O FOGO
O fogo não fala aos animais mas, fala ao homem, e a linguagem que ele usa só o homem podia entendê-la.
Ante o fogo, o animal se espanta e foge, mas o homem espanta-se e aproxima-se. É que entre ele e o fogo, há alguma coisa que os irmana. Em todos os povos, o fogo é objeto de culto, e do culto mais profundo. É o homem o único ser que se apropria do fogo e o domina, sem dominá-lo.
Misto de bem e de mal, o homem dirige-o apenas buscando-lhe o bem que ele oferece.
E a lenda de Prometeu expressa bem a significação que o fogo tem, na formação do próprio homem. Os raios solares, fonte da vida, encontram no fogo algo que se lhes assemelha. A luz solar ilumina a terra e o fogo também ilumina, embora em grau menor.
O fogo é assim o símbolo do sol, que é o símbolo do Ser Supremo.
Nos mitos hindus, Agni nasce do sol e do fogo e é, com fogo, que se lhe prestam culto.
O fogo está ligado à vida, que é uma chama, que fermenta, cresce, até que finalmente se apaga. Mas a chama da vida brilha sempre, perdurando pelas cintilações das vidas individuais que surgem e perecem.
Os pedaços de madeira trazem em si o gérmen do fogo, e graças ao atrito deixam-no surgir. É Agni que é despertado, é o filho celeste que surge, é a criança que nasce, depois desenvolve-se e multiplica-se em seus semelhantes, como o fogo que se multiplica sempre em fogo.
O culto do fogo encontramo-lo em todos os povos, nos lares, nas lareiras dos romanos, nas nossas noites de São João, em todos os rituais à volta do fogo, dos diversos povos.
É a chama mantida pelas vestais, a chama dos lares, que simboliza a família. E a casa em que o fogo morreu e se extinguiu, perdeu a sua potência, por isso ainda conservamos, sem bem compreender a sua significabilidade, o fogo aceso nas igrejas, as piras dos atletas, as velas acesas dos templos, como encontramos também as flamires dos romanos, a vesta, o fogo do Estado, cujas sacerdotisas, as vestais, amparavam e serviam.
0 facho ardente do renovador, do que traz a luz, do que aponta o amanhã, pois nas alvoradas crescem as chamas no horizonte, são símbolos universais. Todas as coisas são destruídas pelo fogo, e todas em fogo se transformam, eis a razão por que encontramos na arquê, princípio primordial de muitas doutrinas, o fogo, como o símbolo do principio fluídico, do poder que se oculta, da matéria, das energias eletrônicas da física moderna, princípio de todas as coisas corpóreas, manifestação ainda do poder supremo. É assim o fogo símbolo do princípio e do fim, onde as coisas principiam e onde as coisas terminarão, porque, nas lendas das diversas crenças, o universo se gerou do fogo e ao fogo retornará. O nosso mundo foi antes uma bola de fogo e a ela retornará. É o fogo também o símbolo do devir, o símbolo da heterogeneidade constante das coisas, mas também da homogeneidade, porque, como já mostrava Buda a seus discípulos, a chama é sempre vária e é sempre a mesma. Depois dela, quando ela se extingue, resta apenas nirvana. E para dar a vivência do Nirvana aos discípulos, ele a expressava através da simbólica da chama que se apaga. Nada mais restava da chama, era agora o outro, o negativo o nirvana, o ser sem determinações.
Encontramos (segundo L. von Schroeder) três classes do fogo sagrado nos povos indo-europeus : o fogo do sacrifício, o fogo da defesa, e o fogo do lar. Entre os hindus, Agni, o fogo do sacrifício, é também o mensageiro, que põe em comunicação os homens com a divindade e o sacerdote que faz a oferenda.
Mas também torna-se o fogo do lar, o protetor dos rebanhos, e fogo de proteção e de esconjuro. O fogo vem de três origens: primeira da terra, das árvores (masculina, ficus religiosa; feminino, acotio Sama, que esfregados, um contra o outro, produzem o fogo) ; segunda do espaço, a nuvem da tempestade; terceira do céu, o sol.
Diz Geiger que o fogo, para os crentes de Mazda, é a elemento mais sagrado e puro, o resplendor de sua suprema divindade, de Ahura-Mazda. É o símbolo da pureza moral e um meio de repelir os demônios.
Em cada casa de família, existia um fogo conservado pelo chefe da família.
Nos gregos, L. von Schroeder cita Apolo como o deus originário da luz e do fogo, que era venerado numa labareda sobre um trípode e que servia para se fazerem os oráculos, como entre os persas. Também era considerado protetor do fogo do lar, da cidade, das colônias e também dos rebanhos.
Hefaístos, nos gregos, era o deus do fogo material e do fogo da forja. A Héstia, deusa do fogo, particularmente do lar, também protetora do fogo da cidade e do Estado, eram dadas oferendas, antes e após cada sacrifício.
Corresponde-lhe, nos romanos, o deus Vulcano, deus do fogo, da forja, do incêndio, do fogo destruidor, mas também da família, do Estado, do lar. Sobre a família e o Estada pela Vesta, servida pelas virgens vestais, as encarregadas do fogo sagrado, da cidade e do Estado.
Entre os germânicos, a figura misteriosa e dúplice de Loki, mais próxima a Vulcano do que a Agni-Apolo, por seu caráter vivo e astuto, apresenta uma nota especial, que Sophus Bugge, citado por Schroeder, explica pela influência da figura cristã de Lúcifer.
Entre os eslavos, lituanos e letões, há noticias de fogos sagrados, não porém de verdadeiros deuses do fogo. “Na época primitiva dos árias, diz L. Von Schroeder, o culto do fogo do lar era diferente do culto do fogo como força da natureza e do deus masculino do fogo.
0 fogo do lar recebe seu culto por motivos sociais. É considerado como um ser de natureza superior, ao qual se oferecem também oferendas de alimentos, e o qual era conservado com respeito, e honrado com cerimônia, sobretudo nas festas de casamento, onde devia acender-se o fogo de um novo lar. O culto do fogo, como grande força elementar, parece, entretanto, que não é separável de o do sol, até tal ponto que as festas do sol e da vida eram ao mesmo tempo festas do fogo. O culto restante compreendia o sol e o fogo, e a cerimônia do novo fogo, mediante a fricção das madeiras, verificava-se especialmente nas festas dos solstícios.”
Frazer revela que no culto à Diana em Nemi, acendiam-se tochas nos bosques, onde a veneravam, e as estátuas de bronze representavam a deusa com uma tocha na mão direita levantada, e que as mulheres, cujas súplicas fossem escutadas por ela, iam ao santuário da deusa, levando tochas acesas.
Diz Frazer que há analogia desse costume com o católico de levar velas à igreja em cumprimento de promessas.
Diana também se chamava Vesta, o que esclarece a conservação de um fogo sagrado e perpétuo no seu santuário. Na magia do fogo, vemos em algumas tribos o sacerdote não sair do templo, enquanto os guerreiros estão na guerra, porque dia e noite é preciso manter o fogo aceso, e se se deixar o fogo apagar, crêem que sobrevirá um grande malogro.
Não só nas tribos primitivas encontramos a influência que o fogo exerce. Diz-nos ainda Frazer em seu livro, que camponeses da Europa moderna, como por exemplo os camponeses franceses, acreditam que os sacerdotes possuem o poder de extinguir as chamas de um incêndio.
Um historiador árabe conta que havia uma tribo de nômades, os quais, para fazer cessar uma chuva, cortavam um ramo de certa árvore do deserto, prendiam-lhe fogo e, depois atiravam água no ramo e a fúria da chuva cessaria, da mesma maneira que a água, ao cair sobre o ramo ardente o apagava.
Vamos encontrar também entre os lituanos a conservação de fogos perpétuos, feitos com lenha de certos carvalhos, em homenagem a um de seus deuses. Esse fogo era aceso com a fricção da madeira sagrada.
Flechas incendiárias eram atiradas em direção ao sol por ocasião de um eclipse, o que revela um desejo de domínio mágico do sol, contado por Frazer, entre tribos peruanas.
Conta-nos Frazer que nos bosques de Cambodia “vivem dois soberanos conhecidos como o rei do fogo e o rei da água.
O rei do fogo é mais importante dos dois e seus poderes sobrenaturais nunca foram discutidos. Oficia nos casamentos, festas e sacrifícios em honra de Yan, o espírito, etc.”
O fogo também está presente nas festas, em toda a Europa, dos camponeses, que, em determinados dias do ano, acendem fogueiras e dançam à volta dele, ou saltam sobre fogueiras, como em nossas festas de São João.
Também nas corridas pelos campos, com tochas acesas, por entre árvores frutíferas, para afugentar pragas. Há ainda a queima de bruxa, no meio de uma fogueira, que encontramos, com certa analogia, na queima do Judas.
Há tribos árabes ou de línguas árabe que acendem as fogueiras e saltam, repetindo o salto sete vezes.
Além de julgarem o fogo purificador, também usam as cinzas das fogueiras como benéficas, e passam-nas pelo corpo e cabeça.
Pensam que ao saltar a fogueira livram-se de todas as suas desgraças. Em suma, encontra-se a simbólica do fogo em toda a Europa, em fogueiras acesas com madeiras especiais ou de qualquer outra, mas sempre o fogo tem o sentido purificador, e afugentados de desgraças, pragas nas plantações, maus espíritos, etc.
Pensa Frazer que a queima de bruxas talvez substitua o sacrifício de um ser humano ou animal em tempos remotos, quando um membro da comunidade era escolhido para ser o sacrificado.
Há ainda na simbólica, ademais, a significação do fogo como ato e a água como potência. O fogo divino é o ato puro, o ato do Ser Supremo que não tem qualquer hibridez. Este fogo, o fogo da nossa experiência, é assim o símbolo do fogo divino, eminentemente puro. Por purificar, o fogo da nossa experiência participa de um dos atributos da divindade e essa a razão principal porque o vemos presente em todas as crenças religiosas.