Schopenhauer (MVR1) – fenômeno e Vontade

Em consequência, estaria sempre numa renovada incompreensão quem não fosse capaz de levar a bom termo a aqui exigida ampliação do conceito de vontade, entendendo por esta palavra tão-somente a espécie designada até agora pelo termo, acompanhada de conhecimento segundo motivos, e motivos abstratos, logo, exteriorizando-se a si mesma sob a condução da faculdade racional que, como foi dito, é apenas o fenômeno mais nítido da Vontade. MVR1: Livro II §22

Contudo, esquece-se que o indivíduo, a pessoa, não é vontade como coisa-em-si, mas como fenômeno da Vontade, e enquanto tal já é determinado e aparece na forma do [172] fenômeno, o princípio de razão. MVR1: Livro II §23

Gostaria no momento apenas de indicar que o fenômeno da Vontade em si e sem-fundamento está ele mesmo enquanto tal submetido à lei de necessidade, isto é, ao princípio de razão. MVR1: Livro II §23

Até agora se considerou como fenômeno da Vontade apenas aquelas mudanças que não têm outro fundamento senão o motivo, ou seja, uma representação; daí ter-se atribuído na natureza somente ao homem uma vontade e, quando muito, aos animais: pois o conhecer, o representar, como mostrei em outro lugar, é com certeza o autêntico e exclusivo caráter da animalidade. MVR1: Livro II §23

Não só as ações do corpo, mas ele mesmo, como mostrado anteriormente, é no todo fenômeno da Vontade; noutros termos, Vontade objetivada, concreta. MVR1: Livro II §23

Ora, para esclarecer esse ponto e demonstrar a identidade de uma Vontade una e indivisa em todos os seus tão diferentes fenômenos, tanto nos mais tênues quanto nos mais nítidos, temos de antes considerar a relação existente entre a Vontade como coisa-em-si e o seu fenômeno, noutros termos, entre o mundo como Vontade e o mundo como representação, com o que se nos abrirá o melhor caminho para uma profunda investigação do tema abordado em todo este segundo livro [Cf o cap 23 do segundo tomo; bem como no meu escrito Sobre a vontade na natureza os capítulos “Fisiologia das plantas” e ‘‘Astronomia física”, da maior significação para o núcleo de minha metafísica]. MVR1: Livro II §23

Mais e menos concernem tão-somente ao fenômeno, isto é, à visibilidade, à objetivação: esta possui um grau maior na planta que na pedra, um grau maior no animal que na planta, sim, o aparecimento da Vontade na visibilidade, sua objetivação, possui tantas infinitas gradações como a existente entre a mais débil luz crepuscular e a mais brilhante luz solar, entre o tom mais elevado e o eco mais baixo. MVR1: Livro II §25

Tal pluralidade atinge apenas o fenômeno da Vontade, não ela mesma. MVR1: Livro II §25

Portanto, enquanto cada homem deve ser visto como um fenômeno particularmente determinado e característico da Vontade, em certa medida até mesmo como uma Ideia própria, nos animais, ao contrário, o caráter individual falta por completo, posto que apenas a espécie possui [193] significação própria. MVR1: Livro II §26

Todos os fenômenos desta são exteriorizações de forças universais da natureza, vale dizer, exteriorizações de graus de objetivação da Vontade, que de maneira alguma se objetivam (como na natureza orgânica) pela intermediação da diferença de individualidades a expressarem parcialmente o todo da Ideia, mas, antes, exprimem a si mesmos unicamente na espécie, expondo a esta por completo e sem desvio em cada fenômeno particular. MVR1: Livro II §26

lhe atinge nem aos graus imediatos de sua objetivação, as Ideias, mas só convém aos fenômenos; noutros termos, se tivermos penetrado no conhecimento filosófico de que a lei de causalidade só tem significação em referência ao tempo e ao espaço, na medida em que determina nestes o lugar dos múltiplos fenômenos das diversas Ideias nas quais a Vontade se manifesta, regulando a ordem na qual têm de aparecer; e se, ainda, por esse conhecimento se revela o sentido íntimo da grande doutrina de Kant de que o espaço, o tempo e a causalidade não convêm à coisa-em-si mas apenas ao fenômeno, sendo meras formas de nosso conhecimento, não qualidades da coisa-em-si; então perceberemos que àquela admiração em face da legalidade e da precisão do atuar de uma força natural, em face da igualdade perfeita de todos os seus milhões de fenômenos, em face da infalibilidade do aparecimento destes, é em realidade comparável à admiração de uma criança, ou de um selvagem que considera pela primeira vez uma flor através de um espelho multifacetado e admira a igualdade perfeita das flores incontáveis que vê, contando separadamente cada uma delas. MVR1: Livro II §26

Novo fenômeno da Vontade. MVR1: Livro II §26

A força mesma é fenômeno da Vontade e, enquanto tal, não está submetida às figuras do princípio de razão, ou seja, é sem-fundamento. MVR1: Livro II §26

Toda causa na natureza é causa ocasional, apenas dá a oportunidade, a ocasião, para o fenômeno da Vontade una, indivisa, em-si de todas as coisas, e cuja objetivação grau por grau é todo este mundo visível. MVR1: Livro II §26

Apenas a entrada em cena, o tornar-se-visível neste lugar, neste tempo, é produzido pela causa, e nesse sentido depende [200] desta, mas não o todo do fenômeno» não a sua essência íntima: esta é a Vontade, à qual não se aplica o princípio de razão, e, portanto, é sem-fundamento. MVR1: Livro II §26

Os motivos não determinam o caráter do homem, mas tão-somente o fenômeno desse caráter, logo as ações e atitudes, a feição exterior de seu decurso de vida, não sua significação íntima e conteúdo: estes últimos procedem do caráter, que é fenômeno imediato da Vontade, portanto sem-fundamento. MVR1: Livro II §26

Com isso cada movimento, embora seja fenômeno da Vontade, sempre tem de ter uma causa a partir da qual é explanável em referência à determinado tempo e determinado lugar, ou seja, não em geral, segundo a sua essência íntima, mas como fenômeno particular. MVR1: Livro II §27

Com acerto, portanto, Kant diz que é absurdo esperar por um Newton do ramo de relva, isto é, por aquele que reduza o ramo de relva a fenômenos de forças físicas e químicas, das quais o ramo seria uma concreção casual, por consequência um mero jogo da natureza sem aparecimento de uma Ideia própria, noutros termos, a Vontade não se manifestaria imediatamente num grau mais elevado e específico, mas apenas como o faz no fenômeno da natureza inorgânica, e casualmente naquela forma. MVR1: Livro II §27

Assim, se não se perder de vista a diferença entre fenômeno e coisa-em-si, segue-se daí que a identidade da Vontade objetivada em todas as Ideias não pode ser transformada em uma identidade das Ideias particulares nas quais ela aparece (visto que a Vontade possui graus determinados de sua objetidade). MVR1: Livro II §27

Quando os muitos fenômenos da Vontade entram em conflito nos graus mais baixos de sua objetivação, portanto no reino inorgânico, quando cada um quer apoderar-se da matéria existente servindo-se do fio condutor da causalidade, desse conflito resulta o fenômeno de uma Ideia mais elevada, que domina todos os fenômenos mais imperfeitos preexistentes; todavia, de tal maneira que deixa subsistir a natureza dos mesmos de um [208] modo subordinado, já que absorve em si um análogo deles. MVR1: Livro II §27

Do mesmo modo, cada fenômeno da Vontade, inclusive os que se expõem no organismo humano, travam uma luta duradoura contra as diversas forças físicas e químicas que, como Ideias mais elementares, têm um direito prévio à matéria. MVR1: Livro II §27

Ora, posto que cada corpo tem de ser visto como fenômeno de uma única e mesma Vontade, e esta, entretanto, expõe-se necessariamente como um esforço, então o estado originário de cada orbe celeste condensado não pode ser o repouso, mas o movimento, o esforço para adiante no espaço infinito, sem repouso e alvo. MVR1: Livro II §27

Podemos, por fim, reconhecer a aqui considerada luta de todos os fenômenos da Vontade entre si inclusive na mera matéria, na medida em que a essência do fenômeno desta, corretamente enunciada por Kant, são as forças de atração e repulsão, de modo que já a matéria possui sua existência apenas devido a uma luta de forças que se empenham contrariamente. MVR1: Livro II §27

Com isso podemos observar o fenômeno bastante notável de que a atuação cega da Vontade e a ação iluminada pelo conhecimento invadem uma o domínio da outra da maneira mais surpreendente em dois tipos de fenômeno. MVR1: Livro II §27

Em verdade, não é apenas o caráter empírico de cada homem, mas também o caráter empírico de cada espécie animal, sim, de cada espécie vegetal e até mesmo de cada força originária da natureza inorgânica que deve [221] ser visco como fenômeno de um caráter inteligível, isto é, de um ato indiviso e extratemporal da Vontade, – De passagem, gostaria de fazer aqui a observação acerca da ingenuidade com que cada planta expressa e expõe de maneira aberta todo o seu caráter pela mera figura, manifestando assim todo o seu ser e querer, com o que suas fisionomias são tão interessantes. MVR1: Livro II §28

Ora, visto que é a Vontade única e indivisa – justamente por isso inteiramente condizente consigo mesma – que manifesta a si em toda a Ideia como se se manifestasse num ato, segue-se que o fenômeno da Vontade, embora entre em cena numa diversidade de partes e estados, tem de mostrar novamente aquela unidade na concordância completa de tais partes e estados. MVR1: Livro II §28

Tudo isso foi anteriormente objeto de detalhadas considerações Igualmente, cada ato isolado da vontade de um indivíduo que conhece (e que enquanto tal é apenas fenômeno da Vontade como coisa-em-si) possui necessariamente um motivo, sem o qual o ato nunca entraria em cena. MVR1: Livro II §29

Do mesmo modo, cada fenômeno isolado da natureza, ao entrar em cena neste lugar, neste tempo, é determinado por uma causa suficiente, mas a força que nele se manifesta não possui em geral causa alguma, pois é um grau de fenômeno da coisa-em-si, da Vontade sem-fundamento. – MVR1: Livro II §29

Pois o indivíduo é o sujeito do conhecer na sua referência a um fenômeno particular e determinado da Vontade, a esta servil. MVR1: Livro III §34

Um tal fenômeno isolado da Vontade está submetido ao princípio de razão em todas as suas figuras, e todo conhecimento relacionado ao fenômeno também segue, por sua vez, o princípio de razão. MVR1: Livro III §34

Por conseguinte, a história do gênero humano, a profusão dos eventos, a mudança das eras, as formas multifacetadas da vida humana em diferentes países e séculos: tudo isso é tão-somente a forma casual do fenômeno da Ideia, não pertence a ela (unicamente na qual reside a objetidade adequada da Vontade) mas só ao fenômeno que se dá ao conhecimento do indivíduo, sendo tão alheio, inessencial e indiferente à Ideia mesma como as figuras formadas para as nuvens, ou as figuras de redemoinho e formações espumosas para o regato, ou as árvores e flores para o gelo cristalizado. MVR1: Livro III §35

Porém, o Espírito da Terra [Erdgeist] sorriria, dizendo: “A fonte, a partir da qual os indivíduos e suas forças brotam, é inesgotável e infinita como tempo e espaço: pois aqueles são, tanto quanto estas formas de todo fenômeno, apenas fenômeno, visibilidade da Vontade. MVR1: Livro III §35

O fundamento disso, todavia, não é fraqueza da razão, mas em parte energia incomum do fenômeno todo da Vontade que é o indivíduo genial e que se exterioriza mediante grande veemência de todos os atos volitivos; em parte também reside no fato de, no gênio, o conhecimento intuitivo ser preponderante, em relação ao abstrato, por meio de sentidos e entendimento. MVR1: Livro III §36

Assim como o homem é ímpeto tempestuoso e obscuro do querer (indicado pelo pólo dos órgãos genitais, como seu foco), e simultaneamente sujeito eterno, livre, sereno, do puro conhecer (indicado pelo pólo do cérebro), assim também, em conformidade com essa oposição, o sol é fonte de luz, é condição do modo mais perfeito de conhecimento e, justamente por isso, do que há mais aprazível nas coisas, e simultaneamente é fonte de calor, da primeira condição de qualquer vida, isto é, de todo fenômeno da Vontade em graus mais elevados. MVR1: Livro III §39

Então, no imperturbável espectador dessa cena, a duplicidade de sua consciência atinge o mais elevado grau: ele se sente simultaneamente como indivíduo, fenômeno efêmero da Vontade que o menor golpe daquelas forças pode esmagar, indefeso contra a natureza violenta, dependente, entregue ao acaso, um nada que desaparece em face de potências monstruosas, e também se sente como sereno e eterno sujeito do conhecer, o qual, como condição do objeto, é o sustentáculo [277] exatamente de todo esse mundo, a luta temerária da natureza sendo apenas sua representação, ele mesmo repousando na tranquila apreensão das Ideias, livre e alheio a todo querer e necessidade. MVR1: Livro III §39

Quando nos perdemos na consideração da grandeza infinita do mundo no espaço e no tempo, quando meditamos nos séculos passados e vindouros, ou também quando consideramos o céu noturno estrelado, tendo inumeráveis mundos efetivamente diante dos olhos e a incomensurabilidade do cosmo se impõe à consciência – sentimo-nos nessa consideração reduzidos a nada, sentimo-nos como indivíduo, como corpo vivo, como fenômeno transitório da Vontade, uma gota no oceano, condenados a desaparecer, a dissolvermo-nos no nada. MVR1: Livro III §39

O sentimento do sublime nasce aqui pela percepção do nada esvaecente de nosso próprio corpo em face de uma grandeza que, por seu turno, se encontra apenas em nossa representação, cujo sustentáculo somos nós como sujeito que conhece; portanto, como em toda parte, o sentimento do sublime nasce aqui do contraste da insignificância e dependência de nosso si-mesmo como indivíduo, como fenômeno da Vontade, com a consciência de nosso si-mesmo como puro sujeito do conhecer. MVR1: Livro III §39

Nesse sentido podemos dizer: a objetivação adequada da Vontade por meio de um simples fenômeno espacial é beleza em sentido objetivo; a planta não passa de um fenômeno assim, meramente espacial da Vontade; ora, como nenhum movimento e, em consequência, nenhuma referência ao tempo (exceto o seu desenvolvimento) pertence à expressão do ser da planta, segue-se que sua simples figura exprime e explicita toda a sua natureza. MVR1: Livro III §45

Assim como o simples fenômeno espacial da Vontade pode objetivá-la perfeita ou imperfeitamente em cada grau determinado, o que justamente constitui a beleza ou a feiura, assim também o pode a objetivação temporal, isto é, a ação, e em verdade a ação imediata, portanto ó movimento, correspondente pura e perfeitamente à vontade que nele se objetiva, sem interferência alheia, sem nada de supérfluo, sem deficiência, exprimindo apenas o ato da Vontade determinado a cada vez. MVR1: Livro III §45

Logo, assim como a beleza é a exposição correspondente da Vontade em geral por meio de seu simples fenômeno espacial, a graça é a exposição correspondente da Vontade por meio de seu fenômeno temporal, isto é, a expressão perfeitamente correta e apropriada de cada ato da vontade mediante movimento e posição que a objetiva. MVR1: Livro III §45

Graça e beleza, perfeitas e unidas, são o fenômeno mais distinto da Vontade no grau mais elevado de sua objetivação. MVR1: Livro III §45

Pois a música nunca expressa o fenômeno, mas unicamente a essência íntima, o em-si de todos eles, a Vontade mesma. MVR1: Livro III §52

Pois a música, [344] como dito, é diferente de todas as outras artes por ser não cópia do fenômeno, ou, mais exatamente, da objetidade adequada da Vontade, mas cópia imediata da Vontade e, portanto, expõe para todo físico o metafísico, para todo fenômeno a coisa-em-si. MVR1: Livro III §52

Como a Vontade é a coisa-em-si, o conteúdo íntimo, o essencial do mundo, e a vida, o mundo visível, o fenômeno, é seu espelho; segue-se daí que este mundo acompanhará a Vontade tão inseparavelmente quanto a sombra acompanha o corpo. MVR1: Livro IV §54

Nascimento e morte pertencem exclusivamente ao fenômeno da Vontade, logo, à vida, à qual é essencial expor-se em indivíduos, os quais nascem e perecem. MVR1: Livro IV §54

O objetivo, manifestamente, era, por ocasião da morte do indivíduo chorado, apontar com grande ênfase para a vida imortal da natureza e, assim, embora sem conhecimento abstrato, aludir ao fato de toda a natureza ser o fenômeno e também o preenchimento da Vontade de vida. MVR1: Livro IV §54

A forma desse fenômeno é tempo, espaço e causalidade, e por intermédio deles a individuação, que acarreta consigo o nascer e o perecer individuais, sem contudo atingir a Vontade de vida – de cujo fenômeno o indivíduo é, por assim dizer, só um exemplo particular ou espécime –, tampouco quanto o todo da natureza é injuriado pela morte do indivíduo. MVR1: Livro IV §54

Que geração e morte devam ser consideradas como algo pertencente à vida e essencial ao fenômeno da Vontade, advêm do fato de ambas se apresentarem apenas como expressão altamente potenciada Daquilo a partir do que consiste todo o restante da vida, que nada mais é, em toda parte, senão uma alteração contínua da matéria sob a permanência invariável da forma. MVR1: Livro IV §54

A morte é um sono no qual a individualidade é esquecida: tudo o mais desperta de novo, ou, antes, permaneceu desperto [Também a seguinte consideração pode servir (àquele para a qual ela não é demasiado sutil) na compreensão distinta de que o indivíduo é apenas o fenômeno, não a coisa-em-si / Cada indivíduo é, por um lado, sujeito do conhecer, isto é, a condição complementar da possibilidade de todo o mundo objetivo, e, por outro, fenômeno singular da Vontade, da mesma que se objetiva em cada coisa / Mas essa duplicidade de nosso ser não repousa numa unidade subsistente por si, do contrário poderíamos ser conscientes de nós em nós mesmos independentemente dos objetos do conhecer e do querer, o que absolutamente não podemos mas, assim que descemos em nós para conseguir isso e direcionamos o conhecimento para o nosso interior, querendo conhecer-nos plenamente de uma vez, perdemo-nos num vazio sem fundo, sentindo-nos semelhantes a uma esfera oca de cristal, da qual soa uma voz, cuja causa, entretanto, não encontramos ali; quando queremos assim apreender a nós, nada obtemos senão, assustados, um fantasma instável]. MVR1: Livro IV §54

Antes de tudo temos de reconhecer distintamente que a forma do fenômeno da Vontade, portanto a forma da vida ou da realidade, é, propriamente dizendo, apenas o presente, não o futuro, nem o passado. MVR1: Livro IV §54

Passado e futuro contêm meros conceitos e fantasmas, por consequência o tempo presente é a forma essencial e inseparável do fenômeno da Vontade. MVR1: Livro IV §54

Entretanto, trouxemos agora à consciência distinta que, embora o fenômeno particular da Vontade principie e finde temporalmente, a Vontade mesma, como coisa-em-si, em nada é afetada, muito menos o correlato de todo objeto, o sujeito que conhece e nunca é conhecido; e que à Vontade de vida a vida é certa. MVR1: Livro IV §54

Daí se segue que o egoísmo do indivíduo (este fenômeno particular da Vontade iluminado pelo sujeito do conhecer) pode, a partir da visão que expomos, tão pouco haurir alimento e consolo para seu desejo de afirmar-se por um tempo infinito, quanto o poderia a partir do conhecimento de que após sua morte o restante mundo exterior permanece no tempo, o que é apenas a expressão daquela mesma visão, porém considerada de maneira objetiva, logo, temporalmente. MVR1: Livro IV §54

Mas também só como fenômeno alguém é diferente das outras coisas do mundo; como coisa-em-si é a Vontade que aparece em tudo, a morte removendo a ilusão que separa a consciência própria das demais: e isto é a perduração. MVR1: Livro IV §54

Armado com o conhecimento que lhe conferimos, veria com indiferença a morte voando em sua direção nas asas do tempo, considerando-a como uma falsa aparência, um fantasma impotente, amedrontador para os fracos, mas sem poder algum sobre si, que sabe: ele mesmo é a Vontade, da qual o mundo inteiro é objetivação ou cópia; ele, assim, tem não só uma vida certa mas também o presente por todo o tempo, presente que é propriamente a forma única do fenômeno da Vontade; portanto, nenhum passado ou futuro infinitos, no qual não existiria, pode lhe amedrontar, pois considera a estes como uma miragem vazia e um Véu de Maya. MVR1: Livro IV §54

Por outro lado, entretanto, este mesmo mundo na totalidade de seus fenômenos é para nós objetidade da Vontade, que, por não ser ela mesma fenômeno, representação ou objeto, mas coisa-em-si, não está submetida ao princípio de razão, a forma de todo objeto; portanto não é determinada como consequência por um fundamento, logo, não conhece necessidade; em outras palavras, é livre. MVR1: Livro IV §55

Cada coisa como fenômeno, como objeto, é absolutamente necessária; no entanto, em si mesma é Vontade e esta é integralmente livre por toda a eternidade. MVR1: Livro IV §55

A existência em geral desse objeto e O modo de sua existência, isto é, a Ideia que nele se manifesta, ou, noutros termos, seu caráter, são imediatamente fenômeno da Vontade. MVR1: Livro IV §55

Ora, em conformidade à liberdade dessa Vontade, o objeto poderia não existir, ou originária e essencialmente ser algo inteiramente outro; mas em tal caso toda a cadeia na qual ele é um membro, ela mesma fenômeno da Vontade, também seria inteiramente outra. MVR1: Livro IV §55

Todavia, o homem é o fenômeno mais perfeito da Vontade, como mostrado no livro segundo e, em vista da própria conservação, tem de ser iluminado por um tão elevado grau de conhecimento que, neste, é até mesmo possível, como mostrado no livro terceiro, uma repetição adequada e perfeita da essência do mundo sob a forma da representação, ou seja, é possível a apreensão das Ideias, o límpido espelho do mundo. MVR1: Livro IV §55

Entrementes, todo o exposto simplesmente indica de maneira geral como o homem se diferencia de todos os demais fenômenos da Vontade, devido ao fato de a liberdade, ou seja, a independência do princípio de razão, que cabe de maneira exclusiva à Vontade como coisa-em-si e contradiz o fenômeno, poder no seu caso possivelmente também entrar em cena no fenômeno, no qual então a liberdade necessariamente se expõe como uma contradição do fenômeno consigo mesmo. MVR1: Livro IV §55

A liberdade da Vontade como coisa-em-si, excetuando-se o caso acima mencionado, jamais se estende imediatamente ao fenômeno, nem mesmo onde ele atinge o grau mais elevado de visibilidade, logo, não se estende ao animal dotado de razão e com caráter individual, isto é, a pessoa, que jamais é livre, embora seja o fenômeno de uma Vontade livre. MVR1: Livro IV §55

Pois a pessoa já é o fenômeno determinado pelo querer livre e, desde que este entra na forma de todo objeto, o princípio de razão, a pessoa desenvolve de fato a unidade da Vontade na pluralidade de suas ações, que, entretanto, devido à unidade extratemporal daquele querer em si, expõe-se com a legalidade de uma força natural. MVR1: Livro IV §55

No entanto, a quem ficou claro que a essência inteira do homem é Vontade, e ele mesmo é apenas fenômeno dessa Vontade; fenômeno que, por seu turno, tem por forma necessária o princípio de razão, cognoscível já a partir do sujeito, figurando, neste caso, como lei de motivação; a tal pessoa, a dúvida sobre a inexorabilidade de cada ação particular, quando o motivo é apresentado ao caráter, parece-lhe como uma dúvida sobre se a soma dos três ângulos do triângulo equivalem de fato à de dois retos. – MVR1: Livro IV §55

Foi Kant, todavia, cujo mérito a este respeito é em especial magnânimo, o primeiro a demonstrar a coexistência dessa necessidade com a liberdade da Vontade [374] em si, isto é, exterior ao fenômeno [Crítica da razão pura, 1a ed, p 532-58; 5a ed, p 560-86; e Crítica da razão prática, 4a ed, p 169-79; edição Rosenkranz, p 224-31], estabelecendo a diferença entre caráter inteligível e empírico, a qual conservo por inteiro, conquanto o primeiro é a Vontade como coisa-em-si a manifestar-se em fenômeno num determinado indivíduo e num determinado grau, já o segundo é este fenômeno mesmo tal qual ele se expõe no modo de ação segundo o tempo, e já na corporização segundo o espaço. MVR1: Livro IV §55

A Vontade é o primário e originário; o conhecimento é meramente adicionado como instrumento pertencente ao fenômeno da Vontade. MVR1: Livro IV §55

Em realidade, à medida que o fenômeno da Vontade se torna cada vez mais perfeito, o sofrimento se torna cada vez mais manifesto. MVR1: Livro IV §56

Entretanto, o esforço contínuo que constitui a essência de cada fenômeno da Vontade adquire nos graus mais elevados de objetivação dela seu primeiro e mais universal fundamento, pois, aqui, a Vontade aparece num corpo vivo com o seu mandamento férreo de alimentação. MVR1: Livro IV §57

Um poder externo é tão pouco capaz de mudar essa Vontade, ou suprimi-la, quanto um poder estranho é capaz de livrá-lo dos tormentos da vida, fenômeno da Vontade. MVR1: Livro IV §59

Saniasis, mártires, santos de todas as crenças e nomes, suportaram voluntariamente de bom grado todos os martírios, visto que neles a Vontade de vida se suprimia; depois, até mesmo a lenta destruição do fenômeno da Vontade de vida lhes era bem-vinda. MVR1: Livro IV §59

A procriação, em relação ao procriador, e apenas a expressão, o sintoma de sua decidida afirmação da Vontade de vida: em relação ao procriado a procriação não é o fundamento da Vontade que nele aparece, visto que a Vontade em si não conhece fundamento nem consequência, mas, como toda causa, é tão-somente causa ocasional do fenômeno da Vontade neste tempo e neste lugar. MVR1: Livro IV §60

A justificativa para o sofrimento é o fato de a Vontade afirmar-se a si neste fenômeno, e esta afirmação é justificada e equilibrada pelo fato de a Vontade portar o sofrimento. MVR1: Livro IV §60

Em conformidade com o dito, a negação do próprio corpo já se expõe como uma contradição da Vontade com seu fenômeno, pois, embora também aqui o corpo objetive, nos genitais, a Vontade de propagação, esta, no entanto, não é desejada. MVR1: Livro IV §62

Por outro lado, a quem pratica a injustiça apresenta-se por si mesmo o conhecimento de que ele, em si, é a mesma Vontade que também aparece no outro corpo, afirmando-se com tanta veemência num único fenômeno que, ao transgredir os limites do próprio corpo é de suas forças, torna-se negação exatamente dessa Vontade no outro fenômeno e, por conseguinte, tomado como Vontade em si, entra em conflito consigo mesmo precisamente por meio dessa veemência, cravando os dentes na própria carne. MVR1: Livro IV §62

Em verdade, o nosso horror em face do homicídio cometido e também o nosso tremor em vir a cometê-lo correspondem ao apego sem limites à vida, inerente a todo ser vivo como fenômeno da Vontade de vida (adiante lançaremos mais luz sobre aquele sentimento que acompanha a prática da injustiça e do mal, noutros termos, o peso de consciência, analisando-o mais detalhadamente e elevando-o à distinção do conceito). MVR1: Livro IV §62

Ora, o sofrer injustiça é uma ocorrência na experiência, e, como dito, aí se manifesta mais distintamente do que em qualquer outro lugar o fenômeno do conflito da Vontade de vida consigo mesma, advindo da pluralidade de indivíduos e do egoísmo, que são condicionados pelo principium individuationis, esta forma do mundo como representação para o conhecimento do indivíduo. MVR1: Livro IV §62

O fenômeno, a objetidade de uma única e mesma Vontade de vida, é o mundo em toda a pluralidade de suas partes e figuras. MVR1: Livro IV §63

Vê o padecimento, a maldade no mundo, mas, longe de reconhecer que ambos não passam de aspectos diferentes do fenômeno de uma Vontade de vida, toma-os como diferentes, sim, completamente opostos, e procura amiúde, através do mal, isto é, causando o sofrimento alheio, escapar do mal, do sofrimento do próprio indivíduo, envolto como está no principio individuationis, enganado pelo Véu de Maya. – MVR1: Livro IV §63

Verá que a diferença entre quem inflige o sofrimento e quem tem de suportá-lo é apenas fenômeno e não atinge a coisa-em-si, isto é, a Vontade, que vive em ambos. MVR1: Livro IV §63

Se os olhos dos dois fossem abertos, quem inflige o sofrimento reconheceria que vive em tudo aquilo que no vasto mundo padece tormento, e, se dotado de faculdade de razão, ponderaria em vão por que foi chamado à existência para um tão grande sofrimento, cuja culpa ainda não percebe; o atormentado notaria que toda maldade praticada no mundo, ou que já o foi, também procede daquela Vontade constituinte de sua própria essência, que aparece nele, reconhecendo mediante este fenômeno e sua afirmação que ele mesmo assumiu todo sofrimento procedente da Vontade, e isso com justiça, suportando-os enquanto for essa Vontade. – MVR1: Livro IV §63

Como o homem é fenômeno da Vontade iluminado pelo mais claro conhecimento, ele sempre mede a satisfação real e sentida da sua vontade [463] com a satisfação meramente possível, colocada diante dele pelo conhecimento. MVR1: Livro IV §65

Tudo o que, em se tratando de um grau comum de querer é sentido apenas numa medida modesta, produzindo também apenas um grau comum de disposição turvada, desperta, porém, na pessoa cujo fenômeno da Vontade atinge a crueldade extrema, necessariamente um tormento interior que vai além de toda medida, uma intranquilidade eterna, uma dor incurável; com isso, ela procura indiretamente o alívio do qual não é capaz diretamente, procura mitigar o seu sofrimento na visão do sofrimento alheio, o qual simultaneamente vê como uma expressão da potência própria. MVR1: Livro IV §65

Por mais que o Véu de Maya envolva espessamente os sentidos da pessoa má, noutros termos, por mais firmemente que ela se enrede no principio individuationis, de acordo com o qual se considera absolutamente diferente dos demais seres e deles separada por um amplo abismo, conhecimento ao qual adere com todo o seu vigor, visto que somente ele se conforma ao seu egoísmo e lhe dá sustento, de maneira que o conhecimento é quase sempre corrompido pela vontade – lateja, entretanto, no mais íntimo de sua consciência o pressentimento de que essa ordem de coisas é simples fenômeno; em si mesmo, entretanto, trata-se de algo bem diferente; e não obstante o tempo e o espaço que a separam dos demais indivíduos e dos incontáveis tormentos que padecem, inclusive através dela, e os apresentar como estrangeiros, ainda assim é a Vontade de vida una e em si alheia à [465] representação e às suas formas que neles todos aparece, porém aqui, desconhecendo-se, aponta contra si as próprias armas e, ao procurar o aumento do bem-estar em um de seus fenômenos, precisamente por aí impõe o grande sofrimento ao outro. MVR1: Livro IV §65

Porém, este também nasce de um segundo e imediato conhecimento intimamente associado àquele primeiro, a saber, o da força com a qual a Vontade de vida se afirma no indivíduo mau e vai muito além de seu fenômeno individual até a completa negação da mesma Vontade que aparece em outro indivíduo. MVR1: Livro IV §65

Reconhece a si como fenômeno concentrado da Vontade de vida, sente até que ponto está entregue à vida e com isto aos inumeráveis sofrimentos essenciais a esta, pois possui tempo sem fim e espaço sem fim para suprimir a diferença entre possibilidade e efetividade e, [466] assim, transformar todos os tormentos até agora por ele meramente conhecidos em tormentos sentidos. MVR1: Livro IV §65

Os milhões de anos de constante renascimento decerto subsistem apenas em conceito, bem como só em conceito existem todo o passado e todo o futuro: o tempo preenchido, ou seja, a forma do fenômeno da Vontade é apenas o presente, e para o indivíduo o tempo é sempre novo. MVR1: Livro IV §65

Ao contrário do homem mau, não afirma só o próprio fenômeno da Vontade, negando todos os demais como se fossem simples máscaras com essência totalmente diferente da sua. MVR1: Livro IV §66

Por consequência, o homem bom de modo algum deve ser considerado como um fenômeno da Vontade originariamente mais fraco em comparação ao homem mau. MVR1: Livro IV §66

O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório; [473] reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo: sim, que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum. MVR1: Livro IV §66

Quando às vezes em meio aos nossos duros sofrimentos sentidos, ou devido ao conhecimento vivo do sofrimento alheio e ainda envoltos pelo Véu de Maya o conhecimento da nulidade e amargura da vida se aproxima de nós e gostaríamos de renunciar decisivamente para sempre ao espinho de suas cobiças e fechar a entrada a qualquer sofrimento, purificar-nos e santificar-nos, logo a ilusão do fenômeno nos encanta de novo e seus motivos colocam mais uma vez a Vontade em movimento. MVR1: Livro IV §68

Por outros termos, não mais adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto, como se fosse por si, mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão, vale dizer, uma repulsa pela Vontade de vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido como povoado de penúrias. MVR1: Livro IV §68

Essencialmente fenômeno da Vontade, [482] ele cessa de querer algo, evita atar sua vontade a alguma coisa, procura estabelecer em si a grande indiferença por tudo. – MVR1: Livro IV §68

Ora, após o exposto no segundo livro sobre a ligação de todos os fenômenos da Vontade, acredito poder assumir que, com o fenômeno mais elevado da Vontade, também o mais abaixo dela seria abolido, ou seja, o mundo animal. MVR1: Livro IV §68

Quem atingiu um tal patamar ainda sempre sente – como corpo animado pela vida, fenômeno concreto da Vontade – uma tendência natural à volição de todo tipo, porém a refreia intencionalmente, ao compelir a si mesmo a nada fazer do que em realidade gostaria de fazer; ao contrário, faz tudo o que não gostaria de fazer, mesmo se isto não tiver nenhum outro fim senão justamente o de servir à [484] mortificação da Vontade. MVR1: Livro IV §68

Se, ao fim, advém a morte, que extingue este fenômeno da Vontade, cuja essência aqui há muito expirou pela livre negação de si mesma, exceto no fraco resto que aparece na vitalidade do corpo – então essa morte é muito bem-vinda e alegremente recebida como a redenção esperada. MVR1: Livro IV §68

Seja-me aqui permitido, a fim de exprimir como após a mortificação da Vontade a morte do corpo (que é apenas fenômeno da Vontade, com cuja supressão ele portanto perde todo significado) não é tida como amarga, mas é muito bem-vinda, citar as próprias palavras daquela santa penitente, embora não sejam elegantemente empregadas: “Midi de la gloire; jour ou il n’y a plus de nuit; vie qui ne craint plus la mort, dans la mort même: parce que la mort a vaincu la mort, et que celui qui a souffert la première mort, ne goûtera plus la seconde mort” [“Zênite da glória. MVR1: Livro IV §68

Pois, visto que o corpo é a Vontade mesma apenas na forma da objetidade ou como fenômeno do mundo como representação, segue-se que toda a Vontade de vida existe segundo sua possibilidade enquanto o corpo viver, sempre esforçando-se para aparecer na realidade efetiva e de novo arder em sua plena intensidade. MVR1: Livro IV §68

Seus atos criminosos de antanho não mais angustiam a sua consciência moral; penitenciam-nos de bom grado com a morte, e livres veem findar o fenômeno daquela Vontade, que agora lhes é estranha e gera repugnância. MVR1: Livro IV §68

Um mundo que fosse o fenômeno de uma Vontade incomparavelmente mais veemente que a atual, exibiria sofrimentos tão mais intensos que, em verdade, seria um inferno. MVR1: Livro IV §68

Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. MVR1: Livro IV §69

O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negação da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal forma que a Vontade permanece inquebrantável. – MVR1: Livro IV §69

Ora, como o mero fenômeno, na medida em que é um membro na cadeia das [508] causas, ou seja um corpo dotado de vida, continua a existir no tempo, que contém apenas fenômenos, a Vontade, que se manifesta através desse fenômeno, entra desse modo em contradição consigo mesma, pois nega o que o fenômeno expressa. MVR1: Livro IV §70

Por outro lado, a doutrina cristã simboliza a graça, a negação da vontade, a redenção, no Deus tornado homem que, livre de toda pecaminosidade, a saber, de todo querer-viver, também não pode, como nós, ter-se originado da mais decisiva afirmação da Vontade, e nem, como nós, pode ter um corpo que é inteiramente vontade concreta, fenômeno da Vontade; mas, nascido da jovem e pura virgem, possui um corpoaparente. MVR1: Livro IV §70

Os contínuos ímpetos e esforços sem alvo, sem repouso em todos o graus de objetidade nos quais e através dos quais o mundo subsiste, as multifacetadas formas seguindo-se uma à outra em gradação, todo o fenômeno da Vontade, por fim até mesmo as formas universais do fenômeno, tempo e espaço, e também a última forma dele, sujeito e objeto: tudo isso é suprimido com a Vontade. MVR1: Livro IV §71

Entretanto, esta consideração é a única que nos pode consolar duradouramente, quando, de um lado, reconhecemos que sofrimento incurável e tormento sem fim são essenciais ao fenômeno da Vontade, ao mundo e, de outro, vemos, pela Vontade suprimida, o mundo desaparecer e pairar diante de nós apenas o nada. MVR1: Livro IV §71

Kant, decerto, não chegou ao conhecimento de que o fenômeno é o mundo como representação e a coisa-em-si é a Vontade. MVR1: Apêndice §71

Contudo, na consciência comum não clareada pela filosofia, a vontade é de imediato confundida com seu fenômeno, e aquilo que pertence exclusivamente à Vontade é atribuído a este. MVR1: Apêndice §71

Contudo, ao mesmo tempo, cada um não se reconhece, com crítica filosófica e clareza de consciência, como fenômeno determinado desta Vontade já surgido no tempo, ou seja, poder-se-ia assim dizer, como um distinto ato volitivo daquela Vontade de vida mesma e, por isso, em vez de reconhecer toda sua existência como ato de sua liberdade, ao contrário, antes procura a esta em suas ações particulares. MVR1: Apêndice §71

Só este seria o caminho direto para o conhecimento daquilo que não é fenômeno, consequentemente também não é encontrado segundo as leis do fenômeno, mas é aquilo que se manifesta pelo fenômeno, torna-se cognoscível, objetiva-se, a Vontade de vida. MVR1: Apêndice §71