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Mas o meu assunto agora não me deixa desviar-me em considerações sobre o porvir da ciência, e o que insinuei sobre o seu presente veio só para mostrar as condições inteleçtuais atmosféricas que prepararam o regresso a uma filosofia maior, corrigindo a retracção dos últimos cem anos. O filósofo encontra na combinação do ar público uma nova coragem para se t;ornar também independente e fiel à limitação do seu destino.
Mas há um outro motivo mais forte que os apontados para que seja possível um renascimento filosófico. A tendência para que cada ciência aceite a sua própria limitação a se proclame independente são somente condições negativas bastantes para acabar com os estorvos que durante um século paralisaram a vocação filosófica, mas não nutrem nem provocam esta energicamente.
Por que volta, pois, o homem à filosofia? Por que volta a ser normal a vocação para ela? Evidentemente, volta-se a uma coisa pela mesma razão essencial que levou a ela na primeira vez. Se assim não for, o regresso carece de sinceridade, é uma falsa volta, um fingir que se volta.
Isto obriga-nos a que coloquemos a questão da razão por que ocorre ao homem em absoluto fazer filosofia. Porquê ao homem — ontem, hoje ou outro dia — lhe ocorre filosofar? Convém trazer com claridade à mente essa coisa que costumamos chamar filosofia, para poder depois responder ao «porquê» do seu exercício.
Nesta nova óptica reaparece a nossa ciência com as características que teve em todas as épocas vigorosas, embora o progresso do pensamento module aquelas de forma nova e mais rigorosa. [46]
Vou responder a esta pergunta com uma série de traços, mediante fórmulas que, pouco a pouco, nos dias que se seguem, irão revelando todo o seu sentido.
O que primeiro ocorrería dizer seria definir a filosofia como conhecimento do Universo. Mas esta definição, sem ser errônea, pode deixar-nos escapar precisamente tudo o que há de específico, o peculiar dramatismo e o tom de heroicidade intelectual em que a filosofia e só a filosofia vive. Parece, com efeito, essa definição uma oposição à que podíamos dar da física, dizendo que é conhecimento da matéria. Mas sucede que o filósofo não se coloca diante do seu objecto — o Universo — como o físico perante o seu, que é a matéria. O físico principia por definir o perfil desta e só depois começa o seu labor e tenta conhecer a sua estrutura íntima. Do mesmo modo, o matemático define o número e a extensão; isto é, todas as ciências particulares começam por demarcar um pedaço do Universo, por limitar o seu problema, que por ser limitado deixa em parte de ser problema. Em outras palavras: o físico e o matemático conhecem de antemão a extensão e os atributos essenciais do seu objecto; portanto, começam não com um problema, mas com algo que dão ou tomam como já sabido. Mas o Universo em cuja pesquisa o filósofo parte audaz como um argonauta, não se sabe o que é. Universo é o vocábulo enorme e monolítico que como uma vasta e vaga gesticulação oculta mais do que enuncia este conceito rigoroso: tudo quanto há. Isso é, para já, o Universo. Isso, notem vocês bem, nada mais do que isso, porque quando pensamos o conceito «tudo quanto há», não sabemos o que seja isso que há; aquilo em que unicamente pensamos é um conceito negativo, a saber: a negação do que somente é parte, bocado, fragmento. O filósofo, pois, de modo diferente de qualquer outro cientista, embarca para o desconhecido como tal. O mais ou menos conhecido é partícula, porção, esquírola de Universo. O filósofo situa-se perante o seu objecto numa atitude diferente de qualquer outro conhecedor; o filósofo ignora qual é o seu objecto e dele sabe somente: primeiro, que não é nenhum dos restantes objectos; segundo, que é um objecto integral, que é o autêntico todo, o que não deixa nada de fora e, por isso, o único que se basta. Mas precisamente [47] nenhum dos objectos conhecidos ou suspeitados possui esta condição. Portanto, o Universo é o que radicalmente não sabemos, o que absolutamente ignoramos no seu conteúdo positivo.
Em outras palavras, podíamos dizer: às restantes ciências é dado o seu objecto, mas o objecto da filosofia como tal é exactamente o que não pode ser dado; porque é tudo e porque não é dado, terá que ser num sentido muito essencial o buscado, o perenemente buscado. Nada tem de estranho que a ciência, cujo objecto tem que se começar por buscar, isto é, que até como objecto e assunto já é problemática, tenha uma vida menos tranquila que as outras e não goze à primeira vista daquilo a que Kant chamava der sichere Gang. Este passo seguro, tranquilo e burguês não o terá nunca a filosofia, que é puro heroísmo teorético. Ela consistirá em ser também como o seu objecto a ciência universal e absoluta que se busca. Assim a chama o primeiro mestre da nossa disciplina, Aristóteles: Filosofia, a ciência que se busca, ζητουμένη έπιστήμη [zetoumene episteme].
Mas tão-pouco na definição dita antes — a filosofia é o conhecimento do Universo — significa conhecimento o mesmo que nas ciências particulares. Conhecimento no seu sentido estrito e primário significa solução positiva e concreta para um problema, isto é, penetração perfeita do objecto pelo intelecto do seu sujeito. Pois bem, se conhecimento fosse somente isso, a filosofia não podería comprometer-se a sê-lo. Imaginem vocês que a nossa chegasse a demonstrar que a última realidade do Universo está constituída por um ser absolutamente caprichoso, por uma vontade aventureira e irracional — isto acreditou, com efeito, descobrir Schopenhauer. Então não era possível a penetração total do objecto pelo sujeito — essa realidade irracional seria opaca para a intelecção — e, contudo, não é duvidoso que fosse aquela uma perfeita filosofia, não menos perfeita que as outras para as quais o ser era na sua integridade transparente para o pensamento e dócil para a razão, ideia básica de todo o racionalismo.
Temos, pois, de salvar o sentido do termo conhecimento e observar que se, com efeito, significa, em primeiro lugar, esse [48] pleno ingresso do pensar no Universo, será possível uma escala de valores de conhecimento de acordo com a maior ou menor aproximação a esse ideal. A filosofia deve começar por definir aquele conceito máximo e simultaneamente deixar abertos os graus inferiores daquele conceito, pois todos serão, ao fim e ao cabo, em uma ou outra medida, modos de conhecer. Por esta razão proponho que, ao definir a filosofia como conhecimento do Universo, entendamos um sistema integral de atitudes intelectuais no qual se organiza metodicamente a aspiração ao conhecimento absoluto. O decisivo, pois, para que um conjunto de pensamentos seja filosofia, baseia-se em que a criação do intelecto perante o Universo seja também universal, integral — que seja, em suma, um sistema absoluto.
É, pois, obrigação constituinte da filosofia tomar uma posição teorética, enfrentar todos os problemas, o que não quer dizer resolvê-los, mas sim demonstrar positivamente a sua insolubilidade. Isto é o característico da filosofia perante as ciências. Quando estas encontram um problema para elas insolúvel, simplesmente deixam de o tratar. A filosofia, contudo, ao partir admite a possibilidade de que o mundo seja um problema em sisi mesmo insolúvel. E o demonstrá-lo seria plenamente uma filosofia que satisfaria com todo o rigor essa sua condição.
original
Pero mi asunto ahora no me deja desviarme a consideraciones sobre el porvenir de la ciencia, y lo que he insinuado sobre su presente vino sólo para mostrar las condiciones intelectuales atmosféricas que han predispuesto al retorno a una filosofía mayor, corrigiendo el encogimiento de los últimos cien años. El filósofo encuentra en la combinación del aire público nuevo coraje para hacerse también independiente y fiel a la limitación de su destino.
Pero hay otro motivo más fuerte que los apuntados para que sea posible un renacimiento filosófico. La tendencia a aceptar cada ciencia su propia limitación y a proclamarse independiente son sólo condiciones negativas bastantes para quitar los estorbos que durante un siglo han paralizado la vocación filosófica, pero no nutren ni menos provocan enérgicamente a ésta.
¿Por qué vuelve, pues, el hombre a la filosofía? ¿Por qué vuelve a ser normal la vocación hacia ella? Evidentemente, se vuelve a una cosa por la misma razón esencial que llevó a ella la primera vez. Si no, es que el retorno carece de sinceridad, es una falsa vuelta, un fingir que se vuelve.
Esto nos obliga a plantearnos la cuestión de por qué al hombre se le ocurre en absoluto hacer filosofía,
¿Por qué al hombre —ayer, hoy u otro día— se le ocurre filosofar? Conviene traer con claridad a la mente esa cosa que solemos llamar filosofía, para poder luego responder al «por qué» de su ejercicio.
En esta nueva óptica reaparece nuestra ciencia con los caracteres que ha tenido en todas sus épocas lozanas, si bien el progreso del pensamiento modula aquéllos en forma nueva y más rigorosa. ¿Qué es a nuestros ojos la filosofía resurgente?
Voy a responder a esta pregunta con una serie de rasgos, mediante fórmulas que poco a poco, en los días subsecuentes, irán revelando todo su sentido.
Lo primero que ocurriría decir fuera definir la filosofía como conocimiento del Universo. Pero esta definición, sin ser errónea, puede dejarnos escapar precisamente todo lo que hay de específico, el peculiar dramatismo y el tono de heroicidad intelectual en que la filosofía y sólo la filosofía vive. Parece, en efecto, esa definición un contraposto a la que podíamos dar de la física, diciendo que es conocimiento de la materia. Pero es el caso que el filósofo no se coloca ante su objeto —el Universo— como el físico ante el suyo, que es la materia. El físico comienza por definir el perfil de ésta y sólo después comienza su labor e intenta conocer su estructura íntima. Lo mismo el matemático define el número y la extensión, es decir, que todas las ciencias particulares empiezan por acotar un trozo del Universo, por limitar su problema, que al ser limitado deja en parte de ser problema. Dicho de otra forma: el físico y el matemático conocen de antemano la extensión y atributos esenciales de su objeto; por tanto, comienzan no con un problema, sino con algo que dan o toman por sabido. Pero el Universo en cuya pesquisa parte audaz el filósofo como un argonauta no se sabe lo que es. Universo es el vocablo enorme y monolítico que como una vasta y vaga gesticulación oculta más bien que enuncia este concepto rigoroso: todo cuanto hay. Eso es, por lo pronto, el Universo. Eso, nótenlo bien, nada más que eso, porque cuando pensamos el concepto «todo cuanto hay» no sabemos qué sea eso que hay; lo único que pensamos es un concepto negativo, a saber: la negación de lo que sólo sea parte, trozo, fragmento. El filósofo, pues, a diferencia de todo otro científico, se embarca para lo desconocido tomo tal. Lo más o menos conocido es partícula, porción, esquirla de Universo. El filósofo se sitúa ante su objeto en actitud distinta de todo otro conocedor; el filósofo ignora cuál es su objeto y de él sabe sólo: primero, que no es ninguno de los demás objetos; segundo, que es un objeto integral, que es el auténtico todo, el que no deja nada fuera y, por lo mismo, el único que se basta. Pero precisamente ninguno de los objetos conocidos o sospechados posee esta condición. Por tanto, el Universo es lo que radicalmente no sabemos, lo que absolutamente ignoramos en su contenido positivo.
En otro giro podíamos decir: a las demás ciencias les es dado su objeto, pero el objeto de la filosofía como tal es precisamente el que no puede ser dado; porque es todo, y porque no es dado tendrá que ser en un sentido muy esencial el buscado, el perennemente buscado. Nada hay de extraño que la ciencia misma cuyo objeto hay que empezar por buscar, es decir, que hasta como objeto y asunto es ya problemática, tenga una vida menos tranquila que las otras y no goce a primera vista de lo que Kant llamaba der sichere Gang. Este paso seguro, tranquilo y burgués no lo tendrá nunca la filosofía, que es puro heroísmo teorético. Ella consistirá en ser también como su objeto, la ciencia universal y absoluta que se busca. Así la llama el primer maestro de nuestra disciplina, Aristóteles: filosofía, la ciencia que se busca, ζητούμενη έχιοτήμη.
Pero tampoco en la definición antedicha —filosofía es conocimiento del Universo— significa conocimiento lo mismo que en las ciencias particulares. Conocimiento en su sentido estricto y primario significa solución positiva concreta a un problema, es decir, penetración perfecta del objeto por el intelecto de su sujeto. Ahora bien, si conocimiento fuese sólo eso la filosofía no podría comprometerse a serlo. Imaginen ustedes que la nuestra llegase a demostrar que la última realidad del Universo está constituida por un ser absolutamente caprichoso, por una voluntad aventurera e irracional —esto creyó, en efecto, descubrir Schopenhauer. Entonces no cabría penetración total del objeto por el sujeto —esa realidad irracional sería opaca a la intelección— y, sin embargo, no es dudoso que fuera aquélla una perfecta filosofía, no menos perfecta que las otras para las cuales el ser era en su integridad transparente al pensamiento y dócil a la razón, idea básica de todo racionalismo.
Hemos, pues, de salvar el sentido del término conocimiento y advertir que si, en efecto, significa primariamente ese pleno ingreso del pensar en el Universo, cabrá una escala de valores de conocimiento según la mayor o menor aproximación a ese ideal: La filosofía debe comenzar por definir aquel concepto máximo y a la par dejarse abiertos los grados inferiores de él, que todos serán a la postre, en una; u otra medida, modos del conocer. Por esta razón yo propongo que, al definir la filosofía como conocimiento del Universo, entendamos un sistema integral de actitudes intelectuales en el cual se organiza metódicamente la aspiración al conocimiento absoluto. Lo decisivo, pues, para que un conjunto de pensamientos sea filosofía, estriba en que la reacción del intelecto ante el Universo sea también universal, integral —que sea, en suma, un sistema absoluto.
Es pues, obligación constituyente de la filosofía tomar posición teorética, enfrontarse con todo problema, lo cual no quiere decir resolverlo, pero sí demostrar positivamente su insolubilidad. Esto es lo característico de la filosofía frente a las ciencias. Cuando éstas encuentran un problema para ellas insoluble, simplemente dejan de tratarlo. La filosofía, en cambio, al partir admite la posibilidad de que el mundo sea un problema en sí mismo insoluble. Y el demostrarlo sería plenamente una filosofía que cumpliría con todo rigor su condición de tal.