Lovejoy (GCS:35-38) – outra-mundanidade metafísica

Aldo Fernando Barbieri

Mas os efeitos sociais e políticos da outra-mundanidade, embora sejam um tema rico e interessante, não nos dizem respeito aqui, a não ser como um lembrete de que a outra-mundanidade, na prática, sempre foi obrigada a estabelecer boas relações com este mundo e frequentemente serviu como instrumento a fins estranhos a seus princípios. É de sua própria natureza como um modo de pensamento e sentimento humano e, sobretudo, pelos motivos filosóficos que lhe fornecem seus fundamentos ou sua “racionalização” que alguma consideração adicional seja pertinente ao nosso tópico. Ela pode manifestamente existir, e historicamente existiu, em diversos graus; pode receber aplicação parcial em alguns campos do pensamento e não cm outros; e seus traços podem surgir em contextos estranhos e incongruentes. Há uma outra-mundanidade puramente metafísica que às vezes pode ser encontrada completamente dissociada de qualquer teoria da natureza do bem que lhe corresponda e, portanto, de qualquer temperamento moral e religioso outro-mundano. Talvez o exemplo mais estranho disso possa ser visto na meia dúzia de capítulos irrelevantes sobre o Incognoscível que Herbert Spencer, sob a influência de Hamilton e Mansel, antepôs à Filosofia Sintética. Além disso, como já dei a entender, há várias características ou categorias distintas no mundo do pensamento e da experiência comuns que podem dar margem à negação ou de sua “realidade” ou de seu valor. Ela pode ser metafisicamente condenada apenas por causa de seu caráter temporal e de sua perpétua incompletude; ou por causa da aparente relatividade de todos os membros que a compõem, da carência em cada um deles de qualquer inteligibilidade autosuficiente na qual o pensamento pode encontrar seu termo; ou porque ela parece ser uma mera coleção aleatória de existências insignificantes, todas fragmentadas, imperfeitas e sem nenhuma evidente e necessária razão de ser; ou porque a apreensão dela por nós se dá por meio destes órgãos enganadores, os sentidos, que, nem em si próprios nem mesmo em quaisquer construções inferenciais neles baseadas e definidas nos termos que eles proporcionam, podem ser isentos da suspeita de subjetividade; ou por causa de sua mera multiplicidade, sua recalcitrância àqueles anseios insaciáveis por unidade que assaltam a razão especulativa; ou — no caso de certas mentes menos raciocinativas — simplesmente por causa de experiências intermitentes nas quais ela perde a sensaçãoNo original: feel. (N. do T.) de realidade — Fallings from us, vanishings. / Blank misgivings of a creature / Moving about in worlds not realized —Deslocando-se de nós, desvanecentes,/ Suspeitas em branco de uma criatura/ Vagando em mundos não realizados. (N. do T.) de maneira que a convicção que em tais mentes sobrepuja aquela verdadeira existência, o mundo no qual a alma pode se sentir em casa, deve ser de algum modo diferente de “tudo isso”. Qualquer um desses motivos pode dar origem a uma ontologia genuinamente outra-mundana porque cada um deles se fixa em uma característica verdadeiramente distinta e constitutiva “deste” mundo. Mas, quando apenas uma ou poucas delas são operativas, não resulta o que poderia ser chamado de uma outra-mundanidade integral no sentido metafísico; algumas outras características do mundo conhecidas pela experiência natural permanecem isentas da acusação. No que se refere ao valor, novamente, “este” mundo pode ser rejeitado como mau ou sem valor com base em qualquer uma ou em todas as queixas costumeiras que enchem as páginas dos moralistas outro-mundanos e mestres religiosos; porque o processo do mundo, quando se faz a tentativa de concebê-lo como um todo. apresenta à imaginação apenas um drama incoerente e tedioso, pleno de som e fúria, mas sem significado algum — ou uma repetição despropositada dos mesmos episódios, ou um conto de mudanças infindáveis que começa em lugar nenhum, não alcançou uma consumação comensurável com o tempo infinito no qual ele tem se desenvolvido e tende para um objetivo não inteligível; ou porque, como por experiência se mostrou, todos os desejos que surgem no tempo e são orientados para fins temporais constituem apenas uma infindável renovação da insatisfação e, por reflexão, podem ser vistos participar da incompreensível transitoriedade do processo no qual estão imersos; ou porque há, em não poucos homens e até mesmo em alguns que são incapazes de um verdadeiro êxtase místico, uma rebelião emocional recorrente contra a mútua exterioridade das coisas e contra a separação limitadora de seu próprio ser, uma ânsia de escapar do fardo da autoconsciência, de “esquecer que eu sou eu” e de perder-se numa unidade em que todo o senso de divisão e toda a consciência de alteridade possam ser transcendidos. Uma outra-mundanidade integral combinaria todos esses motivos e acusaria este mundo de todos os delitos. Isso é melhor exemplificado em algumas das Upanishads, no sistema Vedanta, no estilo vedantista e budista — tão ironicamente estranhas à vida real e ao temperamento pessoal de Schopenhauer — em Die Welt als Wille und Vorstellung; o budismo primitivo, que é uma espécie de outra-mundanidade pragmática, fica aquém da integral somente por causa de sua negatividade. sua insistência na insubstancialidade e na insignificância deste mundo, sem nenhuma asseveração totalmente inequívoca da realidade positiva e do valor positivo do alternativo. Alguns observadores modernos da outra-mundanidade talvez questionem se, nesse aspecto, o budismo não teria chegado mais perto de revelar a estranha verdade que muitos dos grandes filósofos e teólogos se dedicaram a ensinar: o culto da — não-existência; embora de uma não-existência criada para parecer mais “real” e emocionalmente mais satisfatória graças a uma ênfase em sua liberdade com relação aos defeitos e limitações particulares — a relatividade, os conflitos lógicos internos, a carência de finalidade para o pensamento e o desejo — que caracterizam todos os objetos concretos sobre os quais podemos pensar de maneira absoluta. Para nosso propósito não é necessário tentar responder aqui a essa grande questão. O certo é que tais filósofos sempre acreditaram estar fazendo exatamente o contrário disso.

Mas nenhuma outra-mundanidade, seja integral ou limitada, pode, como pareceria, fazer algo quanto ao fato de que há um “este-mundo” do qual é preciso evadir-se; menos ainda ela pode justificar ou explicar o ser de um tal mundo ou aquilo que ela nega de qualquer característica particular ou aspecto da existência empírica. Seu recurso natural é, portanto, como no Vedanta, recorrer ao expediente do ilusionismo. Mas chamar as características da experiência real de “ilusão”, de não-existência vazia, apesar de ser uma espécie de poesia que tem um pathos metafísico bastante potente, é, filosoficamente falando, com franqueza o mais extremo disparate. Essas características podem, de uma maneira concebível, ser “irreais”, no sentido em que elas não têm existência ou contrapartidas em uma ordem objetiva fora da consciência daqueles que as experimentam. Mas falar delas como absolutamente irreais, enquanto se experimenta a existência delas em sisi mesmo e se presume isso na de outros homens e enquanto se as apontam expressamente como imperfeições a serem transcendidas e males a serem vencidos, é obviamente negar e afirmar a mesma proposição ao mesmo tempo. E uma autocontradição não deixa de ser sem sentido por parecer sublime. Assim, qualquer filosofia outra-mundana que não tenha de recorrer a esse subterfúgio desesperado de ilusionismo parece ter este mundo, quaisquer que sejam suas deficiências ontológicas, em suas mãos como um mistério inexplicável, algo insatisfatório, ininteligível e mau, que aparentemente não deveria existir, se bem que de algum modo inegavelmente existe. E esse constrangimento é tão evidente nas formas parciais de outra-mundanidade como na variedade integral. Mesmo que fosse somente para a temporalidade, a sucessividade e a transitoriedade das experiências que conhecemos, que se desejaria negar o epíteto elogioso de “real”, resta ainda o fato de que toda a existência experimentada que temos é sucessiva e transitória e que tal existência é, por hipótese inicial, antitética àquela eterna e para sempre junto de seu objetivo.

Original

But the social and political effects of otherworldliness, though a rich and interesting theme, do not here concern us, except as a reminder that otherworldliness has always been compelled in practice to make terms with this world and has often been instrumental to ends foreign to its principles. It is of its own nature as a mode of human thought and feeling, and especially of the philosophic motives which provide its grounds or its ‘rationalization,’ that some further consideration is pertinent to our topic. It manifestly may exist, and historically has existed, in diverse degrees; it may receive partial application in some provinces of thought and not in others; and strains of it may turn up in queer and incongruous contexts. There is a purely metaphysical otherworldliness which is sometimes to be found completely dissociated from any corresponding theory of the nature of the good, and therefore from any otherworldly moral and religious temper. Perhaps the oddest example of this is to be seen in those half-dozen irrelevant chapters about the Unknowable which Herbert Spencer, under the influence of Hamilton and Mansel, prefixed to the Synthetic Philosophy. There are, moreover, as I have intimated, several distinct features or categories of the world of common thought and experience which may give rise to the denial of either its ‘reality ’ or its value. It may be metaphysically condemned merely because of its temporal character and perpetual incompleteness; or because of the seeming relativity of all its component members, the lack in each of them of any self-contained intelligibility in which thought can find its term; or because it seems to be merely a random collection of petty existences, all of them fragmentary, imperfect, and without any obvious and necessary reason for being; or because our apprehension of it is through those deceitful organs, the senses, which neither in themselves nor even in any inferential constructions based upon them and defined in the terms which they provide, can be freed from the suspicion of subjectivity; or because of its mere multiplicity, its recalcitrance to that insatiable craving [29] for unity which besets the speculative reason; or — in the case of certain less ratiocinative minds — simply because of intermittent experiences in which it loses the feel of reality —

Fallings from us, vanishings,
Blank misgivings of a creature
Moving about in worlds not realized —

so that the conviction becomes to such minds overpowering that true being, the world in which the soul can feel itself at home, must be somehow other than ‘all this.’ Any one of these motives may give rise to a genuinely otherworldly ontology because each of them fixes upon some one truly distinctive and constitutive character of ‘this’ world. But when only one or only a few of them are operative, there does not result what may be called an integral otherworldliness in the metaphysical sense; some other characters of the world known to natural experience remain exempt from the impeachment. On the side of value, again, ‘this ’ world may be dismissed as evil or worthless on the ground of any one, or all, of the familiar complaints which fill the pages of the otherworldly moralists and religious teachers: because the world-process, when the attempt is made to conceive it as a whole, presents to the imagination only an incoherent and tedious drama, full of sound and fury but signifying nothing — either a pointless repetition of the same episodes, or a tale of endless change which begins nowhere, has reached no consummation commensurate with the infinite time in which it has been going on, and verges to no intelligible goal; or because all desires that arise in time and are fixed on ends in time have been found by experience to constitute only an endless renewal of dissatisfaction, and can be seen by reflection to share necessarily in the baffling transiency of the process in which they are immersed; or because there is, in not a few men, even in some not themselves capable of the true mystic ecstasy, a recurrent emotional rebellion against the mutual externality of things and against the confining separateness of their own being, a craving to escape from the burden of self-consciousness, to “forget that I am I,” and be lost in a unity in which all sense of division and all consciousness of otherness would be transcended. An integral [30] otherworldliness would combine all these motives, and indict this world upon all counts. It is best exemplified in some of the Upanishads, in the system of the Vedanta, in the Vedäntist and Buddhist strain — so ironically alien to the actual life and personal temper of Schopenhauer — in Die Welt als Wille und Vorstellung·, primitive Buddhism, which is a kind of pragmatic otherworldliness, falls short of it only by its negativity, its insistence upon the insubstantiality and worthlessness of this world without any altogether unequivocal assertion of the positive reality and positive value of the alternative. Some modern observers of otherworldliness will perhaps question whether Buddhism has not in this come nearer to disclosing the strange truth that many of the great philosophers and theologians have been occupied with teaching the worship of — nonentity; though of nonentity made to seem more ‘ real ’ and emotionally more satisfying by an emphasis upon its freedom from the particular defects and limitations — the relativity, the internal logical conflicts, the lack of finality for thought and desire — which characterize all the concrete objects of which we can think at all. It is not necessary for our purpose to attempt to answer this large question here. What is certain is that such philosophers have always believed themselves to be doing precisely the reverse of this.

But any otherworldliness, whether integral or limited, can, it would seem, make nothing of the fact that there is a ‘ this world ’ to be escaped from; least of all can it justify or explain the being of such a world, or that of any particular feature or aspect of empirical existence which it negates. Its natural recourse, therefore, is, as in the Vedanta, to the device of illusionism. But to call the characters of actual experience ‘illusion,’ blank nonentity, though it is a kind of poetry which has a very potent metaphysical pathos, is, philosophically considered, plainly the extremest kind of nonsense. ‘ Unreal ’ those characters may conceivably be in the sense that they have no existence or no counterparts in an objective order outside the consciousness of those who experience them. But to speak of them as absolutely unreal, while experiencing their existence in oneself and assuming it in other men, and while expressly pointing to them as imperfections to be transcended [31] and evils to be overcome, is obviously to deny and affirm the same proposition in the same breath. And a self-contradiction does not cease to be meaningless by seeming sublime. Thus any otherworldly philosophy which does not resort to this desperate subterfuge of illusionism seems to have this world, whatever its ontological deficiencies, on its hands as an unaccountable mystery, a thing unsatisfying, unintelligible, and evil, which seemingly ought not to be, yet somehow undeniably is. And this embarrassment is as evident in the partial forms of otherworldliness as in the integral variety. Even though it be only to the temporality, the successiveness and lapsingness, of the experiences we know, that you wish to deny the eulogistic epithet of ‘ real,’ it remains the fact that all the experienced existence that we have is successive and lapsing, and that such existence is, by initial hypothesis, antithetic to that which is eternal and forever at the goal.

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