Merleau-Ponty (FP) – corpo próprio

(MPFP)

A ilusão sobre o corpo próprio acarreta a aparência do movimento no objeto. Intro III

Os movimentos do corpo próprio são naturalmente investidos de certa significação perceptiva, eles formam, com os fenômenos exteriores, um sistema tão bem ligado que a percepção externa “leva em conta” o deslocamento dos órgãos perceptivos, encontra neles, senão a explicação expressa, pelo menos o motivo das mudanças que intervieram no espetáculo, e assim pode compreendê-las imediatamente. Intro III

Foi justamente a Gestalttheorie que nos fez tomar consciência dessas tensões que, como linhas de força, atravessam o campo visual e o sistema corpo próprio/mundo, e que os animam com uma vida surda e mágica, impondo aqui e ali torções, contrações, dilatações. Intro III

Ora, a percepção do corpo próprio e a percepção externa, acabamos de vê-lo, oferecem-nos o exemplo de uma consciência não-tética, quer dizer, de uma consciência que não possui a plena determinação de seus objetos, a de uma lógica vivida que não dá conta de si mesma, e a de uma significação imanente que não é para si clara e se conhece apenas pela experiência de certos signos naturais. Intro III

O puro quale só nos seria dado se o mundo fosse um espetáculo e o corpo próprio um mecanismo do qual um espírito imparcial tomaria conhecimento. Intro IV

Ver-se-á que o corpo próprio se furta, na própria ciência, ao tratamento que a ele se quer impor. Intro IV

Quando descrevia o corpo próprio, a psicologia clássica já lhe atribuía “caracteres” incompatíveis com o estatuto de objeto. Intro II

Ora, a permanência do corpo próprio é de um gênero inteiramente diverso: ele não está no limite de uma exploração indefinida, ele se recusa à exploração e sempre se apresenta a mim sob o mesmo ângulo. Intro II

Mostra que, inversamente, as ações em que me envolvo por hábito incorporam a si seus instrumentos e os fazem participar da estrutura original do corpo próprio. Intro II

Quando digo que meu corpo é sempre percebido por mim, essas palavras não devem então ser entendidas em um sentido simplesmente estatístico e deve haver na apresentação do corpo próprio algo que torne impensável sua ausência ou mesmo sua variação. Intro II

Assim, a permanência do corpo próprio, se a psicologia clássica a tivesse analisado, podia conduzi-la ao corpo não mais como objeto do mundo, mas como meio de nossa comunicação com ele, ao mundo não mais como soma de objetos determinados, mas como horizonte latente de nossa experiência, presente sem cessar, ele também, antes de todo pensamento determinante. Intro II

Enfim, quando os psicólogos quiseram reservar ao corpo próprio “sensações anestésicas” que nos dariam globalmente seus movimentos, ao passo que eles atribuíam os movimentos dos objetos exteriores a uma percepção mediata e à comparação das posições sucessivas, podia-se opor-lhes que o movimento, sendo uma relação, não poderia ser sentido e que exige um percurso mental, mas essa objeção só condenava a linguagem deles. Intro II

Se a descrição do corpo próprio na psicologia clássica já apresentava tudo o que é necessário para distingui-lo dos objetos, de onde provém que os psicólogos não tenham feito essa distinção ou que, em todo caso, não tenham extraído dela nenhuma consequência filosófica? É que, por um passo natural, eles se situavam no lugar de pensamento impessoal ao qual a ciência se referiu enquanto ela acreditou poder separar, nas observações, o que diz respeito à situação do observador e as propriedades do objeto absoluto. Intro II

Para o sujeito vivo, o corpo próprio podia ser diferente de todos os objetos exteriores; para o pensamento não situado do psicólogo, a experiência do sujeito vivo tornava-se por sua vez um objeto e, longe de reclamar uma nova definição do ser, ela se localizava no ser universal. Intro II

No que concerne à espacialidade, que é a única a nos interessar no momento, o corpo próprio é o terceiro termo, sempre subentendido, da estrutura figura e fundo, e toda figura se perfila sobre o duplo horizonte do espaço exterior e do espaço corporal. Intro III

O doente picado por um mosquito não precisa procurar o ponto picado e o encontra à primeira tentativa porque não se trata para ele de situá-lo em relação a eixos de coordenadas no espaço objetivo, mas de atingir com sua mão fenomenal um certo lugar doloroso de seu corpo fenomenal, e porque entre a mão enquanto potência de coçar e o ponto picado enquanto ponto a ser coçado está dada uma relação vivida no sistema natural do corpo próprio. Intro III

E, com efeito, ele não é desencadeado por nenhum objeto existente, ele é visivelmente centrífugo, desenha no espaço uma intenção gratuita que se dirige ao corpo próprio e o constitui como objeto em vez de atravessá-lo para, através dele, ir ao encontro das coisas. Intro III

Os sentidos e, em geral, o corpo próprio apresentam o mistério de um conjunto que, sem abandonar sua ecceidade e sua particularidade, emite, para além de si mesmo, significações capazes de fornecer sua armação a toda uma série de pensamentos e de experiências. Intro III

Habituar-se a um chapéu, a um automóvel ou a uma bengala é instalar-se neles ou, inversamente, fazê-los participar do caráter volumoso de nosso corpo próprio. Intro III

Constatamos pela primeira vez, a propósito do corpo próprio, aquilo que é verdadeiro de todas as coisas percebidas: que a percepção do espaço e a percepção da coisa, a espacialidade da coisa e seu ser de coisa não constituem dois problemas distintos. Intro IV

Diremos então que percebemos nosso corpo por sua lei de construção, assim como conhecemos antecipadamente todas as perspectivas possíveis de um cubo a partir de sua estrutura geométrica? Mas — para não falar ainda dos objetos exteriores — o corpo próprio nos ensina um modo de unidade que não é a subsunção a uma lei. Intro IV

Se ainda se pode falar, na percepção do corpo próprio, de uma interpretação, seria preciso dizer que ele se interpreta a si mesmo. Intro IV

Do mesmo modo que acima o hábito motor esclarecia a natureza particular do espaço corporal, aqui o hábito em geral permite compreender a síntese geral do corpo próprio. Intro IV

E, do mesmo modo que a análise da espacialidade corporal antecipava a análise da unidade do corpo próprio, agora podemos estender a todos os hábitos o que dissemos dos hábitos motores. Intro IV

Aprender a ver as cores é adquirir um certo estilo de visão, um novo uso do corpo próprio, é enriquecer e reorganizar o esquema corporal. Intro IV

A identidade da coisa através da experiência perceptiva é apenas um outro aspecto da identidade do corpo próprio no decorrer dos movimentos de exploração; ela é portanto do mesmo tipo que esta: assim como o esquema corporal, a chaminé é um sistema de equivalências que não se funda no reconhecimento de alguma lei, mas na experiência de uma presença corporal. Intro VI

Melhor ainda do que nossas observações sobre a espacialidade e a unidade corporais, a análise da fala e da expressão nos faz reconhecer a natureza enigmática do corpo próprio. Intro VI

Essa revelação de um sentido imanente ou nascente no corpo vivo se estende, como o veremos, a todo o mundo sensível, e nosso olhar, advertido pela experiência do corpo próprio, reencontrará em todos os outros “objetos” o milagre da expressão. Intro VI

O problema do mundo, e, para começar, o do corpo próprio, consiste no fato de que tudo reside ali. Intro VI

A experiência do corpo próprio, ao contrário, revela-nos um modo de existência ambíguo. Intro VI

Assim, a experiência do corpo próprio opõe-se ao movimento reflexivo que destaca o objeto do sujeito e o sujeito do objeto, e que nos dá apenas o pensamento do corpo ou o corpo em ideia, e não a experiência do corpo ou o corpo em realidade. Intro VI

Mas, se nossa união com o corpo é substancial, como poderíamos sentir em nós mesmos uma alma pura e dali ter acesso a um Espírito absoluto? Antes de colocar essa questão, vejamos tudo o que está implicado na redescoberta do corpo próprio. Intro VI

O corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema. II VI

A percepção exterior e a percepção do corpo próprio variam conjuntamente porque elas são as duas faces de um mesmo ato. II VI

Portanto, aqui a síntese do objeto se faz através da síntese do corpo próprio, ela é sua réplica ou seu correlativo, e literalmente é a mesma coisa perceber uma única bola e dispor dos dois dedos como de um órgão único. II VI

Reciprocamente, uma certa forma de experiência externa implica e acarreta uma certa consciência do corpo próprio. II VI

Isso ocorre porque há uma equivalência imediata entre a orientação do campo visual e a consciência do corpo próprio enquanto potência desse campo, de tal forma que a subversão experimental pode traduzir-se indiferentemente pela inversão dos objetos fenomenais ou por uma redistribuição das funções sensoriais no corpo. II VI

Subordina-se todo o sistema da experiênciamundo, corpo próprio, eu empírico — a um pensador universal encarregado de produzir as relações dos três termos. II I

Ora, se o corpo próprio e o eu empírico são apenas elementos no sistema da experiência, objetos entre outros objetos sob o olhar do verdadeiro Eu, como pudemos algum dia confundir-nos com nosso corpo, como pudemos acreditar que víamos com nossos olhos aquilo que na verdade apreendíamos por uma inspeção do espírito, como o mundo não é perfeitamente explícito diante de nós, por que ele só se desdobra pouco a pouco e nunca “inteiramente”, enfim como ocorre que nós percebamos? Nós só o compreenderemos se o eu empírico e o corpo não forem imediatamente objetos, nunca se tornarem totalmente objetos, se houver um certo sentido em dizer que vejo o pedaço de cera com meus olhos e se, correlativamente, esta possibilidade de ausência, esta dimensão de fuga e de liberdade que a reflexão abre no fundo de nós e que chamam de Eu transcendental em primeiro lugar não forem dadas e nunca forem absolutamente adquiridas, se nunca puder dizer “Eu” absolutamente, e se todo ato de reflexão, toda tomada de posição voluntária se estabelecerem sobre o fundo e sobre a proposição de uma vida de consciência pré-pessoal. II I

Apoiada na unidade pré-lógica do esquema corporal, a síntese perceptiva não possui o segredo do objeto, assim como o do corpo próprio, e é por isso que o objeto percebido se oferece sempre como transcendente, é por isso que a síntese parece fazer-se no próprio objeto, no mundo, e não neste ponto metafísico que é o sujeito pensante, é nisso que a síntese perceptiva se distingue da síntese intelectual. II I

Mas o que nos importa se, no final das contas, essas descrições não querem dizer nada que se possa pensar e se a reflexão os convence do não-senso? No plano da opinião, o corpo próprio é ao mesmo tempo objeto constituído e constituinte em relação aos outros objetos. II I

Saber como uma situação normal se restabelece redunda então em saber como a nova imagem do mundo e do corpo próprio pode “empalidecer” ou “deslocar” a outra. II II

Afirmamos que o “nível espacial” não se confunde com a orientação do corpo próprio. II II

Se sem dúvida alguma a consciência do corpo próprio contribui para a constituição do nível — uma pessoa, cuja cabeça está inclinada, coloca em posição oblíqua um cordão móvel que lhe solicitam colocar verticalmente —, nessa função ela está em concorrência com os outros setores da experiência. II II

No decorrer da experiência, constata-se uma fase intermediária em que o corpo tátil parece invertido e a paisagem direita porque, já vivendo na paisagem, eu a percebo por isso mesmo como direita, e porque a perturbação experimental é atribuída ao corpo próprio que é, assim, não uma massa de sensações efetivas, mas o corpo que é preciso ter para perceber um espetáculo dado. II II

Se alguma vez se pode falar de movimento sem móbil, é exatamente no caso do corpo próprio. II II

Ora, se o mundo se pulveriza ou se desloca, é porque o corpo próprio deixou de ser corpo cognoscente, de envolver todos os objetos em uma apreensão única, e essa degradação do corpo em organismo deve ser ela mesma relacionada ao desfalecimento do tempo, que não se ergue mais em direção a um futuro e toma a cair sobre si mesmo. “ II II

Essa análise da percepção do peso ilumina toda a percepção tátil: o movimento do corpo próprio é para o tato aquilo que a iluminação é para a visão. II III

O objeto que se oferece ao olhar ou à palpação desperta uma certa intenção motora que visa não os movimentos do corpo próprio, mas a coisa mesma à qual eles estão como que pendurados. II III

O comportamento humano abre-se a um mundo (Welt) e a um objeto (Gegenstand) para além dos utensílios que ele se constrói; ele pode até mesmo tratar o corpo próprio como um objeto. II III

Toda alucinação é em primeiro lugar alucinação do corpo próprio. “ II III

Isso significa, em primeiro lugar, que nosso corpo não é um objeto, nem seu movimento um simples deslocamento no espaço objetivo, sem o que o problema só seria deslocado, e o movimento do corpo próprio não traria nenhum esclarecimento ao problema da localização das coisas, já que ele mesmo seria uma coisa. III I

A análise do corpo próprio e da percepção nos relevou uma relação ao objeto, uma significação mais profunda do que aquela. III II