Em todas as culturas, há sempre grupos de homens que são conduzidos por suas tarefas profissionais a desenvolver diversos tipos de realismo na lida com corpos que estão morrendo ou que foram mortos: o soldado, o carrasco, o padre. Na práxis médica, contudo, constrói-se o mais minucioso realismo em relação à morte: uma consciência da morte que conhece tecnicamente de maneira mais íntima do que qualquer outra consciência a fragilidade do corpo e traz à tona o transcurso orientado para a morte de nosso organismo, quer esse transcurso seja denominado saúde, doença ou envelhecimento. Ancorado de modo semelhantemente artesanal em sua rotina, só o açougueiro possui um conhecimento comparável do lado material de nossa morte. O materialismo da medicina é capaz de intimidar até mesmo o materialismo filosófico. O cadáver seria, por isso, o mestre propriamente escolado de um materialismo integral. Como leigos, para estar à altura do realismo da medicina em relação à morte, seria preciso adicionar uma grande porção de sarcasmo, de humor negro e de maldade romântica, e não se poderia experimentar nenhum horror diante de uma necropsia filosófica. Com filamentos nervosos abertos, expor-se ao choque da abertura de um cadáver: é isso que acontece em meio à [359] experiência da morte “nua e crua”. A visão anatômica, “mais cínica” do que qualquer outra, conhece uma segunda nudez de nosso corpo, quando por meio do corte cirúrgico os órgãos expostos se apresentam com uma “última” nudez desavergonhada. O cadáver também conhece desde sempre o desejo de dar um show: exposição cadavérica, nudismo da morte, peças de existencialismo noturno à maneira de Callot. Há uma vontade de olhar arcaica, perpassada por crueldades, dirigida para os cadáveres, tal como o demonstram antigas execuções, mesmo cremações públicas, tanto o romantismo das capelas mortuárias de outrora quanto o grande amortalhamento de cadáveres políticos.
Uma parte da crise atual da medicina advém do fato de ela ter abandonado a sua antiga ligação funcional com o sacerdócio e, desde então, ter entrado em uma relação sinuosa e ambígua com a morte. Na “luta entre vida e morte”, padres e médicos foram se colocando em posições opostas. Só o padre pode, sem se tornar um cínico, se colocar do lado da morte com um olhar kynicamente livre para o efetivamente real; e isso porque a morte nas religiões e cosmologias vivas é considerada como um prêmio óbvio da vida e como uma fase das grandes ordenações, com as quais o saber eclesiástico soube um dia se associar de maneira “conspiratória”, acompanhando a sua respiração. Nem a mortalidade em geral, nem a luta individual contra a morte em particular representam um impasse para o sacerdote. Nos dois casos, faz-se presente uma facticidade de um tipo mais elevado, na qual nossa vontade não é questionada. As coisas se mostram de maneira diversa, contudo, no caso do médico. Ele se define pelo fato de precisar tomar o partido da vida. E por essa tomada incondicional de partido que é guiado todo o idealismo da medicina, um idealismo que leva ainda hoje até o cerne dos enclaves cínicos as lutas absurdas da medicina em torno da vida de corpos que há muito já se degradaram, de corpos moribundos. O médico toma o partido do corpo vivo contra o cadáver. Como os corpos vivos são a fonte de todo poder, aquele que auxilia o corpo torna-se um homem do poder. Nessa medida, o mesmo que auxilia é também uma espécie de detentor do poder, uma vez que toma parte na força central de disponibilização de rodas as supremacias, no poder de dispor sobre a vida e a morte dos outros. Com isso, o médico cai em uma posição intermediária: por um lado, ele é um partidário “absoluto” da vida; por outro, toma parte no poder da supremacia sobre a vida. Com isso, se prepara o palco para a entrada em cena do cinismo da medicina. Ora, [360] por que estudantes de medicina não deveríam jogar bola no corredor do instituto de anatomia com os crânios? Nós não nos mostramos outrora particularmente entusiasmados, quando o nosso professor de biologia trouxe, à guisa de demonstração, um esqueleto para a classe, moveu o seu maxilar e explicou meio jocosamenre que o esqueleto era de um criminoso. Gostaria que todo o cinismo da medicina pudesse ser tratado como esse exemplo, com humor negro. Não obstante, uma vez que a medicina em grande extensão toma parte no exercício do poder e uma que o poder, em um aspecto filosófico, pode ser definido justamente pela incapacidade para o humor, com o seu direcionamento cínico a medicina não possui nada que pudesse dizer respeito ao humor. (SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012., p. 359-361)