Por “crueldade” do real entendo em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. Não me estenderei sobre este primeiro sentido, mais ou menos conhecido de todos, e sobre o qual aliás tive ocasião de falar alhures mais do que abundantemente; basta-me lembrar aqui o caráter insignificante e efêmero de toda coisa do mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade — caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la a distância e de atenuar seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto) designa a carne escorchada e ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ou acompanhamentos ordinários, no presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta. Assim, a realidade é cruel — e indigesta — a partir do momento em que a despojamos de tudo o que não é ela para considerá-la apenas em si-mesma: tal como uma condenação à morte que coincidisse com sua execução, privando o condenado do intervalo necessário à apresentação de um pedido de indulto, a realidade ignora, por apanhá-lo sempre de surpresa, todo pedido de apelo. Da mesma forma que o que é cruel na pena capital é por um lado ser condenado à morte, por outro ser executado, assim também o que é cruel no real é de certo modo dupla por um lado ser cruel, por outro lado ser real — com esta diferença notável que, no caso da condenação à morte, a execução não acompanha necessariamente a condenação, enquanto que no caso da realidade a execução acompanha automaticamente a condenação para fundir-se com ela, para, se posso dizer assim, situar de uma só vez suas “sentenças” a nível da execução. Em todo caso, uma distinção mental é aqui possível, embora seja impossível distinguir a nível dos fatos. Quero dizer que se pode, bastante ordinariamente, e mesmo, em certa medida, bastante razoavelmente, julgar que a realidade é cruel por natureza, mas também, e por uma espécie de último refinamento de crueldade, verdadeiramente real. É mais ou menos o que exprime Proust no início de Albertina disparue (A fugitiva): “Já é bem triste que Albertine tenha me deixado com armas e bagagens — mas o pior é pensar ainda que tudo isso é verdadeiro” (Proust comenta esta distinção escrevendo que “em psicologia, o sofrimento vai mais longe do que a psicologia”; a meu ver, poderia dizer mais exatamente que o sofrimento vai mais. longe em realidade que todas as representações ou antecipações que se possa fazer dele). Um depressivo de minhas relações exprime habitualmente sua queixa sob uma forma comparável e altamente significativa, embora esta possa parecer apenas uma absurda tautologia: queixando-se, não somente de que a existência seja, a seus olhos, horrível, mas ainda e sobretudo de que ele tenha razão de considerá-la como tal. Não somente a verdade é horrível, declara geralmente em suas crises de abatimento, mas além disso é verdade que ela o seja — ela é efetivamente horrível. Em suma, ele admitiria, a rigor, que a realidade fosse triste; em compensação, o que o abate e, a seus olhos, passa dos limites é um tormento suplementar decorrente da ideia de que uma verdade triste é, ao mesmo tempo, e por cúmulo de infelicidade, uma verdade verdadeira — ou ainda, o que quer dizer o mesmo, que uma realidade penosa é também, e por cúmulo de crueldade, uma realidade real. Em outras palavras — e é justamente o que eu queria sugerir evocando a dupla crueldade do real —, parece que o mais cruel da realidade não reside em seu caráter intrinsecamente cruel, mas em seu caráter inelutável, isto é, indiscutivelmente cruel.