passport, sooner or later each of us is obliged, at least for a spell, to identify ourselves as citizens of that other place.

I want to describe, not what it is really like to emigrate to the kingdom of the ill and live there, but the punitive or sentimental fantasies concocted about that situation: not real geography, but stereotypes of national character. My subject is not physical illness itself but the uses of illness as a figure or metaphor. My point is that illness is not a metaphor, and that the most truthful way of regarding illness—and the healthiest way of being ill—is one most purified of, most resistant to, metaphoric thinking. Yet it is hardly possible to take up one’s residence in the kingdom of the ill unprejudiced by the lurid metaphors with which it has been landscaped. It is toward an elucidation of those metaphors, and a liberation from them, that I dedicate this inquiry.


In the nineteenth century, the notion that the disease fits the patients’ character, as the punishment fits the sinner, was replaced by the notion that it expresses character. Disease can be challenged by the will. “The will exhibits itself as organized body,” wrote Schopenhauer, but he denied that the will itself could be sick. Recovery from a disease depends on the will assuming “dictatorial power in order to subsume the rebellious forces” of the body. One generation earlier, a great physician, Bichat, had used a similar image, calling health “the silence of organs,” disease “their revolt.” Disease is what speaks through the body, a language for dramatizing the mental: a form of self-expression. Groddeck described illness as “a symbol, a representation of something going on within, a drama staged by the It…”

According to the pre-modern ideal of a well-balanced character, expressiveness is supposed to be limited. Behavior is defined by its potentiality for excess. Thus, when Kant makes figurative use of cancer, it is as a metaphor for excess feeling. “Passions are cancers for pure practical reason and often incurable,” Kant wrote in Anthropologie (1798). “The passions are … unfortunate moods that are pregnant with many evils,” he added, evoking the ancient metaphoric connection between cancer and a pregnancy. When Kant compares passions (that is, extreme feelings) to cancers, he is of course using the pre-modern sense of the disease and a pre-Romantic evaluation of passion. Soon, turbulent feeling was to be viewed much more positively. “There is no one in the world less able to conceal his feelings than Emile,” said Rousseau—meaning it as a compliment.


Ceasing to consider disease as a punishment which fits the objective moral character, making it an expression of the inner self, might seem less moralistic. But this view turns out to be just as, or even more, moralistic and punitive. With the modern diseases (once TB, now cancer), the romantic idea that the disease expresses the character is invariably extended to assert that the character causes the disease—because it has not expressed itself. Passion moves inward, striking and blighting the deepest cellular recesses.

“The sick man himself creates his disease,” Groddeck wrote; “he is the cause of the disease and we need seek none other.” “Bacilli” heads Groddeck’s list of mere “external causes”—followed by “chills, overeating, overdrinking, work, and anything else.” He insists that it is “because it is not pleasant to look within ourselves” that doctors prefer to “attack the outer causes with prophylaxis, disinfection, and so on,” rather than address the real, internal causes. In Karl Menninger’s more recent formulation: “Illness is in part what the world has done to a victim, but in a larger part it is what the victim has done with his world, and with himself.…” Such preposterous and dangerous views manage to put the onus of the disease on the patient and not only weaken the patient’s ability to understand the range of plausible medical treatment but also, implicitly, direct the patient away from such treatment. Cure is thought to depend principally on the patient’s already sorely tested or enfeebled capacity for self-love.

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