Filosofia – Pensadores e Obras

perdão

O descobridor do papel do perdão no domínio dos assuntos humanos foi Jesus de Nazaré. O fato de que ele tenha feito essa descoberta em um contexto religioso e a tenha enunciado em linguagem religiosa não é motivo para levá-la menos a sério em um sentido estritamente secular. É da natureza de nossa tradição de pensamento político (por motivos nos quais não podemos nos deter aqui) ser altamente seletiva e excluir da conceituação articulada grande variedade de experiências políticas autênticas, entre as quais não é surpreendente encontrar algumas de natureza elementar. Certos aspectos dos ensinamentos de Jesus de Nazaré que não se relacionam basicamente com a mensagem religiosa cristã, mas surgiram de experiências da pequena e coesa comunidade de seus seguidores, inclinada a desafiar as autoridades públicas de Israel, certamente incluem-se entre essas experiências políticas autênticas, embora tenham sido negligenciados em virtude de sua suposta natureza exclusivamente religiosa. O único sinal rudimentar da percepção de que o perdão pode ser o corretivo necessário aos danos inevitáveis que resultam da ação pode ser visto no princípio romano de poupar os vencidos (parcere subiectis) – uma sabedoria que os gregos desconheciam totalmente – ou no direito de comutar a pena de morte, provavelmente também de origem romana, que é a prerrogativa de quase todos os chefes de Estado ocidentais.

É crucial para o nosso contexto que Jesus sustente, contra os “escribas e fariseus” que, em primeiro lugar, não é verdade que somente Deus tenha o poder de perdoar; [É o que se afirma enfaticamente em Lucas 5, 21-42 (cf. Mateus 9, 4-6 ou Marcos 12, 7-10), onde Jesus opera um milagre para provar que “o Filho do homem tem sobre a Terra o poder de perdoar pecados”, com ênfase em “sobre a Terra”. O que choca o povo é muito mais sua insistência no “poder de perdoar” que os milagres que ele faz, de modo que “os que comiam ali com ele começaram a dizer entre si: Quem é este que também perdoa pecados?” (Lucas 7, 49).] e, em segundo lugar, que esse poder não deriva de Deuscomo se Deus, e não os homens, perdoasse através de seres humanos –, mas, ao contrário, deve ser mobilizado pelos homens entre si, antes que possam esperar serem perdoados também por Deus. A formulação de Jesus é ainda mais radical. No Evangelho não se supõe que o homem perdoe porque Deus perdoa, e ele, portanto, tem de fazer “o mesmo” e sim que, “se cada um, no íntimo do coração, perdoar” Deus fará “o mesmo” [Mateus 18, 35; cf. Marcos 11, 25: “E quando vos puserdes em oração (…) perdoai (…) para que também o vosso Pai que está nos céus vos perdoe vossas transgressões.” Ou: “Porque se vós perdoardes aos homens as ofensas deles, também vosso pai celestial vos perdoará, mas se não perdoardes aos homens as transgressões deles, também vosso pai celestial não perdoará vossas transgressões” (Mateus 6, 14-15). Em todos esses casos, o poder de perdoar é um poder fundamentalmente humano: Deus nos perdoa “nossas dívidas, assim como perdoamos nossos devedores”.] O motivo da insistência sobre um dever de perdoar é, obviamente, que “eles não sabem o que fazem” e não se aplica ao caso extremo do crime e do mal voluntário, pois do contrário não teria sido necessário ensinar que, “se ele te ofender sete vezes no dia, e sete vezes no dia retornar a ti, dizendo ‘me arrependo’ tu o perdoarás” [Lucas 17, 3-4. É importante observar que as três palavras-chave do texto – aphienai, metanoein e hamartanein – têm certas conotações, mesmo no grego do Novo Testamento, que as traduções não conseguem transmitir por inteiro. O significado original de aphienai é “despedir” e “libertar”, e não “perdoar”; metanoein significa “mudar de ideia” e – como serve também para traduzir o hebraico shuv – “retornar”, “voltar sobre os próprios passos”, mais que “se arrepender”, com suas conotações emocionais e psicológicas. O que se exige é: muda de ideia e “não peque mais”, o que é quase o oposto de fazer penitência. Finalmente, hamartanein pode, realmente, ser muito adequadamente traduzido por “transgredir”, na medida em que significa mais “errar”, “malograr e extraviar-se”, que “pecar” (conferir Heinrich Ebeling, Griechisch-deutsches. Wörterbuch zum Neuen Testamente [1923]). O versículo, que citei da tradução padrão, poderia também ser traduzido como segue: “E se ele transgredir contra ti (…) e (…) procurar-te, dizendo: Mudei de ideia, deves desobrigá-lo.”]. O crime e o mal voluntário são raros, mais raros talvez que as boas ações; segundo Jesus, Deus se encarregará deles no Juízo Final, que nenhum papel desempenha na vida terrena e tampouco se caracteriza pelo perdão, mas pela justa retribuição (apodounai) [Mateus 16, 27]. A ofensa, contudo, é uma ocorrência cotidiana, decorrência natural do fato de que a ação estabelece constantemente novas relações em uma teia de relações, e precisa do perdão, da liberação, para possibilitar que a vida possa continuar, desobrigando constantemente os homens daquilo que fizeram sem o saber. [Essa interpretação parece ser justificada pelo contexto (Lucas 17, 1-5): Jesus introduz suas palavras assinalando a inevitabilidade das “ofensas” (skandala) que são imperdoáveis, pelo menos na Terra: “mas ai daquele por quem elas vêm. Seria melhor para ele que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho e que fosse precipitado ao mar”; e continua a ensinar o perdão às “transgressões” (hamartanein).] Os homens podem ser agentes livres somente mediante essa mútua e constante desobrigação do que fazem; somente com a constante disposição para mudar de ideia e recomeçar pode-se confiar a eles um poder tão grande quanto o de começar algo novo.

Sob esse aspecto, o perdão é o exato oposto da vingança, que atua como re-ação [re-acting] a uma ofensa inicial, com a qual, longe de porem fim às consequências da primeira falta, todos permanecem enredados no processo, permitindo que a re-ação em cadeia contida em cada ação siga livremente seu curso. Ao contrário da vingança, que é a reação natural e automática à transgressão e que, devido à irreversibilidade do processo da ação, pode ser esperada e até calculada, o ato de perdoar jamais pode ser previsto; é a única reação que atua de modo inesperado e, embora seja reação, conserva algo do caráter original da ação. Em outras palavras, o perdão é a única reação que não re-age [re-act] apenas, mas age de novo e inesperadamente, sem ser condicionada pelo ato que a provocou e de cujas consequências liberta, por conseguinte, tanto o que perdoa quanto o que é perdoado. A liberdade mencionada nos ensinamentos de Jesus sobre o perdão é a libertação com relação à vingança, que prende tanto o agente quanto o paciente no inexorável automatismo do processo da ação que, por si, jamais precisa chegar a um fim. [ArendtCH:C33]