«Quanto ao caso de Nietzsche, acho que V. tem razão — a razão que, em qualquer coisa se pode ter.
»O paganismo de Nietzsche é um paganismo de estrangeiro. Há erros constantes de pronúncia na sua interpretação do helenismo. Ainda se aceita que um alemão europeu (isto é, de antes de Bismarck) pudesse compreender a Grécia antiga; mas um alemão, isto é, como Nietzsche, um polaco ou checo, ou qualquer coisa sem Europa nem vogais, dificilmente se pode entender a si mesmo se quiser falar grego com o espírito.
»Nietzsche não foi, como você imagina, o Pascal do paganismo. Foi a falta de Pascal do paganismo. Não pode haver um Pascal do sistema pagão, porque não há sistema pagão; e um Pascal precisa de um sistema de que seja o Pascal. Pascal era um teólogo em verso, que escreveu em prosa. No paganismo não houve teologia, sendo essa a segunda vantagem dele, porque a primeira foi o não poder havê-la.
»De resto, o que em Pascal era uma doença era, ao contrário, também uma doença em Nietzsche. Refiro-me ao estilo inconseqüente, e ao pensamento para o adivinharmos. Pascal, porém, sendo francês, não se contradiz, e, sendo católico, não inova e já está claro nos outros; em Nietzsche a contradição de si próprio é a única coerência fundamental, e a sua verdadeira inovação é o não poder saber o que foi que ele inovou.
»São inúmeros, em todo o mundo, os discípulos de Nietzsche, havendo alguns deles que leram a obra do mestre.
»A maioria aceita de Nietzsche o que está apenas neles, o que, de resto, acontece com todos os discípulos de todos os filósofos. A minoria não compreendeu Nietzsche, e são esses poucos que seguem fielmente a doutrina dele.
»A única afirmação grande de Nietzsche é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade. Como todos os pensamentos culminantes e fecundos dos grandes mestres, isto não significa coisa nenhuma. E por isso que teve tão grande ação nos espíritos: só no vácuo total se pode pôr absolutamente tudo.
»O que você acrescenta sobre os deveres morais podia tornar-se extensivo aos deveres imorais. Chegamos a um ponto da civilização em que há tais exigências de imoralidade que de aqui a pouco toda a gente é decente por falta de espírito de sacrifício.
»Enfim nada importa a não ser a maneira por que nada importa. Seja ela bela, ou, ao menos, fútil, porque a futilidade tem de comum com a beleza a indiferença a utilidade e à justiça. O resto é absolutamente vida…»