Sloterdijk: o impessoal (Das Man) ou o sujeito

Casanova

O que é essa criatura estranha que Heidegger apresenta sob o nome de impessoal [Das Man]? À primeira vista, ela se assemelha a essas esculturas modernas que não representam objetos determinados e em cujas superfícies polidas não se pode identificar uma significaçãoparticular”. Todavia, elas são imediatamente reais e palpavelmente concretas. Nesse sentido, Heidegger sublinha que o impessoal não é uma abstração, por exemplo, um conceito geral que compreendería “todos os eus”; antes, remetería, como ens realissimum, a algo que está presente em cada um de nós. Mas ele frustra a expectativa por personificação, por uma significação individual e por um sentido existencialmente determinado. Ele existe, mas não há “nada atrás”. Encontra-se lá como a escultura moderna não figurativa: real, cotidiana, parte concreta de um mundo; mas em momento algum remete propriamente a uma pessoa, a uma significaçãoreal”. O impessoal é o neutro de nosso Eu: Eu cotidiano, mas não “eu-mesmo”. De algum modo, ele representa meu lado público, minha mediocridade. Possuo o impessoal em comum com todos os outros, é o meu “Eupúblico, e em relação a ele a medianidade tem sempre razão. O impessoal, enquanto Eu inautêntico, se desincumbe de toda decisão própria e pessoal; segundo sua natureza, o impessoal quer se livrar de qualquer peso, quer tomar tudo pelo lado exterior e se ater à aparência convencional. Numa certa perspectiva, é assim que ele se comporta também em relação a si mesmo, pois isso que “ele-mesmo” é, ele o aceita como algo que encontrou entre outras coisas dadas. Assim sendo, o impessoal só pode se compreender como algo dependente, que não tem nada de si mesmo e para si mesmo. São os outros que lhe dizem e lhe dão o que ele é; eis o que explica sua “distraçãoessencial; com efeito, ele se acha perdido no mundo que o encontra logo de saída. Diz Heidegger:

“De saída, ‘eu não ‘sou’ no sentido do si mesmo próprio, mas sou os outros segundo o modo do impessoal. É a partir desse e como esse que, de saída, sou ‘dado’ a mim ‘mesmo’. De saída, o existente humano (Dasein) é impessoal, e na maioria das vezes permanece assim” (Sein und Zeit, p. 129). “Enquanto impessoal, vivo sob o domínio discreto dos outros.” “Cada um é outro e ninguém é si mesmo. O impessoal… é o ninguém…” (Sein und Zeit, p. 128).

Essa descrição do impessoal, com a qual Heidegger conquista a possibilidade de falar filosoficamente do Eu sem precisar fazê-lo no estilo da filosofia do sujeito-objeto, funciona como uma transposição do termosujeito” para linguagem corriqueira, em que ele significa “o submetido”.1

Encontrar-se “submetido” significa: não possuir mais si “mesmo”. Jamais a linguagem do impessoal diz algo de pessoal: apenas participa do “falatório” (discours) universal. No falatório, por meio do qual se diz as coisas que meramente se diz, o impessoal se fecha à compreensão real da existência própria, bem como à das coisas faladas. No falatório, aparece o “desenraizamento” e a “inautenticidade” da existência (Dasein) cotidiana. Corresponde-lhe a curiosidade que se entrega de modo fugidio e “fugaz” ao que a cada vez aparece como novidade. Para o impessoal curioso, mesmo quando “se dedica à comunicação”, não se trata de compreender realmente, mas do contrário disso: de evitar a compreensão, de evitar o olhar “autêntico” sobre a existência (Dasein). Heidegger batiza essa recusa com o conceito de distração (Zerstreuung) — expressão que causa sensação. Se tudo que até agora vimos soa absolutamente atemporal e universal, por meio dessa expressão agora sabemos em que ponto da história moderna nos encontramos. Nenhum outro termo é tão cheio de um gosto específico dos meados dos anos 1920 — a primeira modernidade alemã de grande envergadura. Tudo que ouvimos a respeito do impessoal seria, afinal, inconcebível sem a realidade prévia da República de Weimar com sua febre do pós-guerra, seus meios de comunicação de massa, seu americanismo, sua indústria da cultura e do entretenimento, seu promissor negócio da distração.

É somente no clima cínico, desmoralizado e desmoralizante de uma sociedade de pós-guerra, em que os mortos não têm direito de morrer, pois quer-se tirar proveito político de seu desaparecimento, que um impulso, oriundo do “espírito do tempo”, pode se desviar numa filosofia que considerará a existência (Dasein) “existencialmente” e oporá a cotidianidade à existência (Dasein) “autêntica”, consciente e resoluta enquanto “ser-para-a-morte”. É somente após o crepúsculo dos deuses militares, após a “desagregação dos valores”, após a coincidentia oppositorum nas frentes da guerra de material, em que “bem” e “mal” se transportam reciprocamente para o além, é somente após tudo isso que uma tal “tomada de consciência” do “ser autêntico” se fez possível. É somente essa época que se torna atenta de um modo radical à socialização interna; ela adivinha que a realidade é dominada pelos fantasmas, pelos imitadores, pelas máquinas do Eu exteriorizado. Cada um podería ser um espectro em vez de ser si mesmo. Mas como identificar isso? Quem mostra que é “si-mesmo” em vez de simplesmente impessoal? Isso provoca a devorante preocupação dos existencialistas a respeito da distinção, tão importante quanto impossível, entre o autêntico e o inautêntico, o próprio e o impróprio, o pronunciado e o impronunciado, o resoluto e o irresoluto (que é “simplesmente assim”):

Tudo parece estar autenticamente compreendido, apreendido, dito, mas no fundo não está, ou então parece não estar, e no fundo está. (Sein und Zeit, p. 173)

Original

  1. Na Seção Principal Lógica, examinarei mais a fundo essa “traduçáo” e invesrigarei o que “submeter” e “ser submetido” significam para a teoria do conhecimento. Cf. pp. 469-471; 478-483.[]
  2. Im Logischen Hauptstück gehe ich dieser »Übersetzung« weiter nach und untersuche, was Unterwerfen und Unterworfenwerden für die Erkenntnistheorie bedeutet. Vgl. S. 639-641; 652-659.[]