CONCEITO E OBJETO DA ONTOLOGIA
Na Metafísica, IV, 1, Aristóteles empregava estas palavras: “Há uma ciência que estuda o Ser enquanto ser, e seus atributos essenciais. Ela não se confunde com nenhuma das outras ciências chamadas particulares, pois nenhuma delas considera o Ser em geral, enquanto ser, mas, recortando uma certa parte do ser, somente desta parte estudam o atributo essencial; como por exemplo, procedem as ciências matemáticas.
Mas já que procuramos os primeiros princípios e as causas mais elevadas, é evidente que existe necessàriamente alguma realidade à qual tais princípios e causas pertencem, em virtude de sua própria natureza. Se, pois, os filósofos, que buscavam os seres, procurassem esses mesmos princípios, resultaria daí necessariamente que os elementos do Ser são elementos deste, não enquanto acidente, mas enquanto ser. Eis por que devemos estudar as causas primeiras do Ser enquanto ser.”
Estas palavras de Aristóteles sobre a filosofia primeira (prote philosophia, a philosophia prima dos escolásticos) são ainda o melhor e mais claro enunciado sobre a ciência em que ora penetramos, a Ontologia ou Metafísica Geral, assim também chamada, porque estuda o ser enquanto ser, isto é, tomando-o na sua maior universalidade.
Essa compreensão da Ontologia, no entanto, foi modificada por filósofos modernos, que se colocaram sob a égide de Kant. Para este, conhecemos os fenômenos, e sabemos da existência do númeno, mas deste não temos nenhuma experiência sensível, isto é, não o intuímos pela intuição sensível, mas apenas mediante uma dialética, que Kant chamou de transcendental.
A Ontologia seria, então, a ciência do númeno. A ela caberia o papel especial de estudar o que permanece atrás dos fenômenos, de explicá-los, enquanto os fenômenos caberiam às ciências particulares.
Por isso, modernamente, entre alguns filósofos, costuma-se empregar o termo ontológico, como referente ao ser elucidado, ao ser em geral, e ôntico ao que se refere ao ente, tomado determinadamente o fato de ser, afim de evitar a confusão entre realidade ontológica e realidade ôntica, que, inseparáveis na ordem do ser, são, no entanto, distintas na visualização filosófica. Note-se ademais que tal aceitação terminológica não implica a aceitação da doutrina kantiana, mas apenas nasce ela de um desejo de clareza, ideal de quem quer verdadeiramente realizar alguma coisa na filosofia.
Há outros termos empregados também neste sentido como ontal, côisico, róico, que encontramos entre filósofos modernos.
Esse modo de considerar não é, porém, matéria pacífica e universalmente aceita na filosofia. Os escolásticos não faziam tal distinção, e consideravam tais expressões deste modo: ôntico significa o ente ainda não descoberto pelo espírito, como intelligibile in potentia, como já examinamos na “Teoria do Conhecimento”, e ontológico, o ente já esclarecido, descoberto, intellectum in actu. Uma verdade ôntica é uma verdade que está no ser; quando em ato no intelecto é uma verdade ontológica. Ôntico, portanto, pertence à imanência do ente e ontológico à imanência do ser, captada transcendentalmente.
Em nossa linguagem filosófica, diríamos que ôntico refere-se a toda a esquemática imanente ao ser, tomado in genere ou não, como fato de ser, extra mentis, independente do intelecto, isto é, dos esquemas noéticos de qualquer espécie. E ontológico refere-se a tais esquemas noéticos, (logos do ontos) à esquemático captada pelo intellectum in actu, cuja correspondência e alcance, paralelismo ou não, cabe à Ontologia elucidar.
A Ontologia, como ciência filosófica, surge na cultura grega, pela ação construtiva de Aristóteles, que a chamava de próte philosophia, filosofia primeira, e também de theologikô epistéme, ciência divina, porque estuda ela os seres mais divinos até alcançar o Primeiro Motor, o Ato Puro.
Na filosofia medieval, e sobretudo na escolástica, a Teologia separa-se da Ontologia, porque a transcendência do Ato Puro, ontologicamente examinado, não alcança a totalidade da transcendência do ser infinito, que já é tema fundamental daquela disciplina. Deus não é um objectum da epistéme, da ciência filosófica, mas o termo dessa ciência, a fim a ser alcançado por ela, e não dado como objeto a ser analisado, mas a ser conquistado.
Já tivemos oportunidade, em outros trabalhos nossos, de nos referirmos à classificação dada por Andrônicos de Rodes aos trabalhos de Aristóteles que deveriam ser editados logo após os livros sobre a física, que ele intitulou de ta (bíblia) metá tá physiká, de onde latinizou-se o termo metaphysica. Um exame cuidadoso da obra aristotélica nos mostra à saciedade que não se trata apenas de uma classificação, mas da consciência que tinha Aristóteles dessa ciência. Com a escolástica, tais temas, estudados na obra famosa e fundamental de Aristóteles “Metafísica”), passam a construir uma ciência rigorosamente delimitada, que estudará o ser na sua imanência e na sua transcendência (post physicanì et supra physicam), independente da física experimental. Não é o estudo do ser separado do físico e do sensível, como de per si subsistente, como poderia estabelecer-se, fundando-se numa posição platônica ou platonizante, ou melhor numa posição como frequentemente, no decurso do processo filosófico, considerou-se ser o genuíno pensamento platônico, ao que tantas vezes temos nos oposto e procurado esclarecer, e que ainda faremos, no futuro, com melhores fundamentos.
A Ontologia, portanto, toma o ser concretamente, em toda a sua densidade, embora examine-o pelos métodos que lhe são próprios, realizando a aphairesis (abstração) do físico e do transfísico (como o exemplo já dado do exame da rotundidade independentizado ontologicamente apenas do objeto rotundo). Não é da verdadeira metafísica, como já vimos, realizar essa separação, de funcionalidade noética, e considerá-la, depois, como física, o que leva aos perigos do abstratismo, que é a forma viciosa da abstração, e que consiste no considerar onticamente o que é separado apenas ontologicamente.
Impõe-se que se faça aqui tais explicações para evitar a caricatura que se costuma fazer da Ontologia, o que leva a muitos a passar por ela de largo, em vez de se embrenharem em seu estudo, de magna importância para a boa visualização filosófica.
Desta forma, a Ontologia procura penetrar na intimidade do ser, na sua realidade mais íntima, na sua exuberância concreta, desassociando-o, pela atividade noética, mas jamais esquecendo (e assim procede a boa metafísica) de devolver à sua concreção o que, por aphairesis, foi separado.
O termo Ontologia foi cunhado propriamente por Johannes Clauberg e popularizado por Wolf. Consequentemente se pode dizer que a próte philosophia de Aristóteles, a philosophia prima dos escolásticos, a Ontologia, ou a Metafísica Geral, e em algumas vezes a Metafísica, referem-se à mesma ciência do ser enquanto ser, que é a Ontologia.
No modo de considerar a Ontologia, houve, entre os escolásticos, uma dualidade de posição. Os que seguem a linha tomista, consideram-na como o coroamento da filosofia, e deve ser precedida pela lógica, pela cosmologia, pela psicologia e pela filosofia matemática. Outros, porém, consideram-na como ciência fundamental, gestada na Gnoseologia, subdividindo-a em metafísica geral e numa metafísica especial, referindo-se esta à metafísica do homem, Antropologia filosófica, e à metafísica do mundo material, à Cosmologia.
No entanto, seguindo a ordem de publicação dos livros de nossa Enciclopédia, nossa posição é intermédia ante as duas acima citadas. Iniciamos por uma ampla visão geral, introdutória da filosofia, em “Filosofia e Cosmovisão”, seguimos pela “Lógica e Dialética”, para estabelecer os métodos do estudo que empreendemos, examinamos em suas linhas gerais a psicologia em “Psicologia”, fizemos a análise, a síntese e a concreção do processo gnoseológico, em “Teoria do Conhecimento”, para, agora, em “Ontologia”, penetrarmos no exame generalizado do ser enquanto ser, e prosseguirmos, nas obras próximas, no estudo dos campos regionais do ser, o que será realizado por nossas obras de breve publicação como “Teologia”, “Axiologia”, “Simbólica”, “Estética”, “Noologia”, etc.
Dessa forma, se não colocamos a Ontologia tardiamente, também não a colocamos prematuramente. Preferimos pô-la onde e quando o desenvolvimento do estudo do processo ontológico começa a exigir respostas às fundamentais perguntas da Ontologia.