Um exemplo para se compreender melhor aquilo que Gérard Simon define como «um estilo de presença no mundo e de presença em si que nós só podemos detetar com um sério esforço de distanciamento metódico, que exige uma autêntica reposição arqueológica [L’âme du monde, in Le Temps de la réfléxion, X, Paris 1989, p 123], é a questão da vista e da visão. Na cultura grega, o «ver» tem um estatuto privilegiado; é tão valorizado que ocupa, no conjunto das capacidades humanas, uma posição hegemônica. De uma certa forma, na sua própria natureza, o homem é olhar. E é-o por dois motivos, ambos determinantes. Em primeiro lugar, ver e saber são uma e a mesma coisa; se idein (ver) e eidenai (saber) são duas formas de um mesmo verbo, se eidos, aparência, aspecto visível, significa também caráter específico, forma inteligível, é porque o conhecimento é interpretado e expresso pela visão. Em segundo lugar, ver e viver são também uma e a mesma [15] coisa. Para se estar vivo, tem de se ver a luz do Sol e, ao mesmo tempo, ser-se visível aos olhos de todos. Morrer significa perder a visão e, ao mesmo tempo, a visibilidade, abandonar a luz do dia para penetrar num outro mundo, o mundo da Noite, onde, perdido nas trevas, se é despojado da imagem e do olhar.
Mas os Gregos não interpretam esse ver, tanto mais precioso quanto é conhecimento e vida, segundo os nossos parâmetros — depois de Descartes, entre outros, ter intervindo a esse respeito —, ou seja, distinguindo três níveis no fenômeno visual: em primeiro lugar, a luz, realidade física, quer se trate de onda ou de corpúsculo; depois, o órgão do olho, mecanismo óptico, espécie de câmara escura cuja função é projetar na retina uma imagem do objeto; por fim, o ato propriamente psíquico de captar à distância o objeto observado. Entre o ato final da percepção, que pressupõe uma instância espiritual, uma consciência, um «eu», e o fenômeno material da luz existe o mesmo abismo que separa o sujeito humano do mundo exterior.
Pelo contrário, para os Gregos, a visão só é possível se entre o que é visto e aquele que vê existir uma total reciprocidade, expressão se não de uma identidade absoluta pelo menos de uma estreita afinidade. O Sol que ilumina todas as coisas é também, no céu, um olho que vê tudo, e se os nossos olhos veem é porque irradiam uma espécie de luz comparável à luz do Sol. O raio luminoso que emana do objeto e o torna visível é da mesma natureza do raio óptico que sai dos nossos olhos e lhes dá a visão. O objeto emissor e o sujeito receptor, os raios luminosos e os raios ópticos pertencem a uma mesma categoria do real, acerca da qual se pode dizer que ignora a oposição físico-psíquico ou que é ao mesmo tempo de natureza física e psíquica. A luz é visão e a visão é luminosa.
Como observa Charles Mugler num estudo intitulado La lumière et la vision dans la poésie grecque [Revue des études grecques, 1960, pp 40-70], a própria linguagem testemunha essa ambivalência. Os verbos que designam a ação de ver (blepein, dèrkesthai, leussein) são utilizados tendo como complemento direto não só o objeto em que se fixa o olhar, mas também a substância ígneo-luminosa projetada pelo olho, como quando se arremessa um dardo. E esses raios de fogo, que, para nós, são físicos, arrastam consigo os sentimentos, as paixões, os estados de espírito, que, para nós, são psíquicos. Na realidade, os próprios verbos conjugam-se tendo como complemento direto termos que significam terror, fúria, raiva homicida. Quando alcança o objeto, o olhar transmite-lhe aquilo que o observador sente ao vê-lo.
É certo que a linguagem da poesia obedece a regras e a convenções específicas. Mas esta concepção do olhar está tão profundamente enraizada na cultura grega que volta a surgir em algumas observações, para nós desconcertantes, de um filósofo como Aristóteles. No De insomniis, o mestre do Liceu afirma que, se a vista é impressionada pelo seu objeto, «também exerce uma determinada ação sobre ele», como fazem todas as coisas luminosas, na medida em que se insere na categoria das coisas luminosas e coloridas. E prova-o com um exemplo; se as mulheres, durante o período menstrual, se olham num espelho, a superfície brilhante [16] cobre-se de uma espécie de patina cor de sangue e essa mancha impregna tão profundamente os espelhos quando são novos que dificilmente se pode apagar (De insomniis, 2, 459b 25-31).
Mas talvez seja em Platão que o parentesco entre luz, raio de fogo emitido pelo objeto e raio projetado pelo olho, é mais claramente declarado como causa da visão De fato, os deuses
«antes de qualquer outro órgão fizeram os olhos, portadores da luz (phòsphora òmmata), e colocaram-nos na cara pela seguinte razão: com todo aquele fogo que tem a propriedade de não queimar, mas que produz uma luz agradável, imaginaram criar o próprio corpo do dia O fogo puro, que está em nós e que é da mesma natureza que esse fogo do dia, fizeram-no dímanar pelos olhos, numa corrente densa e veloz […]. Portanto, quando a luz do dia envolve a corrente da visão (methemerinòn phós), o semelhante, encontrando-se com o semelhante e unindo-se estreitamente a ele, forma, na direção dos olhos, um só corpo em toda a parte onde o raio visual, saindo do interior, depara com o objeto que encontra no exterior. E se esse corpo, tomado sensível às mesmas impressões pela semelhança das suas partes, toca em qualquer coisa ou por ela é tocado, transmite os seus movimentos, através do corpo, até à alma, e produz a sensação a que chamamos “ver”» (Timeu, 45b e segs)
Em suma, para explicar a visão, em vez de três instâncias distintas (realidade física, órgão sensorial, atividade mental), tem-se uma espécie de braço luminoso que, partindo dos olhos, se estende como um tentáculo e prolonga exteriormente o nosso organismo. Devido às afinidades existentes entre os três fenômenos, que consistem todos num fogo muito puro que ilumina sem queimar, o braço óptico penetra na luz do dia e nos raios emitidos pelo objeto. Unido a eles, forma um corpo único, perfeitamente contínuo e homogêneo, que pertence sem fracionamentos a nós próprios e ao mundo físico. Por isso podemos tocar no objeto externo, no local onde ele se encontra e por mais longe que esteja, projetando sobre ele uma plataforma extensível constituída por uma matéria que é comum àquilo que é visto, a quem vê e à luz que permite ver.
O nosso olhar opera no mundo, onde tem o seu lugar como fragmento desse mundo. Não admira, portanto, que Plotino, filósofo do século III d. C , afirme que, quando captamos qualquer objeto através da visão,
«é claro que o vemos sempre onde ele está e nos projetamos sobre ele [prosbalomen] através da visão. A impressão visual ocorre diretamente no local onde o objeto está colocado: a alma vê o que está fora dessa impressão (…) Porque não seria preciso olhar para o exterior se ela contivesse em si a forma do objeto que vê; olharia apenas a forma que do exterior entrara nela. Além disso, a alma atribui uma distância ao objeto e sabe a que distância o vê: como podería ver ao longe um objeto que estivesse em si? E também sabe quais as dimensões do objeto exterior; sabe que tal objeto, por exemplo, o céu, é grande. Como seria isso possível se a forma que existe dentro dela não pode ser das mesmas dimensões do objeto? Por fim, e trata-se da objeção principal, se nos esforçarmos por captar as impressões dos objetos que vemos não conseguiremos ver os próprios objetos, mas apenas imagens, sombras, e assim outros serão os objetos em si, outro será aquilo que vemos.» (Enéades, IV, 6,1, 14-32) [17]
Citámos este excerto porque põe em destaque a diferença que, a propósito da visão, existe entre nós e os Gregos. Enquanto a sua forma de interpretar não for suplantada por outra totalmente diferente, os problemas da percepção visual, tal como são propostos na época moderna (sobretudo o da percepção da distância, em que intervém a visão estereoscópica, e o da permanência da grandeza aparente dos objetos independentemente da sua distância, que põe em jogo múltiplos fatores), não poderão sequer ser colocados. Tudo está regulado a partir do momento em que o nosso olhar desliza pelos objetos do mundo a que ele próprio pertence, arrastando-nos com ele até à imensidão do céu. Neste contexto, o que é difícil não é compreender como é que a nossa visão é o que é, mas como podemos ver outra coisa e não o que existe, ou ver o objeto num lugar diferente daquele em que se encontra, por exemplo, num espelho. [VernantHG:15-18]