Filosofia – Pensadores e Obras

privado

É com relação a essa múltipla significação do domínio público que o termo “privado” tem significado, em sua acepção original de privativo. Viver uma vida inteiramente privada significa, acima de tudo, estar privado de coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação “objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um mundo comum de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a própria vida. A privação da privatividade reside na ausência de outros; para estes, o homem privado não aparece, e, portanto, é como se não existisse. O que quer que ele faça permanece sem importância ou consequência para os outros, e o que tem importância para ele é desprovido de interesse para os outros.

Nas circunstâncias modernas, essa privação de relações “objetivas” com os outros e de uma realidade garantida por intermédio destes últimos tornou-se o fenômeno de massa do desamparo, no qual assumiu sua forma mais extrema e mais anti-humana. [v. abandono] O motivo pelo qual esse fenômeno é tão extremo é que a sociedade de massas não apenas destrói o domínio privado tanto quanto o domínio público; priva ainda os homens não só do seu lugar no mundo, mas também do seu lar privado, no qual outrora eles se sentiam resguardados contra o mundo e onde, de qualquer forma, até os que eram excluídos do mundo podiam encontrar-lhe o substituto no calor do lar e na limitada realidade da vida em família. Devemos o pleno desenvolvimento da vida no lar e na família como espaço interior e privado ao extraordinário senso político do povo romano, que, ao contrário dos gregos, jamais sacrificou o privado ao público, mas, ao contrário, compreendeu que esses dois domínios somente podiam subsistir sob a forma da coexistência. E, embora a condição dos escravos fosse provavelmente um pouco melhor em Roma que em Atenas, é bastante característico que um escritor romano tenha acreditado que, para os escravos, a casa do senhor era o mesmo que a res publica para os cidadãos.[Plínio, o Moço, citado por W. L. Westermann, “Sklaverei”, em Pauly-Wissowa, Supl. VI, p. 1.045.] No entanto, por mais suportável que possa ter sido a vida privada em família, é óbvio que ela nunca podia ser mais que um substituto, ainda que o domínio privado, tanto em Roma como em Atenas, oferecesse um amplo espaço para atividades que hoje classificamos como superiores à atividade política, tais como o acúmulo de riqueza na Grécia ou a devoção às artes e às ciências em Roma. Essa atitude “liberal” que podia, em certas circunstâncias, originar escravos muito prósperos e altamente educados, significou apenas que o fato de ser próspero não tinha qualquer realidade na pólis grega, e que ser filósofo não tinha muita importância na república romana.[v. escravo]

Como seria de esperar, o caráter privativo da privatividade, a consciência de se estar privado de algo essencial em uma vida passada exclusivamente na esfera restrita do lar, perdeu sua força a ponto de quase se extinguir com o advento do cristianismo. A moralidade cristã, em contraposição a seus preceitos religiosos fundamentais, sempre insistiu em que cada um deve cuidar de seus afazeres e que a responsabilidade política constitui antes de tudo um ônus, aceito exclusivamente em prol do bem-estar e da salvação daqueles que ela liberta da preocupação com os assuntos públicos. [v. caritas] É surpreendente que essa atitude tenha sobrevivido na secular era moderna a tal ponto que Karl Marx – que nesse particular, como em outros, apenas resumiu, conceitualizou e transformou em um programa as premissas subjacentes a 200 anos de modernidade – pôde enfim predizer e alimentar esperanças quanto à “decadência” de todo o domínio público. A diferença entre os pontos de vista cristão e socialista a esse respeito – o primeiro vendo o governo como um mal necessário em virtude da natureza pecadora do homem e o outro esperando poder aboli-lo algum dia – não é uma diferença de avaliação da esfera pública, mas da natureza humana. O que é impossível perceber de um ponto de vista ou de outro é que a “decadência do Estado” de Marx havia sido precedida pela decadência do domínio público ou, antes, por sua transformação na muito restrita esfera do governo. Nos dias de Marx, esse governo começara a decair ainda mais, isto é, a ser transformado em uma “administração doméstica” de dimensões nacionais, até que, em nossos dias, começa a desaparecer completamente sob a forma da esfera ainda mais restrita e impessoal da administração. [ArendtCH, 8]