Os homens — isto é, as mentes humanas, as necessidades, as esperanças, os temores e as expectativas, os motivos e aspirações dos indivíduos humanos — são antes o produto da vida em sociedade do que os criadores desta. Deve-se admitir que a estrutura de nosso ambiente social é feita pelo homem em certo sentido no de que suas instituições e tradições nem são obra de Deus nem da natureza, mas resultados das ações e decisões humanas, alteráveis por ações e decisões humanas. Isto, porém, não significa que todas tenham objetivos conscientes, explicáveis em termos de necessidades, esperanças ou motivos. Ao contrário, mesmo aquelas que surgem como resultados de ações humanas conscientes e intencionais são, via de regra, os subprodutos indiretos, involuntários e muitas vezes indesejados de tais ações. “Apenas uma minoria de instituições sociais é conscientemente delineada, ao passo que a vasta maioria simplesmente “cresceu”, como involuntário resultado de ações humanas”, já disse eu antes11; e podemos acrescentar que mesmo a maior parte das poucas instituições planejadas conscientemente e com êxito (digamos, uma Universidade recém-fundada, ou um novo Sindicato) não se concretizam de acordo com o plano — e isso ainda em razão das repercussões sociais involuntárias resultantes de sua criação intencional. É que essa criação não somente afeta muitas outras instituições sociais, mas também a “natureza humana”, esperanças, temores e ambições, em primeiro lugar dos mais imediatamente envolvidos e, por fim, mesmo de todos os membros da sociedade. Uma das consequências disto é a de que os valores morais da sociedade — as exigências e proposições reconhecidas por todos ou por quase todos os seus membros — muito de perto se ligam a suas tradições e instituições, e não podem sobreviver à destruição das instituições e tradições de uma sociedade (como se indicou no capítulo 9, quando discutimos a “limpeza da tela” do revolucionário radical.)
Tudo isto tem mais acentuado valor relativamente aos períodos mais antigos do desenvolvimento social, isto é, para a sociedade fechada, em que o planejamento consciente de instituições é um acontecimento excepcionalíssimo, se é que acontece. Hoje, as coisas podem começar a ser diferentes, devido a nosso vagarosamente crescente conhecimento da sociedade, isto é, devido aos estudos das repercussões involuntárias de nossos planos e ações; e algum dia os homens poderão mesmo tornar-se os criadores conscientes de uma sociedade democrática e, portanto, de uma parte maior de seu próprio destino. (Marx entretinha esta esperança, como veremos no próximo capítulo.) Mas tudo isso é parcialmente uma questão de gradação e, embora possamos aprender a prever muitas das consequências involuntárias de nossas ações (alvo principal de toda a tecnologia social), sempre haverá muitas que não poderemos prever.
O fato de que o psicologismo é forçado a operar com a ideia de uma origem psicológica da sociedade constitui, em minha opinião, um argumento decisivo contra ele. Não é, porém, o único. Talvez a crítica mais importante do psicologismo é a de que ele deixa de entender a tarefa principal das ciências sociais explicativas.
Essa tarefa não é, como crê o historicista, a de profetizar o curso futuro da história. É, antes, a descoberta e explicação das dependências menos evidentes dentro da esfera social. É a descoberta das dificuldades que se antepõem ao caminho da ação social — o estudo, por assim dizer, da densidade, da fragilidade ou da elasticidade da matéria social e de sua resistência a nossas tentativas para moldá-la e trabalhar com ela.
A fim de tornar este ponto claro, descreverei em resumo uma teoria que é amplamente sustentada, mas que supõe o que considero o próprio inverso do verdadeiro alvo das ciências sociais; chamo-a a teoria conspirativa da sociedade. É a opinião de que a explicação de um fenómeno social consiste na descoberta dos homens ou grupos que estão interessados pela ocorrência desse fenômeno (às vezes é um interesse oculto, que tem primeiro de ser revelado), e que planejaram e conspiraram para que ele se desse.
Esta concepção dos alvos das ciências sociais provém, sem dúvida, da teoria errônea de que tudo quanto ocorre em sociedade — especialmente os acontecimentos que, como a guerra, o desemprego, a pobreza, a escassez, etc., em regra geral são desagradáveis ao povo — é resultado direto do desígnio de alguns indivíduos ou grupos poderosos. Esta teoria acha-se amplamente difundida e é ainda mais antiga que o historicismo (que, como o demonstra sua primitiva forma teísta, é um produto derivado da teoria conspirativa.). Em suas formas modernas ela é, como o moderno historicismo e certa atitude moderna em relação às “leis naturais”, um resultado típico da secularização de uma superstição religiosa. A crença nos deuses homéricos, cujas conspirações explicam a história da guerra de Troia, foi-se. Os deuses foram abandonados. Mas seu lugar é preenchido por homens ou grupos poderosos — sinistros grupos de pressão, cuja perversidade é responsável por todos os males que sofremos — tais como os Sábios de Sião, ou os monopolistas, ou os capitalistas, ou os imperialistas.
Não desejo sugerir que tais conspirações nunca ocorram. Ao contrário, são elas típicos fenômenos sociais. Tornam-se importantes, por exemplo, sempre que chegam ao poder pessoas que creem sinceramente na teoria da conspiração. E os que creem sinceramente que podem trazer o céu para a terra são os mais suscetíveis de adotar a teoria da conspiração e de se envolverem numa contra conspiração para combater conspiradores inexistentes. É que a única explicação de seu fracasso na produção de seu céu só pode estar nas más intenções do Demônio, que tem interesse especial no inferno.
Tramam-se conspirações, não há como negar. Mas o impressionante fato que, apesar de sua ocorrência, repele a teoria da conspiração é que poucas dessas conspirações chegam por fim a ser bem sucedidas. Raramente os conspiradores consumam suas conspirações.
Por que se dá isso? Por que as realizações diferem tão amplamente das aspirações? Porque é o que normalmente sucede na vida social, com conspiração ou sem ela. A vida social não é apenas uma prova de resistência entre grupos opostos — é ação dentro de um quadro mais ou menos flexível ou frágil de instituições e tradições, e determina, afora toda ação oposta consciente, muitas e imprevistas reações dentro desse quadro, algumas das quais até mesmo imprevisíveis.
Tentar analisar essas reações e prevê-las até onde seja possível, tal é, acredito, a principal tarefa das ciências sociais. É a tarefa de analisar as involuntárias repercussões das ações humanas intencionais, aquelas repercussões cuja significação é negligenciada tanto pela teoria conspirativa como pelo psicologismo, como já indicamos. Uma ação que se processe precisamente de acordo com a sua intenção não cria um problema para a ciência social (exceto o de talvez ser necessário explicar a razão de nesse caso particular não haverem ocorrido repercussões involuntárias.). Pode servir como exemplo uma das mais primitivas ações econômicas, a fim de tornar perfeitamente clara a ideia da ação involuntária. Se um homem deseja com urgência comprar uma casa, podemos supor com segurança que ele não deseje elevar os preços do mercado imobiliário. Mas o próprio fato de que ele aparece no mercado como comprador tende a elevar os preços do mercado. Observações análogas valem para o vendedor. Para tomar outro exemplo de campo diferente: se um homem deseja fazer um seguro de vida, não é provável que por isso tenha a intenção de estimular alguém a investir dinheiro em ações de companhias seguradoras. Não obstante, concorre para isso. Vemos aqui claramente que nem todas as consequências de nossas ações são consequências intencionais; e, de acordo com isso, vemos que a teoria conspirativa da sociedade não pode ser verdadeira, porque importa na asserção de que todos os resultados, mesmo aqueles que à primeira vista não parecem ser pretendidos por ninguém, são os resultados intencionais de ações de pessoas neles interessadas.
Os exemplos citados refutam o psicologismo com a mesma facilidade com que refutam a teoria conspirativa, pois poder-se-á arguir que é o conhecimento, por parte dos vendedores, da presença do comprador no mercado, e sua esperança de obter preço maior — em outras palavras, fatores psicológicos — o que explicam as repercussões descritas. Isto, claro está, é perfeitamente certo; mas não devemos esquecer que esse conhecimento e essa esperança não são os dados últimos da natureza humana e que podem explicar-se, por sua vez, em função da situação social, neste caso a situação do mercado.
Dificilmente esta situação social é redutível a motivos e às leis gerais da “natureza humana”. Na verdade, a interferência de certos “traços da natureza humana”, tais como a nossa suscetibilidade à propaganda, pode às vezes levar a desvios da conduta econômica acabada de mencionar. Além disso, se a situação social é diferente da que se encara, é possível que o consumidor, pela ação de comprar, possa indiretamente contribuir para o barateamento de um artigo; por exemplo, tornando mais lucrativa a sua produção em massa. E embora suceda que esse efeito aumente o seu lucro como consumidor, pode ele ter sido causado de modo tão involuntário quanto o efeito oposto, e sob condições psicológicas inteira e precisamente semelhantes. Parece claro que as situações sociais que podem levar a repercussões indesejadas ou involuntárias tão amplamente diferentes devem ser estudadas por uma ciência social que não se prenda ao preconceito de que “é imperativo nunca introduzir qualquer generalização nas ciências sociais até encontrar campo suficiente na natureza humana” como disse Mill12. Devem ser estudadas por uma ciência social autônoma.