Santos Simbólica Unidade

VIDE

À posição henológica, que afirma a prioridade da unidade, e às pluralistas, que afirmam a prioridade da pluralidade, poderíamos dizer que, na esfera gnoseológica, na esfera do conhecimento, estamos em face da contemporaneidade de ambas, embora na esfera ontológica, tenhamos de reconhecer que a razão cabe à primeira posição, pois o ser primeiro, em qualquer plano, deve anteceder, como unidade, à pluralidade.

Na “Ontologia”, vimos por que o conceito de unidade é um conceito transcendente. Tudo que é é um, pois “toda realização do ser traz consigo unidade, e toda forma de unidade tem as suas raízes no ser.”

Não há ser sem unidade, como não há unidade sem ser. E há tantas modalidades de unidade, quantas há de ser. Ser é primariamente unidade. É possível um ser que não é um? Não sendo um, o ser se esfacelaria.

E se partíssemos, como parte Etchegoyen, de que a unidade é uma pura abstração, que não se compreende na prática senão em oposição à ideia de pluralidade, e que é a ideia de pluralidade que nos levou a construir a ideia de unidade, poderíamos responder-lhe que sem a unidade não haveria possibilidade da pluralidade, porque esta é um múltiplo de uns.

Na esfera gnoseológica, o conhecimento imediato, intuitivo, implica o objeto-um do conhecimento. Se é uma totalidade de unidades que se apresenta, sem uma unidade, não se daria a suficiente positividade objetiva que permitisse o conhecimento. Quando se conhece conhece-se alguma coisa. E esse alguma coisa é uma unidade, de certa modalidade, mas unidade sempre, pois, do contrário, esfacelar-se-ia em nada.

A construção posterior dos nossos esquemas noéticos é que tem levado alguns filósofos a subordinar a ideia de unidade, na sua gênese, à de pluralidade.

1

Já o dissemos, e repetimos, que, gnoseologicamente, a unidade se dá ao lado da pluralidade, mas ontologicamente somos obrigados a aceitar a sua prioridade, que não tem nada de cronológica, porque onde há e se dá o tempo, a unidade não antecede à pluralidade, porque há contemporaneidade entre ambas.

Não se deve confundir a unidade transcendental com a unidade quantitativa, pois a primeira é de natureza metafísica, enquanto a segunda é de natureza corpórea.

Na linguagem pitagórica, a estrutura geométrica de um ente, considerado onticamente, revela uma unidade quantitativa, enquanto a estrutura ontológica, que é a da forma, é uma unidade transcendental.

A unidade quantitativa não pode ser predicável a seres não corpóreos. O ser, enquanto tal, o Ser supremo, não é uma unidade quantitativa, mas uma unidade transcendental. Sua estrutura não é geométrica.

Na posição henológica, a sequência dos raciocínios seria a seguinte : não há pluralidade que na sua base não se funde na unidade, pois se a negássemos totalmente cairíamos no nada. Portanto a pluralidade exige a prioridade da unidade, do qual na esfera ontológica não pode caber a menor dúvida.

Na “Ontologia” examinamos as várias unidades, segundo as modalidades de ser, pois, tudo quanto é, é uma unidade, como tudo, que tem uma unidade, é. A unidade em si não tem uma definição essencial como não a tem o Ser, enquanto ser, mas apenas nominal. Não pertence ela a um gênero, nem podemos predicar-lhe uma diferença específica. E o que é perfeito em sisi mesmo não é definível, porque não tem finitude.

O número surge como a medida da pluralidade pela unidade. Portanto, há tantos números (tipos de números) quantos forem as modalidades da unidade. Se a modalidade for apenas a quantitativa, temos o número quantitativo (arithmós posootes de Pitágoras, que é o número da Logistiké, do cálculo, o número da aritmética, tomado abstratamente).

Se a unidade for de conjunto, teremos o número-conjunto; se tomada na sua coerência, formando um todo homogêneo, temo-la como tensão (arithmós tonós), e assim sucessivamente, como vetor, fluxo, functor, relação, analogia, etc. Portanto o campo da matemática não se restringe apenas ao das abstrações quantitativas, como se pensa comumente, mas ao campo da totalidade do ser. A matemática, no sentido pitagórico, é portanto a ciência mater, no sentido hierárquico, pois pode abranger a unidade sobre todos os aspectos. A Mathesis é a instrução, o saber supremo, e a filosofia, no sentido pitagórico, é apenas o afanar-se para alcançá-la, o “amor ao saber.” E é neste sentido que se deve entender a simbolização da Divindade, como o Grande Arquiteto do Universo, ou como o Grande Matemático, que surge em certas ordens, cujo verdadeiro sentido é este. A Mônada Suprema, que é Deus, (porque nele ser e conhecer se identificam) é o saber supremo, o saber absoluto e total, a mathesis superior, da qual participamos, gradativamente, através do esfôrço que desvela, que arranca os vens do que está oculto, e penetra no conhecimento profundo das coisas. Eis por que o itinerarium mysticum, a via symbolica é um caminho para alcançá-la, pois, graças aos símbolos, vamos apontando as perfeições de que eles participam particularmente, e que no supremo são em plenitude. É fácil, agorá, compreender o que indicam os dez planos do símbolo que estudamos anteriormente.

Tudo quanto se distingue de outro indica uma krisis aberta entre ele e o outro.2

E é nesse distinguir o que é do que não é ele, que realizamos a apreensão analítica da unidade, porque ela se realiza para nós, graças a uma diácrisis, ao realizarmos uma separação. É essa diferença que individualiza a unidade. E aqui há necessidade de se estabelecer a distinção entre a individualidade, a unicidade de fato, que é revelada por este ser, que enquanto tal, como existente, não é outro, e a unicidade ontológica, que lhe é dada pela forma, pelo seu esquema concreto, a haecceitas dos escotistas, que o torna único. Desse modo, todos os entes, em sua individualidade, apontam a uma unicidade de fato e a uma unicidade ontológica, se nos colocarmos naquele pensamento, o que se prestaria ainda a muitas discussões. A unicidade ontológica ou metafísica admite-se que não se dá no âmbito corpóreo, pois os indivíduos têm aqui em comum, a espécie. Mas o ser humano, por exemplo, pelo seu caráter pessoal, adquire uma irreiteirabilidade e insubstituibilidade, uma unicidade como a tem um Platão, um Aristóteles, para exemplificar. Como nenhum indivíduo, no plano terrestre, esgota a plenitude de sua espécie, a unicidade metafísica não é plena nele, como o é a de Deus, mas não podemos deixar de reconhecer que a individualidade participa da unicidade, e o ser humano ainda mais do que as coisas que estão aí.

Se procurarmos a unidade de fato, inevitavelmente nos entoa traremos ante a dualidade, porque o que revela unidade é um separar-se de outro.

As unidades de fato são sempre um apontar da dualidade. Na unidade são reunidos os elementos que com ela formam um todo. Essas unidades constituem uma superação sobre o mero aglomerado, porque há nelas, não apenas síncrisis (reunião) dos elementos separados, mas o surgimento de uma nova coesão do todo, que permite captar um novo esquema (uma tensão).

A síntese, que se revela aqui, aponta a unidade quando o todo constitui uma indivisão, quando assume o caráter de um indivíduo, de não-divisão (adwaita, dos hindus), com propriedades que não pertencem aos elementos componentes.

Não estamos aqui em face de uma abstração do homem, mas de uma realidade, pois a tensão revela-se quando o todo é apenas a soma das suas partes, como numa unidade de agregação (unitas aggregationis), mas é qualitativamente diferente delas, o que é propriamente a tensão. Há, na tensão, uma trans-imanência, um ultrapassar aos elementos componentes. E esta é a razão porque até em pensamentos panteísticos, encontramos uma transcendência no Grande Todo (Pan), porque se é o conjunto das suas partes, é ele qualitativamente outro.

Tal pensamento de que Deus fosse a tensão universal, encontramo-lo formulado em muitas ideias panteístas, cuja critica não cabe aqui, pois neste livro, interessamo-nos mostrar a relação entre símbolo e simbolizado, que obedece, em muitos aspectos, na escolha do símbolo, ao sentido do pensamento teológico aceito.

A tensão é para muitos uma “potência misteriosa”, que leva os elementos aglomerados a assumir (assumptio) uma individualidade qualitativamente homogênea enquanto tal, embora heterogênea quanto à constituição dos elementos componentes. Essa “especificidade”, (pois no todo tensional há o surgimento de uma nova espécie) é tema de estudos posteriores, como o fazemos na “Teoria Geral das Tensões.”

É da experiência humana que nosso espírito caracteriza-se, também pela tendência natural a reunir as partes em totalidades tensionais. Os estudos da Gestalttheorie e de todas as tendências holistas (de holós, em gr. totalidade) já nos ofereceram suficientes elementos para confirmar tal opinião. Os fatos do mundo são contidos em unidades, e podemos ter uma visão unitária de todo o universo. “Todo o universo está contido na Unidade”, dizia Pascal, reproduzindo, em outras palavras, a afirmação dos alquimistas gregos “En to Pan, Um é o Todo, a suprema unidade do Ser, unidade suprema, fora da qual nada é. Não sofre influências exógenas; é imutável e eterna unidade de tudo, infinita por não ter o que a finitize; infinita não por privação de fim, mas por essência.

Aceitação, porém, desses atributos da Grande Mônada, nos termos que acabamos de expor, provocam inúmeras aporias e abrem caminhos a debates sobre problemática. Um

ser essencialmente infinito não pode ser a soma de seres finitos. De qualquer forma deverá ser absolutamente transcendental. E eis aqui o ponto de divergência entre transcendentalistas, como os escolásticos, e panteístas em geral, como o são certos hermetistas, “esotéricos”, hinduístas, etc. (NA: Tais temas pertencem à Teologia. Em nossos livros “O Homem perante o Infinito” e “O problema da Criação”, onde examinamos os temas da teologia e da teodiceia, estudaremos os argumentos pró e contra essas diversas concepções da divindade, bem como os mais expressivos argumentos em favor e contra a existência de Deus.)

“Do Um provém o Múltiplo, do Múltiplo provém o Um.” E este um pensamento heracliteano, que encontramos no conceito de Aspir e Espir do Ser, na Palavra da suprema unidade hindu.

Toda marcha para a unidade é para o Um, e daí ser o número 1 símbolo da unidade, a totalidade homogeneizada, e, em última instância, a Divindade Suprema, o UM.

Encontramos na “Imitação de Cristo” estas palavras “Aquele que tudo encontra na Unidade, que tudo relaciona à Unidade e que vê tudo na Unidade, pode ter o coração estável e permanecer em paz com Deus” (L-3) São as mesmas palavras do Bhagavada Gita: “Aquele que me vê em toda parte (UM) e que vê tudo em mim não pode mais perder-me nem estar perdido para mim”. Ver a identidade do Um em toda a parte é ser um perfeito Yoga – yoga.

Tudo quanto é, tudo quanto existe no mundo tempo-espacial (cronotópico) volve ao Um, para outra vez retornar a ser outra coisa.

O Um é o Tau dos chineses, é Brahman, é o Pai, é Kether é En Soph o “antigo dos antigos.” O Um em todas as crenças é a unidade suprema da Divindade.

E neste fragmento de Pitágoras – Filolao temos o pensamento pitagórico : “Ele é um Deus que dirige tudo, sempre Um, sempre Só, imutável, semelhante a si mesmo, e diferente de tudo o mais.”

Pe. Schmidt, em seus trabalhos de antropologia cultural, reuniu provas bem fundadas de que o monoteísmo é a primeira manifestação religiosa, da qual o politeísmo decorre, pela hierarquização inferior das potências universais. Em todas, há sempre o UM, primeiro, ao qual todos os deuses se subordinam. Referimo-nos naturalmente ao pensamento esotérico das religiões e não ao exotérico, ao popular, que é comumente politeísta. Mas, na investigação do pensamento popular politeísta encontra-se facilmente a raiz do Um.3

A Trindade cristã não nega o Um, porque são três pessoas numa só substância, tema que oferece grandes aporias e que cabe à teologia estudar.4

O Um recebe uma simbolização universal nas religiões de todos os povos. O símbolo mais comum é o da circunferência com um ponto central. Vemos também o Sol ou a sua figura, indicando a Unidade. Entre os hebreus, temo-lo simbolizado pela primeira letra do alfabeto Aleph.

O número 1 simboliza a individualidade, quer microcósmica quer macrocósmica. Em tudo que podemos reduzir a 1, encontramos uma unidade.5


  1. O conhecimento, quer intuitivo, quer o racional (este se processa posteriormente) implicam a presença prévia de um esquema que se acomode ao fato e o assimile. No conhecimento, portanto, está implícita a unidade, porque o esquema, de qualquer forma que seja, é uma unidade e o noema, o resultado do conhecimento, forma uma totalidade; uma unidade, portanto. Desse modo, é claro que no conhecimento, de qualquer espécie que seja, a unidade está presente, pois sem ela não se daria o conhecimento. Mas conhecer é sempre separar algo, como unidade, da heterogeneidade em que está imerso. Logo se patenteia que, no conhecimento, há a presença da unidade e da pluralidade do homogêneo e do heterogêneo. A formulação posterior do conceito de unidade e de multiplicidade, que já implica o operativo do espírito, que é a função reacional, não cria nem uma nem outra, mas apenas confirma o que se dá confusamente na experiência humana. Os esquemas noético-eidéticos de unidade e multiplicidade, de homogeneidade e heterogeneidade são separados, abstraídos, pela ação abstratora do nosso espírito (o intellectus agens dos escolásticos) posteriormente. A compreensão nítida dessa verdade gnoseológica, que propomos, permite compreender os unilateralismos que estudamos no corpo deste :artigo, que são frutos de uma tomada de posição não concreta em face do conhecimento, como é fácil perceber-se.[]
  2. O tema da krisis é por nós estudado em “Filosofia da Crise” uma de nossas obras de temática e problemática filosóficas.[]
  3. Há uma inegável positividade no pensamento de P. Schmidt, embora se possam fazer restrições à tese que esboça. Em nosso livro “O Homem perante o Infinito” onde abordamos temas de teologia, discutiremos as razões desse famoso antropologista e as dos que se opõem a ele, que também revelam aspectos positivos. A conciliação entre a tese monoteísta e a politeísta não é difícil de alcançar-se desde que dialeticamente possamos evitar as unilateralidades excludentes que tais pensamentos apresentam, colocando-as, consequentemente, em outro plano.[]
  4. Propriamente não se trata de substância, mas de hypostasis, que em grego tem um sentido mais claro que o termo latino substancia, quando empregado aqui. Esse tema será por nós abordado nos livros de Teologia, onde examinamos a problemática correspondente.[]
  5. O mais elevado ideal pitagórico, no campo do conhecimento, é a sua matematização, não em sentido meramente quantitativo, mas sobretudo, qualitativo. Quando tratamos da anterioridade e da posterioridade, estamos matematizando estes dois termos, que passam a ter significados precisos. Assim podemos falar em efetivo (o que faz) e efetível (o que é feito), independentemente de serem corpóreos ou não. Temos, assim, uma ideia do que é a matematização do conhecimento, como a pretendem os pitagóricos de grau mais elevado, e que têm tido, no ocidente, diversas manifestações, como, para exemplificar, a de Duns Scotus, ao abordar os temas teológicos. Em “Pitágoras e o Número” abordaremos este ponto com a suficiente exemplificação.[]

Abellio, Raymond (29) Antiguidade (26) Aristotelismo (28) Barbuy, Heraldo (45) Berdyaev, N A (29) Bioética (65) Bréhier – Plotin (395) Coomaraswamy, Ananda (473) Enéada III, 2 (47) (22) Enéada IV, 3 (27) (33) Enéada IV, 4 (28) (47) Enéada VI, 1 (42) (32) Enéada VI, 2 (43) (24) Enéada VI, 3 (44) (29) Enéada VI, 7 (38) (43) Enéada VI, 8 (39) (25) Espinosa, Baruch (37) Evola, Julius (108) Faivre, Antoine (24) Fernandes, Sergio L de C (77) Ferreira da Silva, Vicente (21) Ferreira dos Santos, Mario (46) Festugière, André-Jean (41) Gordon, Pierre (23) Guthrie – Plotinus (349) Guénon, René (699) Jaspers, Karl (27) Jowett – Plato (501) Kierkegaard, Søren Aabye (29) Lavelle, Louis (24) MacKenna – Plotinus (423) Mito – Mistérios – Logos (137) Modernidade (140) Mundo como Vontade e como Representação I (49) Mundo como Vontade e como Representação II (21) Míguez – Plotino (63) Nietzsche, Friedrich (21) Noções Filosóficas (22) Ortega y Gasset, José (52) Plotino (séc. III) (22) Pré-socráticos (210) Saint-Martin, Louis-Claude de (27) Schuon, Frithjof (358) Schérer, René (23) Sophia Perennis (125)