Com tudo isto temos avançado notavelmente nesta excursão vertical, nesta descida ao profundo ser da nossa vida. Na fundura onde agora estamos aparece-nos o viver como um sentirmo-nos forçados a dizer o que vamos ser. Já não nos contentaremos com dizer, como ao princípio: vida é o que fazemos, é o conjunto das nossas ocupações com as coisas do mundo, porque observámos que todo esse fazer e essas ocupações não nos vêm automaticamente, mecanicamente impostas, como o repertório de discos ao gramofone, mas são decididas por nós, que este ser decididas é o que têm de vida; a execução é, em grande parte, mecânica.
O grande facto fundamental com que eu desejava pôr-vos em contacto está já aí, já o exprimimos: viver é constantemente decidir o que vamos ser. Não percebem o fabuloso paradoxo que isto encerra? Um ser que consiste, mais que no que é, no que vai ser, portanto, naquilo que ainda não é! Pois este essencial, abismático paradoxo é a nossa vida. Não tenho culpa disso. Assim é em rigorosa verdade.
Mas talvez pensem agora alguns de vocês isto: «De quando cá viver vai ser isso — decidir o que vamos ser! Desde há pouco estamos aqui a escutá-lo, sem decidir nada, e, contudo, quem pode duvidar?, a viver». Ao que eu responderia: «Meus senhores, durante este tempo não fizeram mais que decidir uma e outra vez o que iam ser. Trata-se de uma das horas menos culminantes da vossa vida, mais condenadas a relativa passividade, dado que vocês são ouvintes. E, contudo, coincide exatamente com a minha definição. Eis aqui a prova: enquanto vocês me escutavam, alguns de vocês vacilaram mais de uma vez entre deixar de me dar atenção e dedicar-se às [170] vossas próprias meditações ou continuar generosamente a escutar com solicitude tudo o que dizia. Decidiram-se por uma ou por outra destas atitudes, por ser atentos ou distraídos, por pensar neste tema ou noutro, e isso, pensar agora sobre a vida ou sobre outra coisa é o que é agora a vossa vida. E, não menos, os que não vacilaram, que permaneceram decididos a escutar-me até ao fim; momento após momento, terão tido que nutrir novamente essa resolução para mantê-la viva, para continuar atentos. As nossas decisões, mesmo as mais firmes, têm que receber constante corroboração, que ser sempre de novo carregadas como uma escopeta onde a pólvora se inutiliza; têm que ser, em suma, re-decididas. Ao entrar por essa porta tinham vocês decidido o que iam ser: ouvintes; e depois reiteraram muitas vezes o vosso propósito; de outro modo, vocês ter-me-iam escapado pouco a pouco de entre as mãos cruéis de orador.
E agora basta-me tirar a imediata consequência disto: se a nossa vida consiste em decidir o que vamos ser, quer dizer-se que na própria raiz da nossa vida há um atributo temporal: decidir o que vamos ser, portanto, o futuro. E, sem parar, recebemos agora, uma após outra, toda uma fértil colheita de averiguações. Primeira: que a nossa vida é principalmente chocar com o futuro. Eis aqui outro paradoxo. Não é o presente ou o passado o que primeiro vivemos, não; a vida é uma atividade que se executa para diante, e o presente ou o passado descobre-se depois, em relação com esse futuro. A vida é futurição, é o que ainda não é.