Aldous Huxley. “Chawdron”, em Contos Escolhidos. Tr. Eliana Sabino. São Paulo: Globo, 2014
— Não são heresias; são reconhecimentos de fatos óbvios. Pois o que é a prática da moralidade? E só fingir ser alguém que você por natureza não é. É representar o papel de santo, ou de herói, ou de cidadão respeitável. Qual é o mais alto ideal ético da Cristandade? Ele está expresso na fórmula de Tomás de Kempis, A imitação de Cristo. De modo que as Igrejas organizadas não são mais que enormes e complicadas Academias de Arte Dramática. E todas as escolas são escolas de representar. Todas as famílias são famílias Crummles. Todos os seres humanos são educados para pantomimeiros. Toda educação, à parte a educação meramente intelectual, é apenas uma série de ensaios para o papel de Jesus, de Podsnap ou de Alexandre, o Grande, ou quem quer que seja o favorito local. O homem virtuoso é aquele que aprendeu completamente seu papel e o representa com competência e de maneira convincente. O santo e o herói são grandes atores; são os Kembles e Siddons — pessoas com um grande talento para representar personagens heroicos que elas não são; ou pessoas com a sorte de terem nascido tão parecidas com o ideal heroico que podem começar direto com o papel, sem ensaiar. Os maus são aqueles que ou não conseguem representar ou não querem aprender. Imagine um encarregado de mudar os cenários, ligeiramente bêbado, usando seu macacão e fumando um cachimbo; ele entra no palco cambaleando, no meio da cena do julgamento em O mercador de Veneza, grita com Pórcia, dá um chute nas costelas de Antônio, derruba alguns Magníficos e puxa a barba postiça de Shylock. Ele é o criminoso. Quanto ao hipócrita — ele é o mesmo tipo de criminoso que tudo interrompe, disfarçado de ator temporariamente ou segundo fins particulares (é Tartufo); ou então (e acho que é o tipo mais comum) é apenas um mau ator. Por natureza, como o resto de nós, ele é um criminoso que interrompe a cena; mas aceita os ensinamentos das Academias de Arte Dramática locais e admite que o mais alto dever do homem é fazer o papel de astro para plateias embevecidas. Mas ele é inteiramente sem talento. Quando está pensando em seu nobre papel, ele fala, declama e gesticula até fazer quem lhe assiste sentir-se envergonhado — por si mesmo, por ele, pela espécie humana. “Julgo que a dama, ou o cavalheiro, proteste demais” — eis o que se diz. E esses protestos parecem ainda mais excessivos quando, poucos momentos depois, observa-se que quem protestava esqueceu-se inteiramente de que estava representando um papel e está se comportando como o criminoso perturbador que está em sua natureza ser. Mas ele mesmo é tão mau pantomineiro, tão completamente sem talento para a representação convincente que não percebe suas próprias interrupções; ou, se percebe, é muito de leve e com a convicção de que ninguém mais vai notá-las. Em outras palavras, a maioria dos hipócritas é de hipócritas mais ou menos inconscientes. A Fada, tenho certeza, era um deles. Simplesmente não tinha consciência de ser uma aventureira de olho nos milhões de Chawdron. Tinha consciência, isso sim, de seu papel — o papel de Santa Catarina de Siena. Acreditava nele; tinha a ambição de ser uma artista de alta classe do West End. Mas, infelizmente, não tinha talento. Representava seu papel com tão pouca naturalidade, com tantos exageros grotescos que uma pessoa normalmente sensível só podia estremecer diante de tão vergonhoso espetáculo. Era um desempenho capaz de convencer apenas os cegos e surdos espirituais. E, graças às suas preocupações com a Petróleos Nova Guiné, Chawdron era cego e surdo espiritualmente falando. Seu profundo senso religioso era o profundo senso religioso de um sub-homem. Quando ele exibia a gatinha canonizada, eu tinha náuseas; mas Chawdron achava que ela tinha o caráter mais “belo” que ele já encontrara num ser humano. E não apenas pensava que ela tinha o caráter mais belo; ele também pensava, o que era quase mais engraçado, que ela tinha a mente refinada. Era a conversa metafísica dela que o impressionava. Ela lera uns trechinhos de Spinoza e Platão e um livrinho qualquer sobre os místicos do cristianismo e uma boa quantidade daquela frouxa literatura teosófica tão popular nos subúrbios e entre coronéis aposentados e senhoras de certa idade; de modo que podia falar sobre o cosmo com muita profundidade. E, por Deus, como ela era profunda! Eu costumava às vezes perder a paciência, tudo era uma bobagem tão grande, era tanta a ignorância… Mas Chawdron a escutava reverente, cheio de enlevo, admiração e fé. Acreditava em cada palavra. Quando alguém é totalmente sem educação e amealhou fortunas mediante fraudes legais, essa pessoa é capaz de acreditar na falácia da matéria, na não existência do mal, na unidade de toda a diversidade e na espiritualidade de todas as coisas. Toda a sua vida ele conservou o presbiterianismo da infância — e com muitíssimo fervor. E agora enxertava a chorumela da Fada no Catecismo, ou no que quer que os presbiterianos aprendam na infância. Não via incongruência alguma em ser tanto um bom presbiteriano quanto um consumado vigarista. Representava o papel de presbiteriano apenas aos domingos e quando estava doente, nunca em horário de trabalho. A religião nunca tivera permissão para invadir a santidade de sua vida particular. Mas com o avançar da meia-idade sua mente ficou mais frouxa, os efeitos de uma vida mal usada começaram a se fazer sentir. E ao mesmo tempo seu afastamento dos negócios eliminou quase todas as distrações não essenciais. Seu profundo senso religioso tinha mais chance de expressar-se. Ele podia chafurdar tranquilo no sentimentalismo e na tolice. A Fada fez sua aparição providencial e mostrou-lhe quais eram os montes de estrume emocionais e intelectuais mais macios para ele chafurdar. Ele ficou grato — lealmente grato, mas não sem perder o senso do ridículo. Nunca me esquecerei, por exemplo, da ocasião em que falou sobre o gênio da Fada. Estávamos jantando na casa dele, eu, ele e a Fada. Um jantar horrível, com a Fada, mistura de Santa Catarina de Siena e Mahatma Gandhi, explicando por que era vegetariana e asceta. Tinha aquele horrível complexo da classe média fina a respeito de comida que faz com que os modos à mesa nas praças de alimentação das galerias sejam tão grotescamente perfeitos — aquele medo de ser baixo ou vulgar que leva as pessoas a comerem como se não estivessem comendo. Elas nunca botam comida na boca, e só mastigam com os dentes da frente, como coelhos. E nunca tocam em coisa alguma com os dedos. Já vi uma mulher comer cereja com garfo e faca em um lugar desses. Muitíssimo extraordinário e repulsivo. Bem, a Fada tinha esse complexo — é uma questão de classe — mas com ela era racionalizado em termos de ahimsa e ascetismo cristão. Bem, ela tinha passado a noite inteira tagarelando sobre o espírito do amor e sua incompatibilidade com uma dieta de carne, e a necessidade de mortificar o corpo por causa da alma, e sobre Buda e São Francisco e os êxtases místicos e, acima de tudo, sobre si mesma. Deixou-me quase louco de irritação, sem mencionar o fato de que ela realmente começou a me fazer perder a fome com suas rapsódias de horror e nojo santos. Fiquei grato quando finalmente ela nos deixou em paz com nosso conhaque e nossos charutos. Mas Chawdron inclinou-se sobre a mesa em minha direção, brilhando espiritualmente em cada centímetro daquele seu rosto de falsário. “Ela não é maravilhosa?”, perguntou. “Não é simplesmente ma-ra-vi-lho-sa?” “Maravilhosa”, concordei. E então, com muita solenidade, sacudindo o dedo para mim, ele disse: “Conheci três grandes intelectos em minha vida, três gênios — Lorde Northcliffe, o sr. John Morley e essa menininha. Esses três”. E recostou-se novamente na cadeira assentindo para mim quase ferozmente, como se me desafiasse a negar.