Needleman Razão e Fé

Excertos de Cristianismo Perdido, de Jacob Needleman

Meus pensamentos ficaram girando em torno da palavra “observação”. “Os Padres observando o que ocorria neles… num estado de oração.” Essa declaração, se abordada de certo ângulo, reduzia inteiramente a distinção entre “fé” e “razão”, que, durante séculos, atormentara a compreensão que as pessoas tinham do cristianismo. A verdadeira divisão, a escolha real, não é entre “razão” e “fé”. A distinção importante é entre a consciência dos seus próprios estados e as reações inconscientes não só do pensamento como da emoção. Escolher entre pensamento e emoção, entre “razão” e “fé” é perder de vista o ponto importante. Atenção sobre si é o que importa; é isto que traz tanto o conhecimento real como a real, que não são, de modo algum, opostas entre si.

Senti que aqui estava a verdadeira abordagem da gnosis cristã, ou o conhecimento que salva, o conhecimento que transforma a vida e o ser do homem. E comecei a compreender por que se fala tão raramente desse conhecimento ou de maneiras tão indiretas na literatura que se conhece da tradição. Isso nada tinha a ver com “saber x acreditar”.

Na sua forma mais familiar, a dicotomia entre saber e crer assenta num elemento evidente da experiência de todos. O que o intelecto sabe pode contradizer aquilo em que “o coração” acredita. Pode-se querer acreditar na imortalidade, por exemplo, ou no céu e no inferno, ou na bondade do mundo ou na existência de Deus. Mas, ao mesmo tempo, tais crenças podem ser opostas a toda a lógica da pessoa, podem ser completamente contrárias aos dados à mão. A verdade é independente de meus desejos.

Ao mesmo tempo, o cristianismo reconhece que o pensamento, por si só, não pode ocasionar uma mudança da natureza humana. Como todas as grandes religiões, o cristianismo não se oferece unicamente como uma explicação das coisas, mas como um meio de tornar as coisas diferentes, de tornar o homem diferente. Posso ter pensamentos relevantes e verdadeiros, posso ter absoluta integridade em meu intelecto, e, no entanto, ao mesmo tempo, posso não ser capaz de viver a minha vida de acordo com o que sei ser verdadeiro ou certo. Isto também deveria ser um fato evidente na experiência de cada um. Enquanto minha vida emocional continuar sendo o que é, todo o pensar correto do mundo não alterará a minha natureza essencial, minha personalidade íntima, meu próprio ser.

Este último ponto, no entanto, não é inteiramente óbvio na nossa experiência. Seja como for, a compreensão intelectual de uma grande ideia é acompanhada pela convicção, uma espécie de asseveração inconsciente, de que viverei de acordo com essa ideia. Parece não importar o grande número de vezes que a vida nos demonstra o nosso erro em relação à nossa capacidade nesse sentido: continuamos a cair nas malhas dessa ilusão. Os pensamentos, talvez de modo especial os pensamentos relacionados com as verdades mais importantes, têm a propriedade de absorver toda a nossa consciência, deixando-nos cegos à característica efetiva dos impulsos emocionais e físicos que dirigem a totalidade da nossa vida quotidiana. Na linguagem do cristianismo, o pensamento produz o orgulho.

Em todas as tradições religiosas do mundo, deve-se encontrar um ensinamento semelhante. As proibições contra a feitura de imagens visuais de Deus ou de Seus mensageiros relacionam-se indubitavelmente com esse ensinamento. A severidade das punições ou as consequências que as tradições afirmam resultarem da violação de tais preceitos podem ser melhor compreendidas, na linguagem moderna, como uma indicação da enormidade do que o homem perde por deixar de compreender essa propriedade sedutora da função intelectual. Ele perde tudo; perde a possibilidade de tornar-se efetivamente aquilo que procura ser. Quando as tradições nos dizem que Deus está além da compreensão da inteligência, não estão dizendo ser impossível captara natureza de Deus do mesmo modo que é difícil entender uma teoria científica complexa ou explicar os fenômenos naturais. Pelo contrário, o problema é que a inteligência, sozinha, pode “compreender” Deus, pode formar uma ideia de Deus. Só que tais ideias, por si mesmas, não podem mudar nada em nós. Algo mais é necessário, algo muito mais difícil e indefinível. O homem não deve depositar suas esperanças no intelecto isolado.

Dizendo de outra maneira: a esperança da inteligência, o desejo de uma relação com a Verdade e o Ser, com Deus, não está no desenvolvimento de uma parte da mente.

Nos séculos iniciais de nossa era, os ensinamentos do cristianismo se depararam com a tradição da filosofia grega, que, em sua maior parte, tinha se tornado muito desligada da disciplina moral interior das escolas de Pitágoras, Sócrates e Platão. Para os cristãos antigos e medievais, a filosofia grega era, falando de modo geral, o equivalente do que o pensamento científico é no mundo moderno: a explicação intelectual da realidade. Os maiores teólogos cristãos, como Escoto Eriugena – John Scotus Erigena e Tomás de Aquino, nunca opuseram os ensinamentos de Platão ao cristianismo, mas — especialmente no caso de Escoto Eriugena – Erigena — reconheciam que uma luta interior específica era a base na qual os conceitos metafísicos poderiam orientar a transformação da natureza humana. A explicação intelectual como tal poderia levar um homem a começar a luta, mas nunca poderia nem deveria assumir o lugar da luta interior. Esses teólogos oferecem uma forma de filosofia que podemos chamar metafísica contemplativa, uma forma de empirismo interior no qual as ideias sobre o universo invisível são estudadas e experimentadas no mundo interior de cada um.

A nossa questão aqui, entretanto, se refere à errônea dicotomia entre e razão, que se estabeleceu gradativamente na abordagem ocidental tanto do significado da religião como, na verdade, da própria vida. A mensagem da Tradição, nesse sentido, é que há no homem uma força que o arrasta para a Verdade. Essa força não é nem a função intelectual nem a função emocional, tais como são geralmente compreendidas. A palavra “fé” pode ser introduzida aqui. Mas essa palavra não pode simplesmente ser equiparada a “crença” no sentido de uma convicção que é emocionalmente carregada, mas oposta às explicações intelectuais.

Essa força ou impulso interno “se opõe” à totalidade da inteligência comum, incluindo tanto a razão como a crença, tais como são convencionalmente definidas. Um erro de grande alcance parece assim ter-se insinuado na compreensão do cristianismo, quando uma parte da mente comum, ou “degradada”, a função intelectual, foi distinguida de outra parte da mente comum, a função emocional, e quando essa distinção foi apresentada como central e exaustiva da condição humana. Pedia-se ao homem que escolhesse entre a e a razão. Mas, do ponto de vista atual, o inimigo da não é a crença nem a razão como tais. O verdadeiro inimigo é a tendência do homem a dar crédito àquilo que é apenas uma parte da mente ou eu, a tomar a parte como o todo, a considerar um elemento subsidiário da natureza humana como o portador da unidade ou totalidade do ser.

A distinção entre e razão levou, no decorrer dos séculos, a debates momentosos sobre a natureza da autoridade religiosa ou da revelação. A Igreja exigia, em geral, a crença em ideias e proposições que o intelecto não poderia aceitar com base na experiência e reflexão comuns. Em oposição a essa exigência, sobretudo a partir do início da revolução científica e do Iluminismo, estava a de uma demonstração intelectual baseada, quer na reflexão lógica, quer na observação empírica do mundo exterior. A pergunta “Aonde ir buscar a origem da verdade cristã?” permaneceu encravada nessa dicotomia muito duvidosa.

E assim ainda permanece.

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