O primeiro filósofo

E no entanto, o primeiro filósofonão é um xamã. O seu papal consiste em ensinar, fazer Escola. O segredo do xamã, propõe-se o filósofo divulgá-lo a um corpo de discípulos; o que era o privilégio de uma personalidade excepcional, ele estende-o a todos aqueles que desejam entrar na sua confraria. É quase inútil indicar as consequências desta inovação. Divulgada, alargada, a prática secreta torna-se objeto de ensino e de discussão: organiza-se em doutrina. A experiência individual do xamã, que crê reencarnar um homem de Deus, generaliza-se à espécie humana sob a forma de uma teoria da reencarnação.

Divulgação de um segredo religioso, extensão a um grupo aberto de um privilégio reservado, publicidade de um saber outrora interdito, tais são pois as características da viragem que permite à figura do filósofo destacar-se da pessoa do mago. Esta viragem da história, constatamo-la em toda uma série de planos no período de perturbação social e de efervescência religiosa que prepara, entre os séculos VIII e VII a.C., o aparecimento da Cidade. Veem-se então alargar, popularizar, e por vezes integrar-se inteiramente no Estado, prerrogativas religiosas sobre as quais gene reais e nobiliárias asseguravam o seu domínio. Os antigos clãs sacerdotais punham o seu saber sagrado, o seu domínio das coisas divinas, ao serviço de toda a Cidade. Os santos ídolos, os velhos Csoana, talismãs conservados secretos no palácio real ou na casa do sacerdote, emigram para o templo, que é residência pública, e transformam-se, aos olhos da Cidade, em imagens que se destinam a ser vistas. As decisões de justiça, as themistes, privilégios dos Eupátridas, são redigidas e publicadas. Ao mesmo tempo que se opera esta confiscação dos cultos privados em benefício de uma religião pública, fundam-se à margem do culto oficial da Cidade, em torno de individualidades poderosas, formas novas de agrupamentos religiosos. Tíasos, confrarias e mistérios abrem, sem restrição de categoria ou de origem, o acesso a verdades sagradas que eram outrora apanágio de linhagens hereditárias. A criação de uma seita religiosa com as que se denominam órficas, a fundação de um mistério, e a instituição de uma confraria de “sábios”, como a de Pitágoras, manifestam, em condições e meios diferentes, o mesmo grande movimento social de alargamento e de divulgação de uma tradição sagrada aristocrática.

A filosofia constitui-se neste movimento, no termo deste movimento, o qual, só ela, impele até o extremo. Apesar do seu alargamento, seitas e mistérios subsistem, todavia, como grupos fechados e secretos. É isso mesmo aliás o que os define. Apesar de certos elementos de doutrina que coincidem com os temas de filosofia nascente, a revelação misteriosa conserva necessariamente o caráter de um privilégio que escapa à discussão. Pelo contrário, a filosofia, no seu progresso, rompe o quadro da confraria em que teve origem. A sua mensagemnão se limita a um grupo, a uma seita. Por intermédio da palavra e da escrita, o filósofo dirige-se a toda a cidade, a todas as cidades. Oferece as suas revelações a uma publicidade completa. Ao trazer o “mistério” para a praça pública, em plena ágora, converte-o em um objeto de debate público e contraditório, no qual a argumentação dialética acaba por superar a iluminação sobrenatural1.

Estas observações gerais encontram confirmação em constatações mais precisas. G. Thomson2 fez notar que os fundadores da física milésia, Tales e Anaximandro, são aparentados a um clã de alta nobreza sacerdotal, os Thelidai, que descendem de uma família tebana de sacerdotes-reis, os Kadmeioi, vindos da Fenícia. Ao serem divulgadas na Cidade as indagações dos primeiros filósofos sobre astronomia e cosmologia puderam assim transpor uma antiga tradição sagrada, de origem oriental.

O exemplo de Heráclito é mais sugestivo ainda. O aspecto contrastante e antitético de um estilo em que se entrechocam expressões opostas, o uso de trocadilhos, uma forma voluntariamente enigmática, tudo na língua de Heráclito recorda as fórmulas litúrgicas utilizadas nos mistérios, em particular em Elêusis. Ora, Heráclito descende do fundador de Éfeso, Ândroclo, que dirigiu a emigração jônia e cujo pai era Codro, rei de Atenas. O próprio Heráclito teria sido rei, se não tivesse abdicado em favor de seu irmão. Pertence a esta família real de Éfeso que tinha conservado, com o direito ao manto púrpuro e ao cetro, o privilégio do sacerdócio de Deméter Eleusínia. Mas o logos, de que Heráclito oferece nos seus escritos a obscura revelação, se prolonga os legómena de Elêusis e os hierói logoi órficos, já não exclui ninguém; é, pelo contrário, o que há de comum nos homens, este “universal” sobre o qual todos se devem igualmente apoiar “como a Cidade repousa sobre a lei”3.


  1. L. Gernet escreve: “os Pitagóricos, é verdade, não têm “mistérios”, mas o que é certo é que a ‘filosofia’ é já para eles justamente um” (lac. cit., p. 4). É através da discussão e da controvérsia, pela necessidade de responder aos argumentos dos adversários, que a filosofia se constitui como uma disciplina intelectual específica. Mesmo quando não polemiza, o filósofo reflete em função dos problemas postos pelos seus predecessores e contemporâneos, pensa em relação a eles. O pensamento moral toma a forma racional do dia em que Sócrates discute publicamente na ágora com todos os atenienses acerca do que são a coragem, a justiça, a piedade, etc. 

  2. G. Thomson, “From religion to philosophy”, Journal of Hellenic Studies, 1953, LXXIII, pp. 77-84. O autor retomou o seu estudo em The first philosophers, pp. 131-137. 

  3. “Para falar com inteligência, devemos assentar a nossa força no que é universal, como a Cidade se apoia na lei” (Heráclito, fr. 128, Diels-Kranz). 

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