Tarda-nos, porém, chegar finalmente a esta “filosofia do espírito” em que vemos reflorir flores antigas com graças novas. Sob este mesmo título, dois professores, René Le Senne e Louis Lavelle fundaram na Editora Aubier uma coleção que se tornou o centro do renascimento espiritualista. E não há duvidar que o espírito fosse aí afirmado e servido. Na página 693 do Tratado de Moral de Le Senne lemos o seguinte:
“Na medida em que o Valor absoluto deve possuir eminentemente a personalidade, que nós conhecemos como o mais alto dos valores e o coração do espírito, cumpre chamar Deus ao Absoluto; não o conhecemos, porém, senão pelas participações que ele nos dá do valor, na proporção da nossa busca…”
Esta reivindicação altiva demonstra que é impossível escamotear Deus; esta palavra “participação” define com muita propriedade a doutrina de Louis Lavelle, que a seguir vamos expor.
Existe um Espírito, realidade soberana e primordial, ainda que invisível, de onde tudo procede e para onde tudo volta ou tende a voltar. Esse espírito vale infinitamente, é o único valor, e nós mesmos valemos e nos realizamos na medida em que entramos na sua natureza e dela participamos. É a ele que devemos buscar nas coisas e sobretudo em nós mesmos; é somente por ele e nele que nos será dado entrar ou reentrar na posse do Verdadeiro, do Belo e do Bem, na felicidade terrestre, se é que ela existe, e na beatitude final.
São laivos evidentes de platonismo. Mas o platonismo não é em absoluto uma filosofia abstrata e exclusivamente conceptual. As Ideias de Platão eram vivas e ativas, e não o é menos o Espírito de Lavelle. Este Espírito dá cor e sentido à vida e forma a sua própria substância. É luta e disciplina, disposição hierárquica desses mesmos valores, subordinação do corporal e do temporal, triunfo do eterno.
E não imaginemos que Lavelle não traga nada de novo depois de Platão, que não lhe acrescente nada. Define e precisa a ideia de participação; lança mão de toda a ciência e de todos os progressos adquiridos desde os tempos luminosos da Grécia. Também o Eu cartesiano é adotado, não porém como o fruto de uma dialética ou de uma pesquisa analítica e sim como a descoberta de unia consciência substancial e dinâmica. Os trabalhos dos fenomenistas ou dos fenomenologistas são utilizados: o fenômeno já não é dado como uma aparência, mas como um real manifestado e intuitivamente apreendido.
Que é o eu? pergunta Lavelle em O eu e seu destino; e fala da “intimidade” desse eu. “Aprofundando-me, desço até a própria raiz do ser. Julga-se muitas vezes que a subjetividade seja uma espécie de ilusão e de miragem e que o objeto esteja alhures. Mas ilusão e miragem é justamente esse objeto que procuro alhures; a única objetividade verdadeira é a da minha própria subjetividade… .”
O fundo mesmo da doutrina está contido neste realismo psicológico, se assim se pode dizer, no qual se patenteia um realismo, ou mais exatamente uma realidade metafísica. E é assim que passaremos da identidade, depois da “liberdade” do eu, à noção de eternidade.
O que me revela a mim mesmo, o que me revela o mundo, o que faz com que eu seja um “eu-no-mundo”, diriam Heidegger ou Sartre, é o Ato, e Lavelle trata Do Ato em outra obra capital. “O fato primitivo”, escreve ele ainda, “reside numa experiência que vem a ser a de minha presença ativa a mim mesmo… o sentimento da minha responsabilidade perante mim e perante os outros….” Em Aristóteles o ato era “afirmado”; aqui o vemos apreendido e “desenvolvido” no seu princípio. Assim andam dignamente os modernos, quando não se transviam.
Há uma “experiência” do ato. Após tê-la examinado, o filósofo considera as relações do ser com esse ato e afirma que tais relações são urna identidade. “O ato não é em absoluto uma operação que se acrescente ao ser, mas é a sua própria essência.” É assim que devemos entender a palavra do Gênese: “No começo era o Verbo.” No começo da criação há um ato e toda a criação é um ato. Todo o progresso da filosofia consistiria, então, no da terminologia?
O ato nos descortina o mundo, mas um mundo diverso daquele que imaginamos, que vemos fugir diante de nós e que nos deslumbra desde que atentamos nele. O ato nos revela a nós mesmos e nos revela o mundo; leva-nos ainda mais além, a esse mundo que nos supera a nós e ao mundo. “Constitui o ‘si’ e o esgota”, acrescenta Lavelle. Palavra que nos transporta à sabedoria hindu, ao nascimento da sabedoria. A essência das coisas é manifestada em nós e no mundo; em si mesma ela é o si, a própria coisa, a coisa de toda coisa, o princípio e a substância. Eis aonde nos conduz a “participação”: ao “descortino de um universo que é uma inexaurível maravilha…”.
Numa terceira grande obra, intitulada Do tempo e da eternidade, Lavelle aborda a difícil e crucial questão do tempo. É uma evidente impossibilidade deduzir o tempo cronologicamente, pois seria necessário partir sempre de um tempo anterior; mas se o considerássemos imanente e percebido pelo ato? É a esta operação arrojada que nos convida o filósofo, chegando à seguinte definição que é a expressão de uma gênese: “…a experiência fundamental da inscrição do eu no ser, que, pelo intervalo que faz aparecer entre o eu e o ser, dá origem ao tempo…”.
Continuamos, assim, dentro do espírito do sistema: não somos o ser, mas somos seres e participamos do ser. Os momentos dessa participação marcariam, portanto, o tempo. Daí parte Lavelle para deduzir agora os diversos momentos do próprio tempo: presente, passado, futuro. E o faz com uma habilidade que nos permite penetrar na dialética mais sutil. Não vamos segui-lo nessa operação: basta-nos tê-lo visto na continuidade da sua doutrina.
Permanece-lhe fiel na sua moral e em outras obras de envergadura mais modesta, mas cheias de sabedoria e de sabor. O grande princípio de ação desta doutrina é a noção de liberdade, essa liberdade que era antes condição da participação e que o é agora de toda a ação do mundo. O que importa em primeiro lugar é superar o eu para atingir o si, e o “erro de Narciso” foi não ter podido chegar até ele. Por outro lado, qual será o sentido do “mal” e do “sofrimento”? Será ainda a ideia de participação que nos elucidará este doloroso problema. Trata-se de nos integrarmos no todo, de não nos isolarmos em nós mesmos: nisso consiste o nosso drama, do qual a dor é uma advertência. Trata-se de ser o que fundamentalmente somos e não o que parecemos em nosso egoísmo e em nosso egotismo: “Ninguém nasceu o que deve ser, como também jamais existiu ninguém que se tivesse tornado o que devia ser, em, outras palavras, que tivesse alcançado a meta. Mas ninguém progride a não ser saindo de si, isto é, triunfando desse apego a si próprio que o separa dos outros seres.”
Belas palavras de um admirável escritor. A filosofia original e nova de Lavelle — pois existe realmente algo de novo neste platonismo renovado — traz algum reconforto a uma época tão fúnebre. Pusemo-la em confronto com a de Sartre num livrinho a que nos permitimos remeter o leitor para um complemento de informação que não poderia ter lugar aqui e a ideia natural dessa aproximação nos veio como um possível ensejo de apresentar o remédio ao lado do tóxico. A verdade é que acabamos de navegar agora em águas límpidas e bastante inesperadas. [Truc]