Entre os representantes da nova mentalidade antimetafísica, destaca-se o médico, filósofo e satirísta Julien Offray de La Mettrie (1709-1751), por seu irônico radicalismo e a agressividade de sua imagem mecanicista do mundo e do ser humano. Mesmo os mais liberais de seus contemporâneos consideravam-no, por seu temperamento anárquico e cético, um excêntrico a quem se acusava de favorecer os excessos físicos e morais. Quando, após a publicação anônima do escandaloso texto L’Homme-machine, no outono de 1747, por Elie Luzac, em Leyden, sua posição ficou insustentável até mesmo na libertária Holanda, ele encontrou refúgio na corte de Frederico II da Prússia, na qual assumiu o papel de bufão epicurista e ateu, e teria morrido, segundo relata a lenda maliciosa, em consequência de um consumo excessivo de patê de trufas. O tratado do homem–máquina — que muitos consideraram o livro mais execrável de seu século — dá provas do novo estilo de pensamento, que não sente nenhuma inibição de traduzir todo o domínio espiritual na linguagem do mecanicismo sem deixar nenhum resíduo relevante. Com isso, o naturalismo anatômico abre seu caminho como discurso antropológico e psicológico dominante. A primeira coisa que se deve saber da alma, segundo essa nova ciência, é que a palavra “alma” é um conceito vazio. O livro de La Mettrie está cheio de motivos cardiológicos e ginecológicos que, em conjunto, rompem com a linguagem tradicional dos mistérios da interioridade.
[…] […] Para o autor, o sistema muscular e circulatório do coração aparece como abstração anatômica; concebido como um órgão per se, ele não passa, por princípio, de um pedaço separável do tecido orgânico; não possui, por si mesmo, nenhuma dimensão intersubjetiva, mas consiste apenas em um potencial automático de movimento, um feixe de ressorts ativadas ao sabor das circunstâncias. Conceber um coração dessa maneira, quer esteja ele extirpado, quer esteja em seu lugar natural, já é situá-lo em uma exterioridade que não pertence a nenhum campo próprio e íntimo e que nenhum sopro de uma esfera humana pode atingir. Por seu próprio modo de ser, ele existe como uma máquina orgânica em um contexto feito de máquinas cooperantes de mesmo tipo. Mas como La Mettrie não está filiado ao dualismo metafísico, ele não permite que seu sujeito esclarecido habite um aparelho corpóreo à maneira de um fantasma cartesiano; o sujeito é ele mesmo uma função da máquina com a qual se identifica — uma máquina que produz, ao lado dos processos fisiológicos não vividos, também um interior vivido. Com essa teoria mecanicista radical, a interioridade é explicada como efeito do exterior, no qual todas as “máquinas”, sejam elas mecanismos ou organismos, existem da mesma maneira. O corpo representado não é um elemento de um interior ou de um espaço de proximidade vivida, mas uma posição em uma geométrica e homogeneizada espacialidade de lugares.1 Que é a anatomia senão a imposição de conceitos físicos de espaço–lugar ao domínio da antiga obscuridade dos corpos, que torna, de início, cada corpo vivo uma black box aos olhos de todos os outros? Seres humanos concebidos dessa forma, como máquinas, continuam sendo capazes do que se chama “relações íntimas”, mas estas, num primeiro momento, em nada alteram o fato de que a teoria materialista radical deve dar precedência à existência individual dos corpos sobre suas relações uns com os outros. As relações entre pessoas-máquinas são, de sua parte, processos mecânicos que podem ter uma face vivida, mas por sua natureza representada pertencem, mais uma vez, inteiramente ao exterior.O exterior concebido por La Mettrie — como lhe imputa com temor a leitura humanista — não pretende ser, todavia, a porta que nos conduz ao inanimado, ao estranho; deve ser entendido como o campo de uma liberdade humana que deve ser reconquistada e reinterpretada. O filósofo comemorava em seus escritos a felicidade de ser uma máquina bem iluminada, porque acreditava ter encontrado uma possibilidade de atender ao interesse por uma liberdade humana bem compreendida precisamente através da natureza maquinal dos seres humanos. Ele depositou esperanças emancipatórias no fato de que máquinas que entendem adequadamente a si próprias escapam das trevas da escravidão imaginária guarnecida pela religião e alcançam o ar livre, o que, na perspectiva sensualista, significa alcançar uma vida plena de gozos, não reprimida por nenhuma moral religiosa convencional. Anuncia-se, assim, uma ética da intensidade. “ Voilà une machine bien éclairée,”2 Para ele, atingir esse exterior era uma precondição de toda emancipação; enquanto a interioridade nascida da teologia só enfatiza como devemos nos enredar em inibições, angústias e renúncias, a exterioridade se apresenta a nós como um campo no qual podemos aguardar o que é verdadeiramente vivo, o intensivo, o Outro como acontecimento, que nos transforma e liberta. Esse motivo conservou-se até hoje nos materialismos radicais não dialéticos da filosofia francesa, em particular no projeto filosófico de Gilles Deleuze.3 Para salvar sua máquina feliz, La Mettrie abandonou os conceitos de Deus e de alma e lançou-se à tarefa de extirpar suas sufocantes excrescências.
Nessa operação, o filósofo perdeu de vista uma questão: se suas máquinas alegremente anárquicas não deveriam se estruturar de uma maneira diversa da de autômatos solitários. E, mesmo depois de ter suprimido as ideias metafísicas de Deus e da alma, o autor poderia ver-se confrontado com o seguinte problema: as máquinas humanas funcionam sempre em proveito de outras, e não apenas na fase do primeiro ajuste, convencionalmente chamada socialização ou educação. Seria razoável supor, também, que máquinas pessoais só têm sucesso em manter-se em marcha numa coexistência bipolar ou multipolar, e em um acoplamento paralelo interinteligente. La Mettrie poderia ter observado que, de maneira geral, os homens-máquinas funcionam em conjunto, e que só são capazes de isolar-se aqueles que conseguem substituir a relação com máquinas sociais presentes por meios suplementares não humanos — tais como espelhos, livros, cartas de baralho, instrumentos musicais, animais domésticos. Com seus arranjos eróticos, Sade já havia composto máquinas de prazer usando muitos indivíduos — é verdade que apenas em copulações mecânicas e empregando seres humanos como partes já prontas e capazes de experimentar prazer.
A dificuldade de conceber seres cujo próprio fundamento consiste em estar imerso em seus semelhantes não se apresenta, porém, apenas para os filósofos mecanicistas modernos. Mesmo quando, na fase inicial do processo teológico que elevou a cristandade à supremacia intelectual, se buscava apreender pelo pensamento como Deus havia se tornado homem, os teólogos se viram diante do embaraço de ter de determinar corretamente a proporção em que se realiza o ingresso de Deus no âmbito do humano. Passaram-se séculos até que a segunda natureza de Cristo, seu peso humano e sua suscetibilidade ao sofrimento físico e mental se impusessem contra a tentação docética ou espiritualizante de considerar o homem–Deus apenas como uma aparição vinda do céu. Só após mortíferos combates em torno desse dogma foi declarado que, para Deus, o caminho até a encarnação passa pelo nascimento mediante uma mãe verdadeira — e, em seu prolongamento moderno, passa também pela simbiose inicial, a necessidade incondicional de que o Eu se forme em interações bem-sucedidas com outros e, por causa de suas falhas factuais, pela psicose religiosa. Se Deus quer tornar-se homem, ele só pode efetivar sua segunda natureza em um homem defeituoso ou em um louco que se declara o filho de Deus. Como desde o século XVII a transformação da máquina em homem tornou-se uma missão intelectual, é preciso exigir também às máquinas que ponham sobre os ombros a cruz da natureza humana. A máquina só pode efetivar sua segunda natureza em loucos que se revelam como máquinas tornadas homens, suscetíveis de sofrimento e, nessa medida, defeituosas. São hoje os homens, enquanto máquinas ontológicas não triviais, que devem satisfazer às exigências de uma doutrina das duas naturezas. Homo totus, tota machina. Em uma cultura técnica, germinam mistérios de um tipo singular: não seria mais razoável admitir que o homme-machine e a femme-machine, ao se abraçarem e depois se soltarem, propõem um ao outro mais enigmas do que, por ora, podem resolver as máquinas interinteligentes? Machina de machina, homo de homine.
- Sobre o conceito de espaço–lugar (Ortsraum) e seu papel constitutivo na representação que os tempos modernos se fazem do mundo, cf. Esferas II, Cap. 8: “A última bola. Para uma história filosófica da globalização terrestre”. Também aí são encontradas as indicações necessárias para a explicação do conceito no System der Philosophie, de Hermann Schmitz.[↩]
- La Mettrie, L’Homme-machine, op. cit. (ver Nota 16 deste Cap. 1), p. 59.[↩]
- Cf. Eric Alliez, Deleuze. Philosophie virtuelle, Paris, Le Plessis-Robinson, Synthé-labo, 1996.[↩]