Schopenhauer (MVR1): sua vontade

Naturalmente, em todos os tempos uma etiologia ignara de seu fim empenhou-se em reduzir toda vida orgânica ao quimismo ou à eletricidade; e todo quimismo, isto é, toda qualidade ao mecanismo, e este, por sua vez, em parte ao objeto da foronomia, isto é, tempo e espaço unidos para a possibilidade do movimento, em parte à mera geometria, isto é, posição no espaço: por fim, a própria geometria é reduzida à aritmética, que, como tem uma única dimensão, é a mais compreensível, a mais fácil de abarcar e a mais bem fundamentada figura do princípio de razão. Em linhas gerais, provas do método aqui indicado são: os átomos de Demócrito, o vórtice de Descartes, a física mecânica de LESAGE; também a forma e a combinação de Reils, enquanto causa da vida animal, tende a isso: por fim, totalmente nesses moldes é até mesmo o tosco materialismo agora requentado no meio do século XIX, e que, por ignorância, tomou a si mesmo como original: em primeiro lugar sob a estúpida negação da força vital, procurando explanar o aparecimento da vida a partir de forças físicas e químicas e estas, por seu turno, a partir do fazer-efeito mecânico da matéria, posição, figura e movimento de átomos oníricos; em segundo lugar, desejando assim reduzir todas as forças da natureza a choque e contrachoque, que seriam a sua “coisa em si”: de acordo com isso, a luz deve ser um vibrar mecânico ou ondular de um éter imaginário; ora, quando esse éter a tinge a retina, percute nela, e assim 483 bilhões de batidas por segundo originam o vermelho, 727 o violeta etc. Semelhantes teorias rasas, mecânicas, democritianas, bestas e verdadeiramente grosseiras são bastante dignas de pessoas que, cinquenta anos após a publicação da doutrina das cores de Goethe, ainda acreditam na luz homogênea de Newton e não se envergonham em admiti-lo. Aprenderão que aquilo a ser perdoado à criança não o será ao adulto. Um dia poderão até findar numa situação ignominiosa: mas então cada um saberá esquivar-se e fingir-se de ingênuo. Em breve falaremos novamente dessa falsa redução das forças originárias da natureza umas às outras. No momento é o suficiente. Supondo-se que as coisas realmente fossem assim, então com certeza tudo seria fundamentado e explanado, sim, tudo seria em última instância reduzido a um problema aritmético que, assim, no templo da sabedoria, seria o ícone mais sagrado ao qual nos conduziria o princípio de razão. Entrementes, todo conteúdo da aparência desapareceria, restando meras formas: aquilo QUE aparece seria reduzido ao COMO aparece, e este COMO poderia também ser cognoscível a priori, por conseguinte, seria totalmente dependente do sujeito, logo, completamente redutível a este, sendo ao fim mero fantasma, representação e absoluta forma da representação: não se poderia mais perguntar pela coisa em si. — Em consequência, supondo-se que isso fosse plausível, o mundo inteiro seria de fato dedutível do sujeito e, ao fim, teríamos aquilo que Fichte quis PARECER realizar com seus argumentos ocos. — Mas não é bem assim: fantasias, falsificações, castelos no ar foram dessa maneira construídos, porém nenhuma ciência. As muitas e variadas aparências da natureza foram com sucesso reduzidas a algumas forças originárias e, onde isso foi feito, realizou-se um verdadeiro progresso: várias forças e qualidades, a princípio tidas por diferentes, foram derivadas umas das outras, diminuindo-se assim o seu número: a etiologia atingirá o seu objetivo se estabelecer e conhecer todas as forças originárias da natureza enquanto tais e fixar seus tipos de efeito, isto é, a regra segundo a qual, pelo fio condutor da causalidade, seus fenômenos aparecem no tempo e no espaço e determinam reciprocamente suas posições: porém sempre restarão forças originárias, sempre restará, como resíduo insolúvel, um conteúdo da aparência que não pode ser remetido à sua forma, sempre restará, portanto, algo não mais explanável por outra coisa em conformidade com o princípio de razão. — Pois em cada coisa na natureza há algo a que jamais pode ser atribuído um fundamento, algo para o qual nenhuma explanação é possível, nem causa ulterior pode ser investigada: trata-se do modo específico de seu atuar, ou seja, justamente a espécie de sua existência, sua essência. Para cada efeito isolado de uma coisa pode-se demonstrar a causa da qual esse efeito se segue e que permite o fazer-efeito exatamente agora, exatamente aqui: mas nunca se pode demonstrar por que essa coisa em geral atua e exatamente assim. Mesmo que não tenha outras qualidades e se trate apenas de uma partícula de poeira, ainda assim revelará aquele algo infundado, ao menos como gravidade e impenetrabilidade: esse infundado, digo, é-lhe aquilo que no ser humano é SUA VONTADE e, assim como a vontade, não está submetido em sua essência à explanação, sim, é em si idêntico à vontade. Para cada exteriorização da vontade, para cada ato isolado seu neste tempo, neste lugar, é possível demonstrar um motivo do qual este ato, sob a pressuposição do caráter do ser humano, tinha de seguir-se necessariamente. Mas que um ser humano tenha tal caráter, que um ser humano queira em geral, que dentre tantos motivos exatamente este e não outro, sim, que algum tipo de motivo movimente a vontade, eis aí algo ao qual não se pode fornecer fundamento algum. Aquilo que para cada ser humano é seu caráter infundado, pressuposto em qualquer explanação de seus atos a partir de motivos, é para cada corpo orgânico precisamente sua qualidade essencial, seu modo de atuar, cujas exteriorizações são ocasionadas por ação vinda de fora, enquanto a qualidade essencial mesma, ao contrário, não é determinada por coisa alguma externa a si, portanto é inexplanável: suas exteriorizações isoladas, únicas pelas quais torna-se visível, estão submetidas ao princípio de razão: ela mesma, no entanto, é sem fundamento. Em essência isso foi corretamente reconhecido pelos escolásticos, que a designaram forma substantialis. [MVR1: §24]

Sim, também ao ético pode-se aplicar a nossa explanação do sublime, a saber, àquilo que se descreve como caráter sublime. Este também se origina do fato de a vontade não ser excitada por objetos que, normalmente, são propícios para excitá-la; mas, ao contrário, aí o conhecimento prepondera. Semelhante caráter, consequentemente, considerará as pessoas de maneira puramente objetiva, não segundo as relações que poderiam ter com a SUA VONTADE: o caráter sublime, por exemplo, notará erros, ódio, injustiça dos outros contra si, sem com isso ser excitado pelo ódio; notará a felicidade alheia, sem sentir inveja; até mesmo reconhecerá as qualidades boas dos outros, sem no entanto procurar associação mais íntima com eles; perceberá a beleza das mulheres, sem cobiçá-las. A felicidade ou infelicidade pessoais não lhe afetará profundamente, mas, antes, será como o Horácio descrito por Hamlet: For thou hast been / As one, in suffering all, that suffers nothing; / A man, that fortunes buffets and rewards / Hast ta en with equal thanks etc. Pois, em seu próprio decurso de vida com seus acidentes, olhará menos a própria sorte e mais a da humanidade em geral e, assim, conduzirá a si mesmo mais como uma pessoa que conhece, não como uma pessoa que sofre. [MVR1: §39]

40. Visto que os opostos se esclarecem, torna-se aqui oportuna a observação de que o oposto propriamente dito do sublime é algo que, à primeira vista, não se reconhece como tal: o EXCITANTE. Entendo sob este termo aquilo que estimula a vontade, criando-lhe a expectativa de imediata satisfação, preenchimento. — Se o sentimento do sublime nasce quando um objeto empírico desfavorável à vontade se torna objeto de pura contemplação, mantida mediante um desvio contínuo da vontade e elevação sobre os seus interesses, o que justamente constitui a sublimidade da disposição; o excitante, ao contrário, rebaixa o espectador da pura contemplação exigida para apreensão do belo ao excitar necessariamente a SUA VONTADE por meio de objetos empíricos que lhe são diretamente favoráveis; assim, o puro contemplador não permanece mais puro sujeito do conhecer, mas se torna o necessitado e dependente sujeito do querer. — Que comumente todo belo de tipo mais jovial seja chamado excitante é algo a ser creditado a um conceito demasiado amplo, por falta de uma distinção mais precisa, e que tenho de colocar completamente de lado, sim, desprezar. — No sentido aqui explanado, encontro apenas dois tipos de excitante no domínio da arte, ambos indignos dela. Um, bem inferior, encontra-se nas naturezas-mortas dos neerlandeses, quando estes se equivocam na exposição de iguarias comestíveis que, por meio de sua apresentação ilusória, despertam necessariamente o apetite, o que é um verdadeiro estímulo à vontade que põe fim a qualquer contemplação estética do objeto. Frutas pintadas ainda são aceitáveis, pois, como desenvolvimento tardio de flores, e com sua forma e sua cor, elas se oferecem a nós como um belo produto natural, e não estamos obrigados a pensar em sua comestibilidade; mas, infelizmente, encontramos com frequência, pintadas com naturalidade ilusória, iguarias preparadas e na mesa colocadas prontas para comer, ostras, arenques, lagostas, pães amanteigados, cerveja, vinho etc.; tudo isso é bastante repreensível. — Na pintura de gênero e na escultura o excitante consiste nas suas figuras nuas, cuja posição, semipanejamento e tratamento são direcionados para despertar a lubricidade do espectador, suprimindo de imediato a pura consideração estética e trabalhando, portanto, contra a finalidade da arte. Tal erro corresponde por inteiro àquele dos neerlandeses anteriormente censurado. Os antigos, na plena nudez e beleza completa de suas figuras, estão quase sempre livres desse erro, já que o próprio artista trabalhava com espírito puramente objetivo, cheio de beleza ideal, não com espírito subjetivo de cobiça interesseira. — O excitante, portanto, deve sempre ser evitado na arte. [MVR1: §40]

A essência do ser humano consiste em SUA VONTADE se esforçar, ser satisfeita e de novo se esforçar, incessantemente; sim, sua felicidade e bemestar é apenas isto: que a transição do desejo para a satisfação, e desta para um novo desejo, ocorra rapidamente, pois a ausência de satisfação é o sofrimento, a ausência de novo desejo é o anseio vazio, languor, tédio; justamente por isso, correspondendo ao que foi dito, a essência da melodia é um afastar-se, um desviar-se contínuo do tom fundamental, por diversas vias, não apenas para os intervalos harmônicos, a terça e a dominante, mas para cada tom, para a sétima dissonante e para os intervalos extremos; contudo, sempre ocorre um retorno ao tom fundamental: a melodia expressa por todos esses caminhos o esforço multifacetado da vontade, mas também a sua satisfação mediante reencontro final de um intervalo harmônico, e mais ainda do tom fundamental. A criação da melodia, o desvelamento nela de todos os mistérios mais profundos do querer e sentir humanos, é obra do gênio, cuja atuação aqui, mais que em qualquer outra atividade, se dá longe de qualquer reflexão e intencionalidade consciente e poderia chamar-se uma inspiração. Aqui o conceito é infrutífero, como na arte em geral: o compositor manifesta a essência mais íntima do mundo, expressa a sabedoria mais profunda, numa linguagem não compreensível por sua razão: como um sonâmbulo magnético, fornece informações sobre coisas das quais, desperto, não possui conceito algum. Por conseguinte, num compositor, mais que em qualquer outro criador, o ser humano e o artista são completamente diferentes. Até na explicação dessa arte maravilhosa o conceito mostra sua indigência e limites: contudo, quero prosseguir em nossa analogia. — Assim como a transição rápida do desejo para a satisfação e desta para um novo desejo constitui a felicidade e o bemestar, também as melodias rápidas, sem longos desvios, são alegres; já melodias lentas, entremeadas por dissonâncias dolorosas, retomando ao tom fundamental apenas muitos compassos além, são tristes e análogas à satisfação demorada, difícil. A demora do novo estímulo da vontade, o languor, não poderia encontrar outra expressão a não ser no tom fundamental prolongado, cujo efeito é logo insuportável, do que já se aproximam bastante as melodias monótonas, inexpressivas. A música de dança, consistindo em frases curtas e fáceis, em movimento veloz, parece exprimir apenas a felicidade comum, fácil de ser alcançada; ao contrário, o allegro maestoso, com grandes frases, longos períodos, desvios amplos do tom fundamental, descreve um esforço mais elevado, mais nobre, em vista de um fim distante e sua realização final. O adagio fala do sofrimento associado a um grande e nobre esforço, que desdenha qualquer felicidade vulgar. Quão maravilhoso é o efeito dos modos maior e menor! É fascinante observar como a mudança de um meio-tom, a entrada em cena da terça menor em vez da maior, impõe a nós imediata e inevitavelmente um sentimento penoso, angustiante, do qual o modo maior rapidamente nos liberta de novo. O adagio alcança no modo menor a expressão mais aguda da dor, tornando-se lamento comovente. A música de dança, no modo menor, parece descrever a ausência de felicidade frívola — que antes se deveria desdenhar — ou falar do alcance de um objetivo menor por meio de fadigas e labutas. — O número inesgotável de possíveis melodias corresponde ao inesgotável da natureza na diversidade dos indivíduos, fisionomias e decursos de vida. A passagem de uma tonalidade para outra completamente diferente, quando a conexão com a anterior é interrompida, compara-se à morte, na medida em que nesta o indivíduo finda; no entanto, a vontade que nele apareceu existe tanto quanto antes e aparece num outro indivíduo, cuja consciência, todavia, não tem ligação alguma com a de seu antecessor. [MVR1: §52]

Se uma pessoa, sob condições iguais, pudesse agir ora de uma maneira, ora de outra, então nesse ínterim a SUA VONTADE mesma teria mudado e, por consequência, residiria no tempo, visto que somente neste é possível a mudança: contudo, assim, ou a vontade teria de ser uma mera aparência, ou o tempo uma determinação da coisa em si. De fato, aquela disputa sobre a liberdade da ação individual, ou seja, sobre o liberum arbitrium indifferentiae, gira propriamente em torno do seguinte problema: se a vontade reside no tempo ou não. Mas, como Kant ensina, e toda a minha exposição torna necessário, se a coisa em si reside fora do tempo e de toda forma do princípio de razão, segue-se que não apenas o indivíduo tem de agir de maneira igual em situação igual e que cada ação má tem de ser a garantia segura de inumeráveis outras que ele TEM DE levar a cabo, e não PODE deixar de fazê-lo, mas também que, como Kant ainda diz, caso apenas fossem dados de maneira completa o caráter empírico e os motivos, a conduta futura da pessoa poderia ser calculada como um eclipse do Solou da Lua. Igual à natureza, também o caráter é consequente. Cada ação isolada tem de ocorrer em conformidade a este, como cada fenômeno tem de ocorrer em conformidade à lei natural: a causa no último caso e o motivo no primeiro são apenas causas ocasionais, como foi mostrado no livro segundo. A vontade, cuja aparência é toda existência e vida do ser humano, não pode negar a si mesma no caso particular, e o que o ser humano quer em geral, ele também sempre quererá no particular. [MVR1: §55]

Caso tenhamos investigado onde se encontram nossos pontos fortes e fracos, desenvolveremos, empregaremos, usaremos de todas as maneiras os nossos dons naturais mais destacados e sempre nos direcionaremos para onde são proveitosos e valiosos, evitando por inteiro e com auto-abnegação aqueles esforços em relação aos quais temos pouca aptidão natural; guardar-nos-emos de tentar aquilo que não nos permitirá ser bem-sucedidos. Apenas quem alcançou semelhante estado sempre será inteiramente a si mesmo com plena clarividência e nunca trairá a si nos momentos cruciais, já que sempre soube o que podia esperar de si. Amiúde, alguém assim partilhará a alegria em sentir seus poderes e raramente experimentará a dor em ser lembrado de suas fraquezas, o que se chama humilhação, que talvez cause a maior dor espiritual: daí suportarmos com muito mais facilidade termos nitidamente diante dos olhos uma má sorte do que a nossa incapacidade. — Assim, se somos plenamente cônscios de nossos poderes e fraquezas, não tentaremos mostrar forças que não possuímos, não jogaremos com falsas moedas, porque tais dissimulações se traem ao fim. Visto que o ser humano inteiro não passa de aparência da SUA VONTADE, nada é mais absurdo que, partindo da reflexão, querer ser alguém diferente do que se é: isto é uma contradição imediata da vontade consigo mesma. A imitação de qualidades e propriedades alheias é muito mais ultrajante que vestir roupas alheias: pois nesse caso se tem o juízo emitido por si mesmo sobre a própria falta de valor. O conhecimento de nossa mente, com suas faculdades de todo gênero e limites inalteráveis, é, nesse sentido, o caminho mais seguro para obtermos o maior contentamento possível conosco mesmos. Pois vale para os eventos interiores o que vale para os exteriores, a saber, não há para nós consolo mais eficaz que a completa certeza de uma necessidade inexorável. Um mal que nos sobreveio não é mais atormentador do que o pensamento nas circunstâncias que poderiam tê-lo evitado; eis por que nada é mais salutar para nossa tranquilidade de ânimo que a consideração do já acontecido a partir do ponto de vista da necessidade, de onde todos os acasos aparecem como instrumentos de um destino soberano, e, portanto, reconheceremos o mal já acontecido como inevitavelmente produzido pelo conflito entre circunstâncias interiores e exteriores — numa palavra, o fatalismo. Lamentamos e gememos, propriamente dizendo, só enquanto temos esperanças de assim fazer efeito sobre os demais, ou de estimular a nós mesmos em vista de esforços supremos. Contudo, crianças e adultos sabem perfeitamente contentar-se quando notam de modo claro que as coisas absolutamente não podem ser diferentes: Animo in pectoribus nostro domito necessitate. [MVR1: §55]

57. Em cada grau alumiado pelo conhecimento, a vontade aparece como indivíduo. No espaço e no tempo infinitos o indivíduo humano encontra a si mesmo como finito, em consequência, como uma grandeza desvanecendo se comparada àquelas, nelas imergido e, devido à imensidão sem limites do espaço e do tempo, tendo sempre apenas um QUANDO e um ONDE relativos de sua existência, não absolutos: pois o lugar e a duração do indivíduo são partes finitas de um infinito, de um ilimitado. — Sua existência propriamente dita encontra-se apenas no presente, cujo escoar sem obstáculos no passado é uma transição contínua para a morte, um sucumbir sem interrupção; pois sua vida passada, tirante suas eventuais consequências para o presente e tirante também o testemunho sobre SUA VONTADE ali impresso, já terminou por inteiro, morreu e não mais existe: eis por que, racionalmente, tem de lhe ser indiferente se o conteúdo daquele passado foram tormentos ou prazeres. O presente, entretanto, está sempre passando através de suas mãos para o passado: já o futuro é completamente incerto e sempre rápido. Nesse sentido, sua existência, mesmo se considerada do lado formal, é uma queda contínua do presente no passado morto, um morrer constante. Se vemos a isso também do ponto de vista físico, é então manifesto que, assim como o andar é de fato uma queda continuamente evitada, a vida de nosso corpo é apenas um morrer continuamente evitado, uma morte sempre adiada: por fim, até mesmo a atividade lúcida de nosso espírito é um tédio constantemente postergado. Cada respiração nos defende da morte que constantemente nos aflige e contra a qual, desse modo, lutamos a cada segundo, bem como lutamos em maiores espaços de tempo mediante a refeição, o sono, o aquecimento corpóreo etc. Por fim, a morte tem de vencer, pois a ela estamos destinados desde o nascimento e ela brinca apenas um instante com sua presa antes de devorá-la. Não obstante, prosseguimos nossa vida com grande interesse e muito cuidado, o mais longamente possível, semelhante a alguém que sopra tanto quanto possível até certo tamanho uma bolha de sabão, apesar de ter a certeza absoluta de que vai estourar. [MVR1: §57]

Defini a RAZÃO como a FACULDADE DE CONCEITOS. Toda esta classe específica de representações universais, não intuitivas, simbolizadas e fixadas apenas por palavras, é o que distingue os seres humanos dos animais e nos dá o domínio sobre a Terra. Se o animal é o escravo do presente e não conhece outros motivos senão os imediatos e sensíveis, e por isso quando estes lhe são dados, é tão necessariamente atraído ou repelido, como o ferro pelo magneto, no ser humano, ao contrário, nasceu com o dom da razão a clareza de consciência. Esta lhe permite, mirando o passado e o futuro, ter uma visão de conjunto do todo de sua vida e do curso do mundo, torna-o independente do momento presente, permite-lhe ponderar e executar obras de maneira planejada, com deliberação, tanto para o mal quanto para o bem. Mas o que o ser humano faz, fá-lo com plena autoconsciência: sabe exatamente como SUA VONTADE decide e o que escolher em cada ocasião, e qual outra escolha seria possível de acordo com o caso, e, a partir desse querer autoconsciente, aprende a conhecer a si mesmo, espelhando-se nos próprios atos. Em todas essas referências às ações humanas, a razão deve ser chamada PRÁTICA: ela é teórica só na medida em que os objetos com os quais se ocupa não têm relação alguma, mas apenas um interesse teórico, com a conduta de quem pensa, algo que bem poucas pessoas são capazes. O que, nesse sentido, se chama RAZÃO PRÁTICA é muito aproximadamente designado pela palavra latina prudentia, prudência, que, segundo Cícero é uma contração de providentia, providência. Por outro lado, ratio, razão, quando empregada para indicar força espiritual, significa na maioria das vezes razão teórica propriamente dita, embora os antigos não observem com rigor a diferença. — Em quase todos os seres humanos a razão tem uma orientação quase que exclusivamente prática: se esta é abandonada, o pensamento perde o controle sobre a ação, quando então se diz: scio meliora, proboque, deteriora sequor, ou le matin je fais des projets, et le soir je fais des sottises: nesse sentido, se o ser humano não permite que sua conduta seja guiada pelo próprio pensamento, mas pela impressão do presente, quase ao modo animal, é chamado IRRACIONAL, embora, propriamente dizendo, não lhe falte a faculdade de razão, porém é carente no emprego dela em relação à sua conduta; em certa medida, pode-se dizer que sua razão é simplesmente teórica, mas não prática. Com isso, pode-se por um lado ver um ser humano realmente bom, como aqueles que não podem ver um infeliz sem ajudá-lo, mesmo se com autossacrifício, mas por outro lado deixam suas dívidas não quitadas. Semelhante caráter irracional é quase incapaz de praticar grandes crimes, pois o planejamento, a dissimulação e o autocontrole sempre necessários a isto lhe são impossíveis. Mas também dificilmente atingirá um elevado grau de virtude: pois mesmo se, por natureza, é bastante inclinado ao bom; ainda assim não lhe faltam tendências individuais viciosas e maldosas, às quais todo ser humano está submetido e têm de necessariamente tornar-se atos se a razão, mostrando-se prática, não lhe opuser máximas inalteráveis e propósitos firmes. [MVR1: Apêndice: Crítica da Filosofia Kantiana]

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