Filosofia – Pensadores e Obras

religião

(lat. religio; in. Religion; fr. Religion; al. Religion; it. Religioné).

Crença na garantia sobrenatural de salvação, e técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia. A garantia religiosa é sobrenatural, no sentido de situar-se além dos limites abarcados pelos poderes do homem, de agir ou poder agir onde tais poderes são impotentes e de ter um modo de ação misterioso e imperscrutável. A origem sobrenatural da garantia não implica necessariamente que ela seja oferecida por uma divindade e que, portanto, a relação com a divindade seja necessária à religião: na realidade, existem religião ateístas, como o budismo primitivo, retomado e defendido neste seu caráter por escolas posteriores (cf. G. Tucci, Storia della filosofia indiana, pp. 71 ss.; 312 ss.). Além da determinação da relação do homem com a divindade, a função de demonstrar a existência desta e de esclarecer suas características e funções em relação ao homem e ao mundo sempre foi atribuída mais à filosofia que à religião; o cumprimento dessa tarefa pode até ter caráter anti-religioso, como aconteceu no epicurismo, que pretendeu estabelecer ao mesmo tempo a existência da divindade e sua indiferença para com o mundo e os homens, regulando com base nisso as relações da divindade e do homem. (Epicuro, Carta a Meneceu, 123-24; Filodemo, De pietate, p. 122; fr. 38, Usener). Por outro lado, hoje, para alguns teólogos, a relação entre o homem e Deus é artigo de , e não de religião, porque não depende das formas míticas que a religião assumiu e é constitutiva da existência humana no mundo (v. ; Deus; morte de Deus).

Em qualquer caso, a salvação de que a religião pretende ser garantia não se refere necessariamente a este ou aquele mal do mundo: pode inclusive significar livrar-se do mundo, já que este é considerado um mal em sua totalidade, como de fato acontece no próprio budismo. Além disso, na definição proposta, convém sublinhar a diferença entre a crença na garantia sobrenatural e as técnicas que permitem obter ou conservar tal garantia. Por técnicas entendem-se todos os atos ou práticas de culto: oração, sacrifício, ritual, cerimônia, serviço divino ou serviço social. A crença na garantia sobrenatural é a atitude religiosa fundamental, podendo ser simplesmente interior e pessoal (religiosidade individual); ao contrário, as técnicas destinadas a obter e conservar essa garantia constituem o lado objetivo e público da religião, seu aspecto institucional. Uma religião natural é constituída simplesmente por essa atitude; uma religião positiva é constituída essencialmente por essas técnicas.

O conceito de religião compreende ambos os aspectos. Etimologicamente, essa palavra significa provavelmente “obrigação”, mas, segundo Cícero, derivaria de relegere. “Aqueles que cumpriam cuidadosamente todos os atos do culto divino e, por assim dizer, os reliam atentamente foram chamados de religiosos — de relegere —, assim como elegantes vem de elegere, diligentes de diligere e inteligentes de intelligere, de fato, em todas essas palavras nota-se o mesmo valor de legere, que está presente em religião” (De nat. deor., II, 28, 72). Para Lactâncio (Inst. Div., IV, 28) e S. Agostinho (Retract., I, 13), porém, essa palavra deriva de religare, e a propósito Lactâncio cita a expressão de Lucrécio “soltar a alma dos laços da religião” (De rer. nat., I, 930).

Deve-se notar também que o grego não possui o equivalente exato da palavra latina e moderna. A latreia significa serviço divino; portanto, refere-se apenas ao segundo dos elementos da religião S. Agostinho (De civ. Dei, X, 1) estabelecia a correspondência entre religio e threspeia, mas também esta palavra se refere exclusivamente às técnicas da religião.

As diferentes definições até hoje feitas de religião podem ser classificadas com base nos dois problemas fundamentais a que correspondem, a saber: I. Com base no problema da origem da religião, que na realidade é o problema do tipo de validade da religião; II. Com base no problema da função atribuída à religião, ou seja, o caráter específico da garantia que ela oferece à salvação do homem.

I. Como acontece também em outros casos, o problema da origem consiste na realidade em saber que tipo de validade se pretende atribuir à religião É possível distinguir três soluções para este problema, a saber: 1) a doutrina da origem divina da religião; 2) a doutrina da origem política; 3) a doutrina da origem humana da religião.

1) A doutrina da origem divina expressa o reconhecimento do valor absoluto (ou infinito) da religião É óbvio que a pretensão de ter origem divina ou sobrenatural é intrínseca em qualquer religião, já que todas elas afirmam ter como fundamento uma revelação originária que garante sua verdade ou consideram as crenças e as instituições com que se identificam continuamente confirmadas por testemunhos sobrenaturais, o que é o mesmo. Portanto, do ponto de vista da filosofia, o reconhecimento da origem divina ou do valor absoluto da religião concretiza-se na tese de que a religião é revelação. Pode-se dizer que essa tese nada mais é que a expressão filosófica do valor absoluto que a religião se atribui. Esse ponto de vista foi expresso com toda a clareza por Hegel: “No conceito da verdadeira religião, que é aquela em que está contido o Espírito absoluto, está posto essencialmente que ela é revelada, e revelada por Deus” (Enc., § 564). E acrescenta que “se a Deus for negada a revelação, não restaria outro conteúdo a atribuir-lhe senão a inveja. Mas, se é que a palavra espírito tem sentido, significa a revelação de si” (Ibid., § 564). Não é diferente deste o conceito que Schleiermacher tinha de R: “O universo é uma atividade ininterrupta que se nos revela a todo momento. Todas as formas que ele produz, todos os seres aos quais dá, pela plenitude da sua vida, uma existência particular, todos os acontecimentos que ele gera em seu seio sempre rico e fecundo, correspondem a uma ação que ele exerce sobre nós; assim, em aceitar cada coisa particular como parte do Todo, cada coisa finita como expressão do Infinito, consiste a religião” (Reden uber die Religion, 1799, II; trad. it., p. 39). Pode-se expressar essa mesma doutrina afirmando que a religião é a experiência do divino e que, como toda experiência, revela a realidade de seu objeto. Este era o conceito que Bergson tinha da religião autêntica, ou seja, o misticismo: “Se as semelhanças exteriores entre os místicos cristãos dependem de uma comunidade de tradições e de ensinamentos, seu acordo profundo é sinal de identidade de intuição, que pode ser explicada de maneira mais simples pela existência real do ser com o qual acreditam estar em comunicação” (Deux sources, III; trad. it., pp. 270-71).

2) A doutrina da origem política reduz a religião a um estratagema político: portanto, anula seu valor intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, “os antigos legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor das ações humanas, boas ou más, a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu próximo, por medo da vingança dos deuses”. Esse estratagema foi necessário porque “as leis realmente dissuadiam os homens de praticar violências às claras, mas eles as cometiam às escondidas”, de tal maneira que “algum homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os malvados se sentissem amedrontados mesmo no que fizessem, dissessem ou pensassem às escondidas” (Sexto Empírico, Adv. math., IX, 54). Concepções análogas recorrem de vez em quando na história da filosofia: podem ser reconhecidas no libertinismo e em algumas correntes do iluminismo e do marxismo.

3) A doutrina da origem humana considera a religião como formação humana, cujas raízes estão na situação do homem no mundo. Essa doutrina não está empenhada em atribuir à religião determinada validade, mas sim em compreendê-la como fenômeno humano e expressá-la num conceito suficientemente amplo para abranger todas as suas manifestações mais díspares. Essa concepção orientou-se para dois tipos de explicações. O primeiro considerou a religião como uma forma de satisfação da necessidade teorética, ou seja, de conhecimento. O segundo considerou que a religião é sugerida ao homem pela situação em que ele se encontra no mundo, substancialmente por suas necessidades práticas. Solução do primeiro tipo encontra-se em Epicuro, para quem a origem da religião está nas imagens oníricas e na necessidade humana de explicar a regularidade dos movimentos celestes (Lucrécio, De rer. nat., V, 1167 ss.). A religião seria mais contemplativa que prática. Hobbes foi o primeiro a atribuir-lhe origem prática; citando as palavras de Estácio “Primus in orbe deos fecit timor” ( Theb., III, 66l), Hobbes afirmava que a principal causa do aparecimento da religião é o temor que nasce da incerteza do futuro: “Por ser inegável que existem causas para todas as coisas que existem ou existirão, é impossível, para o homem que tenta prevenir-se contra os males que teme e obter os bens que deseja, deixar de viver em contínua preocupação com o porvir, de tal maneira que todos os homens, sobretudo os mais previdentes, vivem num estado semelhante ao de Prometeu.” É desse estado de temor, bem como da esperança de garantir os bens de que necessita e do desejo de atingir um conhecimento completo do mundo, que, segundo Hobbes, nasce a religião (Leviath., I, 12). Doutrina análoga, mas exposta de maneira mais pormenorizada, foi reapresentada por Hume era História natural da religião (1757). A religião não surge da contemplação, mas do interesse do homem pelos acontecimentos da vida e, portanto, das esperanças e dos temores incessantes que o agitam. Suspenso entre a vida e a morte, entre a saúde e a doença, entre a abundância e a privação, o homem atribui a causas secretas e desconhecidas os bens de que frui e os males pelos quais é continuamente ameaçado (Natural History of Religion, II, em Essays, II, p. 316). Voltaire expunha da seguinte maneira esse mesmo conceito: “É natural que um povo, assustado com o trovão, afligido pela perda de suas colheitas, maltratado pelo povo vizinho, sentindo todos os dias a sua fraqueza, sentindo por todos os lados um poder invisível, tenha finalmente dito: ‘Há algum ser superior a nós que nos faz bem e mal’” (Dictionnaire philosophique, 1764, v. Religion, II).

Essa doutrina eclipsou-se no início do séc. XX. Por um lado, mesmo o conceito romântico de religião como revelação ou sentimento do infinito foi compartilhado até por filósofos que negavam a validade da religião Feuerbach, p. ex., transformando a teologia em antropologia, afirmava: “A religião é a consciência do infinito: por isso, não é e não pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem da infinidade de seu ser, e não de sua limitação” (Wesen der Christenthum, 1841, § 1). Analogamente, Max Muller via a essência da religião na potencial capacidade humana de “apreender o infinito” ( Vorlesungen uber den Ursprung und die Entwicklung der Religion, 1880, p. 28). Embora, com essas expressões, se pretendesse ressaltar a origem humana da religião, lançava-se mão de conceitos que se prestavam mais a exprimir sua origem divina e seu valor absoluto. Por outro lado, também no campo da investigação sociológica, que começava a examinar as formas de religião dos povos primitivos, manifestava-se a tendência a considerar a religião como contemplação, interpretando-a como concepção do mundo (ou filosofia) certamente grosseira, mas não destituída de certa coerência. E. B. Tylor via a essência da religião primitiva no animismo, que é a crença em seres espirituais considerados presentes em todas as coisas e causadores de todos os eventos (Primitive Culture, 1871). Nesses termos, a religião seria uma metafísica da natureza. Segundo Durkheim, porém, ela seria metafísica da sociedade; para ele, religião é “o mito que a sociedade faz de si mesma”, no sentido de que “sociedade é a realidade que as mitologias representaram com tantas formas diferentes, mas que é a causa objetiva, universal e eterna das sensações sui generis de que é feita a experiência religiosa” (Formes élémentaires de la vie religieuse, 1937, p. 597). Isso quer dizer que a religião primitiva consiste em atribuir a uma suposta realidade as características da sociedade primitiva- as que essa sociedade considera essenciais para si mesma. Essas teses baseavam-se principalmente numa interpretação do totemismo: para Durkheim, o totem é símbolo da força que sustenta o indivíduo: a própria sociedade; nela, a mente primitiva haure todas as suas categorias para a interpretação do mundo. Assim, para Durkheim, a religião tem um caráter contemplativo, também atribuído a ela por outro grande sociólogo francês, Lucien Lévy-Bruhl, que expressa essa tese identificando com o misticismo não só a religião, mas a vida dos povos primitivos em sua totalidade (L’expérience mystique et les symboles chez les primitifs, 1938). Para todas essas correntes filosóficas e sociológicas, a religião é, em sua origem, um fato cognitivo: é uma tentativa de explicar o mundo ou de formar uma ideia do mundo com base em certo número de experiências mais frequentes na vida dos homens.

O retorno à concepção setecentista de religião, segundo a qual sua origem está na situação do homem no mundo, verifica-se apenas nas correntes mais modernas e críticas da sociologia. Foi W. Robertson Smith quem começou a insistir na importância assumida pelo segundo dos dois elementos (as técnicas) na religião primitiva. “A religião nos tempos primitivos não foi um sistema de crenças com aplicações práticas; foi um corpo de práticas tradicionalmente fixadas, às quais todos os membros de uma sociedade se conformavam naturalmente. Os homens criam regras gerais de conduta antes de começarem a expressar em palavras os princípios gerais; as instituições políticas são mais antigas que as teorias políticas e, de maneira semelhante, as instituições religiosas são mais antigas que as teorias religiosas” (Lectures on the Religion of the Semites, 1907, p. 16). Mais tarde, a obra de G. Frazer (The Golden Bough, 1911-14) mostrava a estreita conexão entre religião e magia, partindo da consideração de que o homem é dominado em primeiro lugar pela preocupação de controlar os acontecimentos naturais, com o objetivo de submetê-los às exigências da vida. A diferença entre magia e religião, segundo Frazer, consiste no seguinte: a primeira tende ao controle direto dos acontecimentos naturais, ao passo que a segunda procura os meios de tornar propícios os poderes superiores que dominam a natureza. Esta foi a doutrina mais aceita por sociólogos e filósofos. A. Loisy sustentava um ponto de vista bem próximo ao de Frazer (Essai historique sur le sacrifice, 1920) e B. Malinowski apresentava novas provas para a mesma tese. Segundo Malinowski, a religião e a magia surgem e funcionam em situações de tensão emocional: crises da vida, tentativas malogradas, morte e iniciação nos mistérios da tribo, amores infelizes e ódios insatisfeitos. religião e magia também têm em comum o fato de oferecerem uma saída para tais situações por meio de crenças e práticas que se referem ao domínio do sobrenatural. Distinguem-se contudo pelo fato de a magia utilizar técnicas limitadas e simples, enquanto a religião compreende um conjunto de técnicas; a magia limita-se a uma classe de pessoas que faz dela profissão, ao passo que a religião é assunto de todos, e cada indivíduo participa dela ativamente. Por fim, ambas têm funções diferentes: a da magia é suprir a deficiência ou a imperfeição dos instrumentos naturais com instrumentos sobrenaturais, enquanto a função da religião é fortalecer certas atitudes especiais, como a coragem e a confiança na luta contra as dificuldades (Magic, Science and Religion, 1925). Não muito diferente desta, embora expressa em termos teológicos e místicos, foi a tese defendida por Rudolf Otto em seu livro intitulado O sagrado (1917). Segundo Otto, deriva do medo o sentimento de estar em presença de um poder superior, que se cristaliza naquilo que ele chama de tremendum ou maiestas; deriva do sentimento de desesperança, impotência, insignificância o sentimento criatural descrito no Antigo Testamento; e das fantasias compensadoras nasce o conceito daquilo que é completamente outro, que se mistura aos acontecimentos mais corriqueiros sem deixar de parecer novo e estranho. Assim, os ingredientes do sobrenatural eram atribuídos, também por Otto, à situação do homem no mundo. Esse foi o ponto de partida das mais modernas teorias da religião. Segundo Freud, a religião “dá aos homens informações acerca da fonte e da origem do universo, garante-lhes proteção e felicidade final apesar das cambiantes vicissitudes da vida e guia seus pensamentos e suas ações com preceitos apoiados na força da autoridade” (A New Series of Introductory Lectures on Psycho-Analysis, 1933, P- 220). Com esses fundamentos, Freud acredita que a religião consiste na crença de um pai sobrenatural que protege os homens dos perigos, recompensando-os ou punindo-os conforme o caso. Assim, a relação entre o homem e a divindade estaria moldada na relação entre pai e filho (Ibid., pp. 222 ss.). Sem levar em conta o fundo psicanalítico desta concepção, pode-se dizer que ela não difere muito das outras mencionadas anteriormente: a religião é entendida como corretivo, defesa ou protesto diante da situação de incerteza que o homem encontra no mundo. Este é também o conceito que Bergson apresenta de religião estática, à qual ele opôs a religião dinâmica (o misticismo). religião estática seria, pois, “a reação defensiva da natureza contra o poder desagregador da inteligência”, no sentido de que a inteligência mostra claramente ao homem a incerteza e os perigos da vida, bem como a inexorabilidade da morte, enquanto a religião seria o conjunto das reações defensivas contra as representações intelectuais da condição humana no mundo (Deux sources, 1932, cap. II, trad. it., pp. 131 ss.). Estritamente sobre a religião primitiva, tese análoga foi defendida com base em ampla documentação por P. Radin em seu livro sobre a religião dos primitivos (Primitive Religion, its Nature and Origin, 1937).

II. O segundo dos problemas aos quais as definições de religião já propostas pretendem dar resposta é o da função específica da religião Esse problema pode ser entendido em dois sentidos. Em primeiro lugar, para o problema da garantia de salvação que a religião pretende oferecer ao homem, é possível distinguir três soluções principais: 1) a religião como meio de libertar-se do mundo; 2) a religião como verdade; 3) a religião como moralidade. Em segundo lugar, o próprio problema pode ser entendido do ponto de vista da função exercida pela religião na sociedade ou na economia geral da vida humana (4).

1) A garantia que a religião pretende oferecer ao homem pode ser antes de mais nada a de libertá-lo do mundo, que é considerado um mal. Essa é a doutrina do budismo: “Não se deve fruir aquilo que nasce e se transforma, aquilo que se forma e constitui, que é instável, dependente da velhice e da morte, fonte de doenças, frágil, surgido do trânsito dos alimentos. Fugir desse estado significa encontrar outro estado, tranquilo, situado além do domínio do pensamento, estável, não nascido, não formado, sem dor, sem paixão, felicidade que põe fim às condições de miséria e destrói para sempre os elementos da existência” (Itivuttaka, 43, trad. Pavolini). Esse estado de destruição da existência chama-se nirvana. Mas, segundo o próprio budismo, o nirvana também é o estado de bem-aventurança de quem, já nesta vida, eliminou o desejo e, portanto, o germe da futura existência. Desse ponto de vista, a salvação é concebida pelo budismo não só como libertar-se do mundo, mas também como libertar-se dos males do mundo. Esses dois aspectos estão presentes em muitas religião, com exceção da de Israel, que ignora o primeiro: a promessa de bem-aventurança a ser alcançada além do mundo ou após a morte costuma ser acompanhada pela promessa de felicidade, de paz ou de bem-estar já na vida terrena. Quando a felicidade ou a paz pode ser alcançada nesta vida só com a superação da condição humana e da deificação, que é a união com Deus e com o princípio cósmico, tem-se o misticismo. No misticismo, Bergson viu a religião dinâmica, a continuação supra-orgânica do elâ vital, o impulso para a criação de uma sociedade nova, baseada no amor universal (Deux sources, 1932, cap. III). Na realidade, o misticismo é apenas uma das soluções para o problema da salvação, sendo típico de uma religiosidade pessoal, contemplativa e solitária, para a qual as atividades e as relações humanas são alheias e insignificantes.

2) A garantia infalível da verdade é pretensão implícita em qualquer religião Do ponto de vista filosófico, essa tese apresenta-se como identidade entre religião e filosofia, com diferenças puramente formais entre elas. Essa foi, p. ex., a teoria defendida por Hegel: “A filosofia tem o mesmo objeto da religião porque ambas têm como objeto a verdade, no sentido superior da palavra, porquanto Deus, e somente Deus, é a verdade” (Enc., § 1). Todavia, a religião distingue-se da filosofia por não expressar a verdade em forma de conceito, mas em forma de representação e sentimento. Hegel diz: “religião é a relação com o Absoluto na forma de sentimento, de representação, de ; no seu centro, que tudo abarca, tudo está apenas como algo acidental e evanescente” (Fil. do dir., § 270). Portanto, aquilo que a religião intui de modo acidental, aproximativo e confuso é demonstrado com caráter de necessidade pela filosofia (Enc., § 573). Está claro, porém, que a doutrina da identidade entre religião e filosofia também pode ser afirmada do ponto de vista da superioridade da religião como forma ou revelação da verdade: é o que faz a filosofia da fé de Haman, Herder e Jacobi, à qual o próprio Hegel se opõe (v. filosofia da fé). Contudo é evidente que nesse caso não é à religião que se confia a garantia da verdade, mas a um órgão, a , da qual depende a validade da filosofia e da religião, bem como de qualquer outro tipo de saber. Portanto, atribuir à religião como objetivo específico a verdade na maioria das vezes significa, do ponto de vista filosófico, atribuir-lhe a função de manifestar a verdade numa forma sem dúvida infalível e certa, mas inferior à forma que a verdade pode assumir em filosofia. Assim, para Gentile, a religião é “a exaltação do objeto subtraído aos vínculos do espírito, no que consiste a idealidade, a cognoscibilidade e a racionalidade do objeto” (Teoria gen. dello spirito, 1913, XIV, 7). Portanto, a essência da religião é o misticismo, que é a anulação do sujeito no objeto, em virtude do que o ser de Deus é o não-ser do sujeito (Discorsi di religione, 1920, p. 78). A religião encontra sua verdade apenas na filosofia, que resolve Deus no ato do pensamento. “Como pode esse Deus ser uma vontade a reconhecer, suplicar e esconjurar, à qual é preciso subordinar-se, se Deus está dentro do homem, do seu eu, sendo propriamente o seu eu em seu atualizar-se?” (Sistema di lógica, II, 1922, IV, 8, 4). De maneira mais clara e insofismável, Croce disse que a religião é uma forma provisória e imperfeita de filosofia, e por isso o filósofo deveria ver o religioso como “o seu irmão menor, ele mesmo num momento anterior” (Fil. della pratica, 1909, p. 314).

3) É crença bem antiga que a religião garante os valores morais do homem, entendendo-se por morais os valores que regulam a ordem da vida social. Era essa a função que Platão atribuía à religião: “A divindade que, segundo a tradição, rege o princípio, o fim e o curso de todos os seres, e procede conforme sua natureza no seu movimento circular; atrás dela vem sempre a justiça punitiva para quem despreza a lei divina” (Leis, 715 e, 716 a).

No mundo moderno, esse ponto de vista foi adotado e defendido por Kant: “A religião, considerada do ponto de vista subjetivo, é o conhecimento de todos os nossos deveres como mandamentos divinos. A religião em que preciso antes saber que alguma coisa é um mandamento divino para considerá-lo meu próprio dever é a religião revelada (ou que exige uma revelação); ao contrário, a religião em que devo saber que algo é um dever antes de considerá-lo um mandamento divino, é a religião natural” (Religion, IV, seç. I). Kant observa que essa definição de religião previ-ne várias interpretações falsas desse conceito.

Em primeiro lugar, exclui que a religião exija ciência de Deus e inclui que basta possuir a simples ideia de Deus. Em segundo lugar, essa definição previne a “falsa ideia de que a religião é um conjunto de deveres especiais que se referem imediatamente a Deus”, e impede, portanto, que, além dos deveres humanos ético-sociais, sejam admitidos “os serviços corteses com que poderíamos tentar compensar nossas faltas para com os deveres da primeira espécie” (Ibid., IV, seç. I, nota). Nesta interpretação, porém, o que a religião garantiria seria o absolutismo do mandamento moral: não garantiria (porque isso é da alçada da liberdade humana) a efetivação do mandamento moral, isto é, a realização propriamente dita dos valores morais no mundo. Contudo, na maior parte das vezes pede-se ou atribui-se à religião esta segunda espécie de garantia: de que os valores morais e, em geral, os que interessam ao homem e à sua vida espiritual não fiquem confiados unicamente à boa vontade humana, mas encontrem na providência divina a salvaguarda infalível, capaz de garantir seu triunfo final. Neste sentido, H. Höffding afirmou que a religião é a “crença na conservação dos valores” (Religionsphilosophie, 1902, p. 13): a fé religiosa seria a convicção “da solidez, da certeza e da continuidade da relação fundamental dos valores com a realidade” (Ibid., 1902, p. 105). Esse é precisamente o otimismo providencialista que muitas correntes filosóficas idealistas e espiritualistas haurem ou pretendem haurir na religião, em nome do qual instituem apologéticas religiosas mais ou menos engajadas.

4) Não mais considerando a religião em termos de garantia sobrenatural de salvação, mas com referência às relações inter-humanas, nas quais se insere como sistema de crenças e de instituições, é fácil evidenciar a sua utilidade biológica e social. Não que haja acordo unânime entre os filósofos sobre esse aspecto. Ao afirmarem a não-ingerência da divindade nas atividades humanas, os epicuristas tinham em vista eliminar o medo que os deuses inspiravam, pois consideravam a religião como um motivo suplementar de preocupação e medo, e não de ajuda (cf. Epicuro, Ep. a Menaceu, 123; Ep. a Heródoto, 77; Mass. Cap., 1). Alguns sociólogos contemporâneos tampouco deixaram de observar que muitas vezes os ritos religiosos e as crenças a eles associadas são motivo de angústia, de tal maneira que o efeito psicológico do ritual parece ser um sentimento de insegurança e perigo (cf. A. religião Radcliffe-Brown, Structure and Function in Primitive Society, 1952, pp. 148-49). Mas mesmo nesses casos é possível reconhecer a função social da religião, na forma de fortalecimento dos laços sociais, principalmente nas sociedades primitivas (Ibid., pp. 157 ss.). A. Loisy dizia: “Entregue à ação dos elementos, do clima, daquilo que a terra dá ou recusa, da boa ou má sorte na caça e na pesca, das vicissitudes na luta contra semelhantes, o homem acredita encontrar um meio de regularizar com simulacros de ação as suas possibilidades mais ou menos incertas. O que faz não tem utilidade para o objetivo almejado, mas ele ganha confiança em seus feitos e em si mesmo; ousa e, ousando, realmente obtém mais ou menos o que quer. Confiança rudimentar por vias humildes, mas é o começo da coragem moral” (Essai historique sur le sacrifice, 1920, p. 533). Esse ponto de vista foi desenvolvido mais tarde por Malinowski (Magic, Science and Religion, ed. Anchor Books, 1925, p. 89). Como vimos, é mais ou menos isso que Bergson pensa. Trata-se de ponto de vista válido sobretudo para as sociedades primitivas, mas também se sabe (v. primitivos) que a sociologia contemporânea tende a eliminar o abismo entre mentalidade primitiva e mentalidade civilizada. Ultrapassados os limites de controle dos acontecimentos por meio de técnicas racionais — limites, ademais, bastante estreitos — o homem reivindica liberdade de fé e entrega-se a crenças libertadoras ou consoladoras, a técnicas que lhe prometam salvação infalível. Obtendo ou não o cumprimento dessas promessas, a função dessas técnicas é bem clara: dar esperança e coragem, consolidar as relações com os outros homens e com o mundo. [Abbagnano]


Etimologicamente, é talvez preferível derivar o vocábulo latino religio de “re-legere”, do que de “re-ligare”. Segundo isso, “religião” designa sempre um “revolver se”, a observação cuidadosa, conscienciosa de alguma coisa. Aquilo em torno do qual gira a consideração, deve merecer tal cuidado, deve até exigi-lo, de acordo com sua dignidade. Que ser seja este, pode acaso indicá-lo a outra interpretação do termo “religião”: re-ligação, e, precisamente, à origem primeira e fim último. Uma vez que este Primeiro e Último possui maior transcendência que tudo o mais, por isso mesmo merece ser considerado com diligência, acima de tudo.

Do ponto de vista do ser, todas as coisas procedem de Deus, e para Ele tendem. Não obstante, só o homem tem religião, na medida em que, como espírito, torna efetiva, livre e consciente, sua relação a Deus, ou seja, conhece-o e aceita-o como sua origem e fim. Por tratar-se aqui do que há de mais Excelso, nesse reconhecimento e aceitação reside o mais nobre dever ético e a mais requintada perfeição do homem. Sem religião permanece ele deformado no que tem de mais precioso, por preciosos que sejam os dons e admiráveis as obras que possa praticar; e como um belo engaste, do qual se tenha arrancado uma pedra preciosa. — Na religião, o homem todo se volve para Deus; pelo que, ela abarca todas as potências superiores da alma: conhecer, querer e sentir. Mas como a religião é, não tanto um saber, quanto uma entrega, uma doação, ela aparece principalmente como obra da vontade inserta no sentimento, vê o Ser absoluto de Deus como Valor absoluto. Quando, em nossos dias, se costuma dar a este Ser o nome de numinoso ou de sacro, não devemos rejeitar em si tais denominações; contudo, não raro, ao empregá-las, se pretende desligar o valor do ser e tornar o comportamento religioso completamente irracional. De fato, o Valor absoluto coincide com o Ser absoluto, como também a dedicação religiosa e vivificada pelo saber que decerto não se apresenta em forma racional discursiva, mas em forma intuitivo totalitária ou vivencial. A religião irradia, desde a esfera do espírito, sobre a vida sensitiva e sobre o corpo, criando assim expressão visível por meio da palavra, do gesto e do símbolo. Daí que uma religião de pura interioridade pugne com a natureza do homem e deva estiolar-se; com a ressalva de que os ademanes meramente exteriores significam nada menos que a morte da autêntica religião. Por último, visto o homem estar inscrito essencialmente na comunidade, a religião não pode limitar-se a mero assunto privado do indivíduo; antes, a comunidade deve fomentá-lo, devendo observar-se que a vida religiosa nunca chega ao seu pleno desenvolvimento senão na comunidade. Como se deduz do que fica exposto, com a religião do espírito subjetivo (religião como ação e comportamento) une-se a religião no sentido de espírito objetivo e objetivado (religião como doutrina, comunidade, instituições, usos), que é a fonte primordial ou o sedimento e substrato da primeira.

Em todos os povos e épocas se encontra alguma religião; nem a história nem a pré-história conhecem um estado a-religioso da humanidade. Em toda a parte, a religião surge como dado primitivo; nenhuma parte deriva de manifestações não-religiosas, como o animismo, o animatismo, o totemismo, a magia. Entende-se por animismo a crença em almas (anima) e em espíritos, e a veneração dos mesmos; por animatismo, a crença numa alma ou força material que domina tudo invisivelmente. O totemismo crê no parentesco do indivíduo ou de um grupo com um totem (quase sempre um animal); é desconhecido nas culturas primitivas. A magia e a feitiçaria, pretendem subjugar, por meio de adjurações, uma potência superior e pô-la ao serviço do homem, ao passo que o homem religioso se submete a ela pela súplica. Práticas encantatórias sem relação a um poder superior não constituem magia, mas brotam de uma concepção primitiva das forças naturais e do governo das mesmas.

Religião equivale a veneração de Deus, isto é, a religião vê a Deus como Pessoa; isso já o sabia o paganismo e o mostra insistentemente a moderna filosofia da religião (Scheler). Sem dúvida a imagem que o paganismo forma de Deus é sumamente confusa. A par de um Deus único, muitas vezes se presta adoração também a forças naturais personificadas; nem se distingue suficientemente entre a Divindade e sua imagem: idolatria. No fetichismo veneram-se como algo pessoal coisas materiais, não por causa de sua relação de imagens, mas por causa de um poder superior magicamente entranhado nelas. A deturpação politeísta da imagem de Deus une-se à deturpação panteísta. Um panteísmo explícito suprime, como é bem de ver, a autêntica religião, porque, as mais das vezes, em lugar de Deus, aparece um fundo primitivo impessoal e, em última instância, o próprio homem é o divino. Mas em nenhum povo a religião realmente vivida é um panteísmo desta espécie; ao sumo, reveste como entre os hindus, um matiz panteísta proveniente do fundamento último estabelecido pela concepção do universo. — Quando a absolutidade de Deus é transferida para os valores terrestres e estes são abraçados com ardor religioso, temos então um substitutivo da religião.

Até aqui tratamos da religião natural ou religião da natureza, que brota da natureza espiritual do homem. A ela contrapõe-se a religião positiva estabelecida ou, ao menos, determinada em seus pormenores por um ato positivo histórico, primeiro, de Deus (revelação) e, em seguida, também do homem (leis não escritas e escritas). A pura religião natural não se encontra em parte alguma, mas constitui o fundo de toda religião histórica. Todavia, o deísmo vai demasiado longe, quando, ao excluir, aqui, como em toda a parte, qualquer intervenção de Deus, considera inultrapassável o domínio da religião natural. — Uma vez que ao homem é dado conhecer inequivocamente sua relação criatural com Deus e a revelação de Deus historicamente promulgada, não lhe é lícito permanecer indiferente ante a religião em geral nem ante uma verdadeira religião revelada; portanto, não lhe é lícito aderir ao indiferentismo.

A religião revelada, de modo peculiar a religião cristã, mostra mais claramente em que atitudes se deve manifestar a vida religiosa. São fundamentais a , a esperança e a caridade. A elas correspondem, na religião natural, a vivência de Deus cuidadosamente alimentada e cada vez mais profundamente arraigada, o aspirar a Deus como fim último com a confiança em sua assistência e o amar a Deus com amor indestrutível. Sobre estes atos floresce o trato pessoal com Deus pela oração. Esta é, primeiramente, adoração, ou seja, o curvar-se respeitosamente ante a infinita sublimidade e absoluta soberania de Deus. A adoração encontra sua expressão visível mais solene no sacrifício: neste, o homem oferece ao Altíssimo, como símbolo da doação de si mesmo, um bem que reputa valioso, o qual frequentemente é queimado para melhor traduzir a doação absoluta e irrevogável. Com a adoração unem-se a ação de graças ao Dispensador de todo bem e a petição de gracioso auxílio ulterior, petição a que o homem é incitado, em consequência da experiência da limitação de seu próprio poder. Tradução prática da autêntica religião é uma vida de fidelidade à vontade divina. — Ao culto pertence todo ato interno e externo, cujo sentido exclusivo ou primário lhe advém da veneração de Deus. — Lötz. [Brugger]