Filosofia – Pensadores e Obras

modalidade

(lat. Modalitas; in. Modality; fr. Modalité; al. Modalität; it. Modalita).

Diferenças de predicação, ou seja, diferenças que podem ser produzidas pela referência de um predicado ao sujeito da proposição. Tais diferenças foram reconhecidas pela primeira vez por Aristóteles, de acordo com seu conceito do ser predicativo, que é a inerência. Ele diz que “uma coisa é inerir, outras coisas são inerir necessariamente e poder inerir, pois muitas coisas inerem, mas não necessariamente, outras não inerem nem necessária nem simplesmente, mas podem inerir” (An. pr., I, 8, 29 b 29). Desse modo, Aristóteles distingue: 1) inerência pura e simples do predicado ao sujeito; 2) inerência necessária; 3) inerência possível. Posteriormente, os comentadores de Aristóteles deram o nome de modos à segunda e à terceira formas de predicação, e de “proposições modais” às proposições necessárias e possíveis (Ammonio, De interpr., f. 171 b; Boécio, De interpr., II, V, P. L., 64s, col. 582). Na Idade Média, deu-se o nome de proposição de inesse ou depuro inesse à proposição hoje conhecida como assertórica, e de modais às proposições necessárias ou possíveis (Abelardo, Dialect., II, p. 100; Pedro Hispano, Summ. log., 1.31). Na Lógica (1638) de Jungius dá-se o nome de “enunciação pura” à proposição assertórica, e de “enunciaçâo modificada ou modal” à proposição necessária ou possível. O mesmo uso foi adotado pela Lógica de Port-Royal (I, 80, e por Wolff (Log., § 69). Pode-se dizer, portanto, que Kant nada mais fazia que reexpor esta longa tradição ao afirmar: “A modalidade dos juízos é uma função particular deles, que tem o seguinte caráter distintivo: não contribui em nada para o conteúdo do juízo (já que, além da quantidade, da qualidade e da relação, nada mais há que forme o conteúdo do juízo), mas afeta apenas o valor da cópula em relação ao pensamento em geral. Juízos problemáticos são aqueles em que se admite a afirmação ou a negação como simplesmente possível (arbitrário); assertóricos são os juízos em que a afirmação ou a negação tem valor de realidade (verdade); são apodíticos os juízos em que a afirmação ou a negação tem valor de necessidade” (Crít. R. Pura, § 9, 4).

Na lógica contemporânea o desenvolvimento da modalidade não foi levado a um grau suficiente de clareza conceptual e de elaboração analítica. Isto porque a lógica contemporânea molda-se pela matemática, que praticamente ignora, ou pode ignorar, o uso das modalidade Não é de surpreender, portanto, que tenha sido exposta a tese da extensionalidade , que equivale à eliminação das modalidade dos enunciados. Contudo essa tese não impediu que seus próprios defensores tentassem uma interpretação das modalidade Russell afirmou que as modalidade não são propriedades das proposições, mas das funções proposicionais — assim, seria necessária a função proposicional “Se x é homem, x é mortal”, que é sempre verdadeira; seria possível a função “x é homem”, que algumas vezes é verdadeira; e seria impossível a função “x é unicórnio”, que nunca é verdadeira (“The Philosophy of Logical Atomism”, 1918, cap. V, em Logic and Knowledge, pp. 230 ss.). Mas essa interpretação de Russell equivale simplesmente à inversão paradoxal das modalidade, porquanto o sentido modal da expressão “Se xé homem, x é mortal” não é a necessidade, mas a possibilidade, pois ela na verdade significa “x pode ser mortal”. Outra sugestão de Russell (op. cit., p. 231) é a identificação de necessário com analítico, com afirmações do tipo “x é x”. Carnap, por sua vez, ateve-se a essa interpretação quando tentou construir a modalidade com base no conceito de necessidade lógica, analiticidade, e definiu possibilidade como a negação de tal necessidade (Meaning and Necessity, 1957, § 39). É fácil notar que essa interpretação equivale à negação pura e simples das modalidade e não pode valer como lógica delas. Por outro lado, Quine mostrou as dificuldades inerentes às abordagens das modalidade que se baseiam na quantificação, como a de Carnap (From a Logical Point of View, VIII, 4).

A respeito da distinção das modalidade ou, como se diz hoje, dos valores modais das proposições, a tábua de valores mais antiga e autorizada é a apresentada por Aristóteles, em De interpretatione, que compreende seis valores: verdadeiro, falso; possível, impossível; necessário, contingente (De int., 12, 21 b). Essa lógica com seis valores não foi alterada na Idade Média (cf., p. ex., Pedro Hispano, Summ. log., 1.30), sendo desenvolvida e defendida também pelos lógicos contemporâneos, como p. ex. Lewis (A Survey of Symbolic Logic, 1918). Algumas vezes, os valores modais foram reduzidos a cinco, com a identificação de possibilidade e contingência (p. ex., O. Becker, “Zur Logik der Modalitäten”, em Jahrfür Phil. und Phänom. Forsbchung, 1930, pp. 496-548). Lukasiewicz e Tarski construíram uma lógica com três modalidade: verdadeiro, falso e possível (cf. os artigos em Comptes Rendus des Séances de la Société des Sciences et Lettres de Varsovie, 1930, pp. 30,50, 176). Carnap aceitou as seis modalidade da tradição aristotélica (Meaning and Necessity, % 39).

O conceito de modalidade não está bem claro nessas doutrinas da lógica contemporânea. Assim indicaremos apenas as confusões mais frequentes: 1) tentativa de reduzir os enunciados modais a enunciados quantitativos; 2) tentativa de reduzir a modalidade a valor de verdade da proposição; 3) tentativa de tornar as modalidade predicados umas das outras.

la A primeira tentativa consiste em estabelecer a correspondência entre enunciados universais e proposições possíveis. Assim, “todos os homens morrem” seria equivalente a “os homens devem morrer”, e “alguns homens são artistas” seria equivalente a “os homens podem ser artistas”. Essas transcrições sem dúvida são insuficientes, pois nem a proposição necessária nem a possível expressam fatos como as correspondentes proposições universais e particulares (cf. A. Pap, Semantics and Necessary Truth, 1958, p. 368); ademais, a proposição possível tem significado distributivo (“todo homem pode ser artista”), que estaria excluído da proposição particular correspondente. Mas também é evidente que nenhuma transcrição desse gênero é possível para proposições modais do tipo “x pode ser”, que no entanto ocorrem em todos os ramos da ciência sempre que se trate de hipóteses, previsões, probabilidades, antecipações, etc.

2a A segunda confusão consiste em alinhar a modalidade entre os valores de verdade das proposições; essa confusão está presente mesmo nas chamadas lógicas das modalidade Ora, os valores de verdade das proposições (verdadeiro, falso, provável, indeterminado, etc.) pertencem a um nível diferente do nível da modalidade, que é uma determinação da predicação, ou seja, da relação entre sujeito e predicado da proposição. Os valores de verdade pertencem à esfera de referência semântica das proposições; as modalidade pertencem à estrutura de relações das proposições. Indicam, portanto, se tal estrutura pode ser ou não diferente do que é, se o conteúdo de um enunciado (seu significado) pode ser ou não diferente daquilo que o enunciado expressa. As modalidade fundamentais são, então, duas e apenas duas: possibilidade e necessidade, com seus opostos não-possibilidade e impossibilidade. Elas modificam os valores de verdade das proposições no sentido de limitá-los ou estendê-los, mas não devem ser confundidas com tais valores: a predicação recíproca supõe, aliás, a diversidade dos níveis, e pode-se dizer “necessariamente verdadeiro” ou “possivelmente verdadeiro” precisamente porque possibilidade e verdade, verdade e necessidade pertencem a duas esferas diversas e não são excludentes entre si.

3) A terceira confusão é inerente à tentativa de predicação recíproca das modalidade Essa tentativa é tão contraditória quanto a de predicação recíproca entre os valores de quantidade ou de verdade das proposições. A tese fundamental desse ponto de vista é a do caráter alternativo das modalidade Mas essa tese foi em geral desconhecida ou ignorada pelos lógicos da modalidade a partir de Aristóteles. Este último realmente cuidou da predicação recíproca das modalidade e afirmou, p. ex., que o que é necessário também deve ser possível, uma vez que não se pode dizer que é impossível (De int., 13, 22b 11). Mas essa afirmação ou leva a considerar o necessário como possível, ou seja, como não necessário, ou leva a dividir em dois o conceito de possível (que é o caminho seguido por Aristóteles), com o reconhecimento de uma espécie de possível que se identifica com o necessário. Por outro lado, a afirmação recíproca (que Aristóteles ilustrou com o famoso exemplo da batalha naval), de que o possível é necessário no sentido de que necessariamente há um possível (p. ex., necessariamente amanhã haverá ou não uma batalha naval), equivale a tornar necessária a indeterminação e a negar o possível como tal. De fato, “É necessário que x seja possível” significa que x deve manter-se indeterminado sem nunca realizar-se; mas nesse caso x não é um possível. Essas antinomias ou paradoxos surgem do desconhecimento do caráter exclusivo das diferenças modais, em virtude do qual elas são alternativas inconciliáveis. Por outro lado, os valores de verdade podem ser predicados das modalidade; há um possível verdadeiro, como p. ex. “o homem pode ser branco”, e um possível falso, como “o homem pode ser retângulo”. E pode haver uma necessidade verdadeira e uma necessidade falsa, que é o absurdo. Esses reparos exigiriam desenvolvimentos analíticos adequados. Para mais observações. [Abbagnano]


A forma particular de um juízo. — Exprimindo nosso juízo respectivamente um simples fato real, uma hipótese provável ou uma lei necessária, é denominado “assertórico”, “problemático” ou “apodítico” (necessário): por exemplo, “o tempo está bonito” é um juízo assertórico; “sairei, se o tempo está bonito” é um juízo problemático; “dois e dois são quatro” (necessariamente) é um juízo apodítico, expressão de uma lei. O real, o provável e o necessário são, segundo a classificação de Kant, as três modalidades possíveis de nosso conhecimento (cf. A modalidade do juízo, de Leon Brunschvicg 1897). [Larousse]


Aristóteles dedicou particular atenção ao problema das proposições moda…. Segundo ele, é mister examinar o modo como se relacionam entre si as negações e as afirmações que expressam o possível e o não possível, o contingente e o não contingente, o impossível e o necessário. Temos assim quatro modalidades.

1) possibilidade: “é possível que s seja p”.
2) impossibilidade: “é impossível que s seja p”.
3) contingência: “é contingente q que s seja p”.
4) necessidade: “é necessário que s seja p”.

Para entender a noção aristotélica de proposição modal, temos de nos referir a duas distinções: a distinção entre proposições simples e atributivas e proposições modais, bem como a distinção, destas últimas, entre o modus e o dictu..

São simplesmente atributivas aquelas nas quais se afirma ou nega que p seja atribuível a s. Proposições modais são aquelas nas quais não só se atribui p a s, mas também se indica o modo como p se une a s ou modo como determina a composição de p e s.

É indispensável que o modo não afete simplesmente um dos componentes da proposição (como em “o homem bom é necessariamente prudente”), mas a composição de p e s (como em “é necessário que o homem bom seja prudente”).

Deve distinguir-se na proposição modal entre o modus e o dictum. O modus refere-se à atribuição: é uma determinação que, segundo os escolásticos, afeta a cópula. O dictum é uma qualidade do enunciado que une ou separa p e s. Assim, em “é impossível que Sócrates não seja um homem branco”, o modus (é impossível que) é afirmativo, enquanto o dictum (Sócrates não é um homem branco) é negativo. A afirmação ou a negação nas proposições modais devem referir-se ao modus e não ao dictum, ao contrário do que acontece com as proposições simplesmente atributivas.

Uma das questões mais importantes no problema da modalidade é se a modalidade se refere primeiramente às proposições ou aos fatos. No primeiro caso, trata-se de uma modalidade em sentido lógico; no segundo, de uma modalidade em sentido ontológico. Note-se que ambos os aspectos são considerados na doutrina aristotélico-escolástica, mesmo quando nas exposições mais correntes predomina o sentido lógico da modalidade, tal como ressalta da análise da estrutura das proposições modais.

Kant considerou a modalidade nos juízos como “uma função completamente particular dos mesmos, cujo distintivo consiste em não contribuir em nada para a matéria do juízo” (porque esta matéria se compõe apenas de quantidade, qualidade e relação), mas em referir-se apenas ao valor da cópula na sua relação com o pensamento em geral”. Os juízos modais, segundo Kant, juízos de realidade (ou assertóricos), juízos de contingência (ou problemáticos) e juízos de necessidade (ou apodícticos). Assim se separa Kant da lógica considerada como clássica, pois inclui entre os juízos modais os juízos da realidade ou assertóricos, que são juízos simplesmente atributivo… A razão da doutrina kantiana encontra-se na sua teoria das categorias, que se baseia, por sua vez, numa doutrina dos juízos como atos de julgar. Assim, a modalidade kantiana pode ser descrita como epistemológica e não como lógica ou ontológica.

Alguns autores contemporâneos afirmaram que pode entender-se a modalidade de três pontos de vista: o psicológico, o lógico e o ontológico. Aconteceria, pois, com a modalidade o mesmo que com os chamados grandes princípios da lógica: identidade, contradição, terceiro excluído. contudo, estes mesmos autores prescindem com frequência do ponto de vista psicológico para se aterem apenas aos dois restantes. O mais plausível é distinguir cuidadosamente entre estes, o que nem sempre é fácil. Alguns pensadores afirmam que isso se deve a uma espécie de primado da modalidade ontológica sobre a lógica. Outros pensadores tentam basear a modalidade naquilo que chamam “maior ou menor ímpeto ou peso lógico da enunciação”, que se refere à maneira da enunciação e é a expressão do grau de certeza da mesma.

A noção de ímpeto ou peso lógico é, todavia, muito obscura.

Alguns filósofos preferem, dado isto, interpretar a modalidade em sentido ontológico. Consideram os graus da modalidade como expressivos das categorias mais fundamentais do ente e do seu conhecimento, de modo que o estudo da modalidade é prévio ao das categorias enquanto princípios constitutivos do real. A modalidade é a expressão dos modos do ser, ao contrário dos momentos do ser e das formas ou maneiras do ser. Os modos são a possibilidade, a realidade e a necessidade. Os momentos, a existência e a essência; as maneiras ou formas, a realidade e a idealidade.

A consideração lógica da modalidade foi, porém, a que alcançou, na época contemporânea, maior desenvolvimento.

É usual apresentar a doutrina das modalidades dentro da lógica proposicional. A lógica modal ocupa-se, com efeito, de certos tipos de proposições, tais como “é necessário que p”, “é possível que p”, “é impossível que p”, donde p simboliza um enunciado declarativo.. Com “é contingente q que p” pode reduzir-se à conjunção de “é possível que p” e “é possível que não p”, na noção de contingência é eliminado habitualmente dos atuais sistemas de lógica modal. [Ferrater]