Heidegger oferece-se para pôr um fim à imensurável omissão do pensamento europeu — a saber, não ter levantado a questão sobre a essência do ser humano da única maneira apropriada, que, para ele, é a maneira existencial-ontológica; pelo menos o autor indica sua disposição, por mais provisórias que sejam as inflexões pelas quais a questão vem à tona, de abordá-la finalmente em sua forma correta. Com esses rodeios aparentemente modestos, Heidegger deixa expostas consequências abaladoras: o humanismo, em suas formas antiga, cristã e iluminista, é declarado responsável por uma interrupção de dois mil anos no pensamento; é censurado por ter obstruído, com suas interpretações apressadas e aparentemente evidentes e indiscutíveis da essência do ser humano, o surgimento da genuína questão sobre essa essência. Heidegger explica que sua obra a partir de Ser e tempo se volta contra o humanismo não porque este tenha sobrevalorizado a humanitas, mas porque não lhe atribuiu um valor suficientemente elevado (Carta sobre o Humanismo – Ü. d. H., p. 21). Mas o que significa atribuir um valor suficientemente elevado à essência do ser humano? Significa, em primeiro lugar, renunciar a uma habitual e errônea subestimação. A questão sobre a essência do ser humano não entra no rumo certo até que nos afastemos da mais velha, mais obstinada e mais perniciosa das práticas da metafísica europeia: definir o ser humano como animal rationale. Nessa interpretação da essência do homem, este continua a ser entendido como uma animalitas expandida por adições espirituais. Contra isso revolta-se a análise existencial-ontológica de Heidegger, pois, para ele, a essência do ser humano não pode jamais ser expressa em uma perspectiva zoológica ou biológica, mesmo que a ela se acresça regularmente um fator espiritual ou transcendente.
Nesse ponto, Heidegger é inexorável, caminhando entre o animal e o ser humano como um anjo colérico com espada em riste para impedir qualquer comunhão ontológica entre ambos. Sua paixão antivitalística e antibiológica leva-o a observações quase histéricas, como quando declara, por exemplo, que aparentemente “é como se a essência do divino estivesse mais próxima de nós que a desconcertante essência dos seres vivos” (Carta sobre o Humanismo – Ü. d. H., p. 17). No núcleo desse pathos antivitalístico, atua a ideia de que existe entre o homem e o animal não uma diferença de gênero ou de espécie, mas uma diferença ontológica, razão pela qual o primeiro não pode ser concebido sob nenhuma circunstância como um animal com algum acréscimo cultural ou metafísico. Além disso, o próprio modo de ser dos humanos distingue-se do de todos os outros seres vegetais e animais de forma essencial, e segundo a característica ontológica fundamental, pois o ser humano tem um mundo e está no mundo (Welt), enquanto plantas e animais estão atrelados apenas a seus respectivos ambientes (Umwelten).
Se há um fundamento filosófico para se falar da dignidade do ser humano, então é porque justamente o homem é chamado pelo próprio ser e — como Heidegger enquanto filósofo pastoral gosta de dizer — escolhido para sua guarda. Por isso os homens possuem a linguagem; mas a finalidade precípua dessa posse, segundo Heidegger, não é apenas entender-se e domesticar-se mutuamente nesses entendimentos.
A linguagem é antes a casa do ser; ao morar nela o homem existe [ek-sistiert], à medida que compartilha a verdade do ser, guardando-a. O que importa, portanto, na definição da humanidade do ser humano enquanto existência [Ek-sistenz], é que o essencial não é o ser humano, mas o ser como a dimensão do extático da existência.