No estudo das distinções, salientamos a distinção modal proposta por Suarez, que consiste na que se dá entre uma coisa e um modo de ser desta. Assim a dependência do efeito à causa é um modo, bem como um modo é a união das partes de um todo, ou o deslocamento da Terra em torno do Sol, que é um modo de ser da Terra.
É patente desde logo que os modos são inseparáveis do ser que modifica. Consequentemente, se há uma entidade dos modos, não há uma ensidade dos mesmos, por lhes faltar subsistência própria, pois a têm em outro, in alius, inaliedade, portanto.
Está justificada a distinção modal se pudermos justificar os modos. E como estamos aqui em matéria não pacífica, impõe-se examinemos bem ponto tão descuidado na filosofia, de magna importância para os estudos ontológicos. Para que tal estudo traga algum benefício às novas investigações ontológicas, hoje tão exigentes e atuais, impõe-se demoremo-nos na análise das modais, porque tal estudo é fundamental para a boa compreensão da “Teoria Geral das Tensões”, onde procedemos a globalização do pensamento epistemico, segundo o modo de ver decadialéctico.
Grande é a problemática que a teoria das modais suscita, e como os modos são seres mínimos, de uma intensidade mínima, o terreno em que se pisa é tão subtil, que é preciso ter o máximo cuidado para manter uma nítida visão ontológica, que obedeça ao método criteriológico por nós estudado em nosso livro “Teoria do Conhecimento”.
Não só as modais interessaram vivamente ao pensamento escolástico no seu período de fluxo da Contra-Reforma, com Suarez, Cayetano, João de Santo Tomás, a escola de Coimbra, etc., como na filosofia moderna, com Descartes, Wolf, Leibniz, Hegel, Heidegger e outros, é um tema exigente.
De antemão devemos estabelecer aqui que vamos tratar dos modos ontológicos e não dos modos lógicos nem doa medes semânticos, como, por exemplo: as declinações. Surgem os modos, em certo sentido, e fazemos questão de salientar de antemão esta diferença, quanto aos seres cronotópicos, como determinações que correspondem à imperfeição desses seres, que não actualizam tudo quanto podem ser. Determinadas potencialidades, que se atualizam em diversos estados distintos dos entes, a eles inerentes, aparecem-nos como modalidades desses entes. Dessa forma, os modos estão apontando a vários problemas ontológicos que exigem meditação e análise, pois, ao nos surgirem, apontam-nos uma nova capa entitativa da realidade dos seres.
Como dissemos, não vamos examinar os modos lógicos. Sabemos que o juízo é susceptível de determinações modais em número de seis, como sejam: de maneira necessária, de maneira impossível, de maneira possível, de maneira contingente e segundo a verdade e a falsidade.
Distinguidos os modos lógicos e os semânticos dos modos ontológicos, vemos, então, que os primeiros se referem às maneiras conceptuais da modalidade lógica ou semântica, enquanto os últimos, que nos interessam, referem-se a uma entidade que passaremos a precisar: o modo de ser.
Considerava Duns Scotus como entidade (entitas) a propriedade de tudo o que possui ser, em qualquer sentido e em qualquer grau que seja.
Terá, portanto, o modo uma entidade desde que tenha um ser, em qualquer sentido e em qualquer grau.
Na escolástica, o modo é tomado em sentido lato como uma determinação, quer do ser, quer do obrar, quer do existir.
Para a teoria modal, o modo é, contudo, uma entidade. Uma entidade incompleta, imperfeita, débil, mas com uma consistência ontológica, embora de per si insubsistente. São seres de outros (inaliedade), são seres cuja consistência é uma assistência (ad sistentia), sem, no entanto, reduzirem-se totalmente às relações, como ainda veremos; são insistentes (in sistentia), inerentes, que podem ser reduzidos formalmente a outros predicamentos, cujo esquema permita essa assimilação.
Qualquer modificação de uma entidade real é um modo. Este não acrescenta uma nova entidade à entidade, mas modifica. O modo, portanto, modifica; e um atualizar, e sua consistência está na atualização.
O modo é assim a atualização de uma determinação de uma entidade real. É, portanto, uma determinação última. Não tem uma ensidade independente, e sua razão de ser é a de ser uma modalidade de outra realidade.
Conclui-se, pois, que o modo revela uma peculiaridade: a de não ser uma entidade independente, mas dependente, e totalmente dependente de outra realidade.
Por conseguinte, é inseparável absolutamente da entidade real, e não tem consistência nenhuma fora dessa entidade real. Assim é um ser de outro e por outro. O movimento deste auto é um ser deste, e sua entidade é dada por este auto. Em si, o seu movimento não tem realidade, falta-lhe ensidade.
Ademais não se separa do ser que modifica. Não se distingue ut re a re, como uma coisa de outra coisa.
É um haver da coisa, e fora dessa coisa é nada: o modo é um haver de outra entidade.
Apresenta as seguintes propriedades:
a) seu ser consiste num haver de outra entidade;
b) sua absoluta inseparabilidade total da entidade que ele modifica;
c) ausência de estrutura ôntica independente.
O modo nunca é um ens per se, não tem perseitas, perseidade. Não subsiste, porque, para tal, precisaria existir por si, o que implica existência e perseidade. (O rodar desta roda não tem uma subsistência fora da roda. Não esqueçamos que existir significa ter entidade na natureza, fora de suas causas). O modo não se dá fora de suas causas, por isso falta-lhe a estrutura ôntica independente;
d) sua essência está em outro, do qual não subsiste independentemente ;
e) tem positividade porém, porque se revela na modificação, que é real.
O modo é a modificação, é o modificar-se, e sua realidade está no atualizar-se como entidade modificativa. Esse modificar-se consiste na afecção que sofre a entidade modificada, no haver-se da entidade, nessa função modificativa. É ela esquematicamente captada como algo que se distingue da realidade modificada da sua estrutura ôntica. Portanto, é uma determinação última da estrutura ôntica, e como determinação é atual. O modo, enquanto tal, é sempre atual, um modo de consistência física.
Suarez considera esse modo físico como uma real e última determinação das coisas. Dessa forma, não acrescenta “uma nova entidade realmente distinta da realidade a que afecta e modifica, mas é essa mesma entidade, sob um novo estado de ser, sob uma nova forma de haver-se. É um novo estado de modificação. Uma nova maneira real de ser da entidade modificada” (Alcorta).
É comum confundir-se o modo com o acidente. Mas o acidente tem uma consistência ontológica própria, distinta realmente, e, para Suarez, onticamente independente da substância, e a ela irredutível. O acidente acrescenta-se à substância, e como uma capa ôntica pertence a uma esfera distinta da realidade (Alcorta).
O modo apenas modifica a entidade preexistente. Por isso, ele se distingue apenas modalmente, pois não se distingue como uma realidade de outra realidade, ut re a re.
Desde que tenhamos um conceito mais amplo de real, como o expusemos ao estudar as distinções, diríamos que há uma distinção, de grau meta fisicamente menor, entre o modo e a entidade modificada, e que um se distingue do outro, real-modalmente, à semelhança do que estudamos sobre a ficcionalidade. Há uma distinção real-modal, e não real-física, entre modo e a entidade modificada.
Por isso não tem ele consistência ontológica independente (não é real-físico), mas distingue-se como uma realidade, mas, modalmente, por faltar-lhe essa consistência. Esse ponto ainda se esclarecerá melhor mais adiante.
Consequentemente, tem ele uma entidade, a qual é positiva e real, e que consiste apenas numa modificação atual e última de outra entidade, num haver-se inerente a esta.
Não é um puro não-ser, e tudo quanto não é um puro não-ser tem uma estrutura ontológica.
A realidade do modo está na sua atualidade de modificação; é, portanto, uma determinação última, pois que determinação outra, ademais, poderia haver além daquela que é atual. que é a última da realidade, assim como o indivíduo, no ato de existir, é urna determinação última da espécie?
Precisa-se agora o que Suarez chamava de distinção mo-dal. É a que se dá entre uma realidade e sua modificação real.
Tem as coisas múltiplos modos de ser e de haver-se, e entre esses últimos estão os modos, as entidades modais.
Suarez dividia-as, segundo os seus estados, em modais de união, de dependência, de presença, de inerência, de determinação efetiva.
São entidades tênues, sutis. Não são distintas por razão, pois se dão extra mentis, por isso ex natura rei, independentes do operacional do intelecto. Como não têm uma entidade inteiramente independente, sua distinção é apenas modal, sem negar que seja real, como já vimos.
A união une, a inerência inere, o movimento movimenta-se. Nessa atualidade funcional está a realidade do modo, que é uma modificação do preexistente a ele. Na concepção tomista das distinções, pode-se classificar a modal como uma distinção real menor.
A entidade modificada, no curso de seus modos, permanece como ser, o que varia é o estar da entidade, na diversidade de seu haver-se.
Assim, a riqueza da nossa língua permite tornar clara a visão ontológica do modo, e compreender-se, ademais, o que é importante nesta matéria: a inseparabilidade ontológica dele da entidade modificada, e não a inversa, pois esta pode ser separada daquela, sem deixar de ser o que é, que indica uma distinção real menor, não mútua, para usarmos a classificação tomista.
Decorre daí, para os modalistas, a dificuldade na definição do modo, visto ter ele uma consistência tão tênue.
É importante o papel da teoria das modais para a filosofia moderna. Tendo tomado seu impulso no período de fluxo da escolástica, na Contra Reforma, onde surgiram nomes como Cayetano, Suarez, Vasquez, Soncinas, os conimbrenses, os complutenses, os salmaticenses, prossegue até a filosofia de nossos dias, através de Descartes, Spinoza, Malebranche, Hume, Locke, Hegel, Husserl, Heidegger, sem desmerecimento dos não citados.
Dentre todos eles, no entanto, surge Suarez como a figura máxima no estudo das modais, que tão grande papel exerce e vai exercer ainda para o melhor exame da realidade. Procuraremos, no entanto, frisar os matizes que diferenciam as diversas posições e os pontos de encontro que as identificam, procurando, por todos os meios, ser o mais claro na exposição, pois sempre consideramos que, na filosofia, o mais difícil é expor com clareza o que é fundamentalmente obscura
Dizia Descartes que os modos têm, como função, o serem afecções da substância, serem estados de variação e mobilidade, que afetam a substância e fazem-na mudar. Na Escolástica, os modos são modificações do ser. Revela-se desde logo que é mais dinâmica (no sentido moderno do termo, na acepção de movimento) a maneira de ver os modos da filosofia moderna sem, no entanto, repelir a posição da escolástica. Vemos a influência do pensamento modalista na filosofia de Spinoza, em Leibniz, em Locke, apesar dos matizes diferenciais, pois alguns, como Hume, terminam por reduzi-los a meras ideias complexas, formadas pela associação de ideias simples, ou declinando para um significado e consistência meramente gnosiológicos, como Spinoza, ou reduzidos apenas às possibilidades do haver-se, do ser do Dasein, na concepção heideggeriana.
O modo de ser é fundamentalmente construtivo do Dasein, situação primária de toda ontologia existencial (Heidegger “Sein und Zeit”, pág. 42).
Assim, a preocupação, a ansiedade, etc,, são modos derivados e manifestativos da originária situação do Dasein. São determinações do seu ser e do seu estar, por isso se pode estar no mundo num modo de ser autêntico ou inautêntico.
São os modos, para Suarez, maneiras de ser, e como não são puros não-ser, têm uma entidade tênue.
Todo ser criado, no que se refere à sua essência e existência, é um ser participante, pois as recebe de outro, mantendo, assim, uma dependência (pendor de) essencial de outro. Todos os entes criados, enquanto tais, dependem do ser primordial, cuja discussão teológica cabe à Teologia, Mas a criatura distingue-se realmente. O modo é distinguido apenas real-modalmente. Portanto, entre o modo e a entidade há uma composição.
A teoria modalista, em Suarez, permite o esclarecimento de muitos pontos ontológicos. Vejamos alguns exemplos.
A substância é completa ou incompleta. A substância completa distingue-se da incompleta. Esta é parte da matéria e da forma, partes substanciais.
O suposto, enquanto tal, é a substância completa; é um’ e incomunicável, e o que se lhe agregue é de natureza substancial. As substâncias incompletas, próprias dos seres criados, necessitam sempre de outro gênero de entidade.
A substância é um modo de ser, um determinado modo de existir por si e sem dependência de um sustentante, um modo de existir em si (ensidade), que se distingue do modo de existir em outro (inaliedade). Subsistir significa existir por si; existência e perseidade, portanto. As coisas criadas têm um modo de subsistir incompleto. Um existir, com perseidade, completo, caberia ao ser originário, Deus» que seria uma substância completa.
Se os modos revelam a imperfectibilidade dos entes, não revelam a imperfectibilidade do ser. O modo, neste ser, é um índice da sua imperfectibilidade, porque, na sua atualização (e o modo é sempre atual), ele afirma um poder-ser este ente, que se perfectibiliza, como potência, no ato, através do devir.
Mas os modos no ser, este transcendentalmente considerado, não são índices de imperfectibilidade do ser, mas, ao contrário, da sua pujança.
No ente limitado, o modo é um apontar do limite, pois é uma determinação que consiste num determinar-se hic et nunc. No comparar das coisas, os modos revelam imperfeições havidas ou tidas. Mas todos os modos, como ser debilissimos, são do ser e no ser. Se no ser, transcendentalmente, há modos, esses não implicam imperfeições, porque estão contidos no todo do ser.
Um exemplo grosseiro nos revela com clareza o que pretendemos dizer: Quem é milionário tem um milhão. Cada parte do milhão é, em relação a ele, uma imperfeição do milhão, é algo do milhão, sem ser o milhão. Os modos, na comparação entre os entes, revelam imperfeição, como o revelaria cada parte do milhão comparada a outra, em face daquele. Não revelam, porém, imperfeição do ser transcendental, que ao permitir a atualização dos entes e de suas modalidades, nada perde de sua perfeição, porque eles se dão nele e são dele. Neste caso, os modos não podem ser esgrimidos contra a perfectibilidade do ser, como as coisas finitas, as coisas criadas não podem ser esgrimidas como imperfectibilidade do Criador, para uma concepção criacionista.
O ser finito não nega o poder infinito do Ser Supremo, que pode tudo porque só ele é absolutamente. O poder-menos inclui-se no poder-mais. A variedade dos entes criados atesta o poder infinito do ser, que não é limitado em seu poder por nenhum outro e, ademais, é infinito, pois é tudo quanto pode ser, porque o poder-ser nele está incluso. Assim, no referente à teoria das modais, os modos revelam a imperfeição dos entes, quando considerados no ente (onticamente), mas transcendentalmente não revelam imperfeição do ser (ontologicamente). Ao contrário, revelam um poder, que é perfeição. Assim o ter um milhão não é refutado pela parte do milhão. O um milionésimo, ante o milhão, é uma imperfeição milionar, não uma imperfeição do milhão, é uma imperfeição da parte enquanto tal, não do todo, enquanto tal. Ao contrário, ante o todo, é uma perfeição do todo. Por isso a criatura não é uma Imperfeição do Criador, mas é da sua perfeição.
A distinção real-real surge-nos quando há realidades ou estruturas ontológicas que têm consistência própria, ou que podem isolar-se de maneira absoluta e metafísica. Dessa forma, uma se distingue da outra, se contradistinguem no que são e pelo que são, no quod e no quo. Uma não é a outra e da outra se distingue com o que é, e o que representa.
Para que tal se de é impossível que os extremos tenham, cada um, intrínseca mente, e em sisi mesmo, algo que não tenha o outro extremo.
Suarez exemplificava assim: se a visão e o ouvido se distinguem extrinsecamente pela cor e pelo som, é necessário que intrinsecamente se distingam realmente nas entidades que recebem as cores e os sons. Portanto, quando há uma distinção por algo extrínseco, esta deve fundar-se imediatamente em algo intrínseco.
A distinção de razão dá-se quando a uma mesma realidade nos referimos com dois ou mais conceitos distintos e inadequados , Não há, portanto, aqui, como é fácil ver-se, distinção real-real.
Estabelecida a diferença entre a distinção real-real e a de razão, propõe Suarez a modal, e funda-se ela no seguinte: as realidades nos mostram capas ontológicas, que consistem em puras modificações de outras entidades. Essas modificações só o são quando modificam, isto é, quando estão em seu pleno exercício atual de modificar. É nesse exercício que está o seu ser, mas, este, nada é fora da realidade modificada, pois consiste apenas no causar modificativo que se realiza na realidade.
Assim o movimento é sempre movimento de alguma coisa, e sua entidade consiste em ser o modo de ser de outra coisa; e é, como tal, em seu exercício, no seu ato de determinar. A coisa em movimento distingue-se de si mesma, tomada enquanto tal, mas apenas modalmente. É uma distinção real, mas que se coloca entre a real maior e a de razão. [MFS]