Filosofia – Pensadores e Obras

jogar

É certo que se pode diferenciar do próprio jogo [Spiel] o comportamento [Verhalten] do jogador, que, como tal, se integra com outros modos de comportamento da subjetividade. Assim, por exemplo, pode-se dizer que, para quem joga, o jogo não é uma questão séria, e que é por isso mesmo que se joga. Podemos, a partir disso, procurar determinar o conceito do jogo. O que é mero jogo não é sério. O jogar possui uma relação de ser própria para com o que é sério. Não apenas porque nisso se encontra sua “finalidade”. Joga-se “por uma questão de recreação”, como diz Aristóteles. O que é importante é que se coloque no próprio jogo uma seriedade própria, até mesmo sagrada. E, não obstante, não desaparecem simplesmente no comportamento lúdico todas as relações-fins, que determinam a existência (Dasein) atuante e cuidadosa, mas, de uma forma muito peculiar, permanecem em suspenso. Aquele que joga sabe, ele mesmo, que o jogo é somente jogo, e que se encontra num mundo que é determinado pela seriedade dos fins. Mas isso não sabe na forma pela qual ele, como jogador, ainda imaginava essa relação com a seriedade. Somente então é que o jogar preenche a finalidade que tem, quando aquele que joga entra no jogo. Não é a relação que, a partir do jogo, de dentro para [108] fora, aponta para a seriedade, mas é apenas a seriedade que há no jogo que permite que o jogo seja inteiramente um jogo. Quem não leva a sério o jogo é um desmancha-prazeres. O modo de ser do jogo não permite que quem joga se comporte em relação ao jogo como em relação a um objeto. Aquele que joga sabe muito bem o que é o jogo e que o que está fazendo é “apenas um jogo”, mas não sabe o que ele “sabe” nisso.
[…] Nossa indagação quanto à natureza do próprio jogo não poderá, por isso, encontrar nenhuma resposta, se é que a estamos esperando da reflexão subjetiva de quem joga. Em vez disso perguntamos pelo modo de ser do jogo como tal. Já tínhamos visto que não é a consciência estética, mas a experiência da arte e, com isso, a questão pelo modo do ser da obra de arte que terá de ser objeto de nossa ponderação. Mas justo isso a experiência da arte, que temos de fixar contra a nivelação da consciência estética, ou seja, que não é um objeto que se posta frente ao sujeito que é por si. A obra de arte tem, antes, o seu verdadeiro ser em se tornar uma experiência que irá transformar aquele que a experimenta. O “sujeito” da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte. Encontra-se aí justamente o ponto em que o modo de ser do jogo se torna significante. Pois o jogo tem uma natureza própria, independente da consciência daqueles que jogam. O jogo encontra-se também lá, sim, propriamente lá onde nenhum ser-para-si da subjetividade limita o horizonte temático e onde não existem sujeitos que se comportam ludicamente.

O sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente ganha representação [Darstellung]. É o que nos ensina já o uso da palavra, e principalmente seu múltiplo emprego metafórico, levado em consideração especialmente por Buytendijk.
[…] Se considerarmos o uso da palavra jogo, dando preferência ao chamado significado figurado, resultará o seguinte: falamos do jogo das luzes, do jogo das ondas, do jogo da peça da máquina no rolamento, do jogo entrosado dos membros, do jogo das forças, do jogo dos mosquitos, até mesmo do jogo das palavras. Nisso sempre está implícito o vaivém de um movimento, o qual não está fixado em nenhum alvo, no qual termine. A isso corresponde também o originário significado da palavra jogo como dança, que sobrevive em múltiplas formas de palavras (p. ex. na palavra músico). O movimento, que é jogo, não possui nenhum alvo em que termine, mas renova-se em permanente repetição. O movimento de vaivém é obviamente tão central para a determinação da natureza do jogo que chega a ser indiferente quem ou o que executa esse movimento. O movimento do jogo como tal é, ao mesmo tempo, desprovido de substrato. É o jogo que é jogado ou que se desenrola como jogo (sich abspielf) nisso — não há um sujeito fixo que esteja jogando ali. O jogo é a consumação do movimento como tal. Assim falamos, por exemplo, do jogo das cores e, nesse caso, nem sequer queremos dizer que aí se trata de uma única cor, que joga com uma outra, mas estamos aludindo ao processo ou à visão unitários em que se mostra uma multiplicidade variável de cores.

Essa observação filológica me parece uma indicação indireta no sentido de que o jogar não requer ser entendido, de maneira alguma, como uma espécie de atividade. Para a linguagem, é óbvio que o sujeito genuíno do jogo não é a subjetividade daquilo que joga também sob outras atividades, mas o próprio jogo. Mas estamos acostumados a relacionar um fenômeno como o jogo à subjetividade e às suas formas de comportamento, apenas de uma forma, que permanecemos fechados em face dessas indicações do espírito da língua.

Seja como for, também a pesquisa antropológica mais recente compreendeu tão amplamente o tema do jogo que, com isso, chegou no limite do modo de observação que procede da subjetividade. Huizinga procurou descobrir o momento do jogo em toda cultura, elaborando sobretudo a correlação do jogo infantil e animal com os “jogos sagrados” do culto. Isso o levou a reconhecer a peculiar diferenciação na consciência lúdica que simplesmente torna impossível diferenciar entre crença e descrença. “O próprio selvagem não conhece nenhuma diferenciação de conceito entre ser e jogar, não conhece nenhuma identidade, nenhuma imagem ou símbolo. E por isso permanece questionável se não se pode chegar melhor e mais próximo ao estado de espírito do selvagem através de sua ação sacral, fixando-nos no termo primário do jogar. No nosso conceito de jogo desfaz-se a diferenciação entre crença e simulação.”

Aqui, em princípio, reconhece-se o primado do jogo em face da consciência do jogador, e, de fato, justamente as experiências do jogo, que o psicólogo e o antropólogo terão de descrever, ganham uma luz nova e esclarecedora, caso se parta do sentido medial do jogo. E evidente que o jogo representa uma ordem, na qual o vaivém do movimento do jogo corre como que espontaneamente. Faz parte do jogo o fato de que o movimento não somente não tem finalidade nem intenção, mas que também não exige esforço. Ele vai como que espontaneamente. A leveza do jogo, que naturalmente não precisa uma real falta de esforço, mas que apenas alude fenomenologicamente à falta de esforçabilidade (Angestrengtheit), será experimentada subjetivamente como alívio. A estrutura de ordenação do jogo faz que o jogador desabroche em sisi mesmo e, ao mesmo tempo, tira-lhe, com isso, a tarefa da iniciativa, que perfaz o verdadeiro esforço da existência. Isso aparece também no espontâneo impulso à repetição, que surge no jogador e no renovar-se permanente do jogo, que cunha sua forma (p. ex., no refrão).

O fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de movimento da natureza, permite, porém, uma importante conclusão metódica. É evidente que não é assim, que os animais também brincam (spielen, em alemão, que significa tanto jogar, como brincar, tocar um instrumento ou representar teatro etc.) e que até se possa dizer, num sentido figurado, que a água e a luz brincam. Ao contrário poderíamos antes dizer do homem que ele também brinca (spielt). Também o seu jogar é um acontecimento da natureza. Também o sentido de seu jogar, justamente por ele ser, e na medida em que é natureza, é um puro representar-se a si mesmo. E assim que, no final, torna-se praticamente sem sentido diferenciar, nesse campo, o uso próprio e o metafórico.
[…] Também uma outra questão, que é analisada por Huizinga, esclarece-se através do papel fundamental do vaivém do movimento do jogo, ou seja, o caráter lúdico da competição. Certamente, o que vale para o competidor, de acordo com sua própria consciência, não é que ele brinque (spielt). O que certamente surge na competição é o tenso movimento do vaivém, do qual resulta o vencedor e que assim faz com que o conjunto seja um jogo. O vaivém pertence tão essencialmente ao jogo que, em último sentido, faz que de forma alguma haja um jogar-para-si-somente. Para que seja um jogo pode até não ser necessário que haja um outro jogando, mas é preciso que sempre haja ali um outro com o qual o jogador jogue e que, de si mesmo, responda com um contra-lance ao lance do jogador. É assim que o gato que brinca escolhe o rolo de fio de algodão, porque este também brinca, e a imortalidade dos jogos com bola reside na mobilidade total e livre da bola, que também de si mesma produz surpresas.

O primado do jogo em relação aos jogadores que o exercitam, e onde se trata da subjetividade humana, que se comporta jogando, acaba sendo experimentado pelos próprios jogadores de uma forma especial. Outra vez são as aplicações inapropriadas da palavra que dão a mais rica explicação para sua natureza apropriada. Assim, por exemplo, costumamos dizer de alguém, que ele joga com possibilidades ou com planos. É bem nítido o que queremos dizer com isso. É que esse alguém não está se fixando tanto em tais possibilidades, mas sim em metas sérias. Tem ainda a liberdade de se decidir assim ou assado, por esta ou por aquela possibilidade. Por outro lado, essa liberdade não é sem risco. Antes, o próprio jogo é um risco para o jogador.

Só se pode jogar com sérias possibilidades. Isso significa, evidentemente, que somente confiamos nelas na medida em que elas podem dominar alguém e se impor. O atrativo que o jogo [112] exerce sobre o jogador reside exatamente nesse risco. Usufruímos com isso de uma liberdade de decisão que, ao mesmo tempo, está correndo um risco e está sendo inapelavelmente restringida. Pense-se, por exemplo, nos jogos que exigem paciência, como o próprio jogo chamado paciência, etc. O mesmo vale também no campo da seriedade. Aquele que, porque quer usufruir de sua própria liberdade de decisão, evita decisões que o coagem, ou se entrega a possibilidades que não está querendo seriamente e que, por isso, não contêm, de forma alguma, risco algum, de que ele as escolha e com isso limite a si mesmo, a esse alguém iremos chamar de perdido.

A partir daí, pode-se precisar um traço geral de como a natureza do jogo se reflete no comportamento lúdico: Todo jogar é um ser-jogado. O atrativo do jogo, a fascinação que exerce, reside justamente no fato de que o jogo se assenhora do jogador. Mesmo quando se trata de jogos em que se procura preencher tarefas de auto-aposta, é o risco de saber se “vai”, se “dá certo” e se “voltará a dar certo” que exerce o atrativo do jogo. Quem tenta dessa maneira é, na verdade, o tentado. O verdadeiro sujeito do jogo (é o que tornam evidente justamente essas experiências em que há apenas um único jogador) não é o jogador, mas o próprio jogo. É o jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo, e que o mantém em jogo.

Isso vem impresso também no fato de que os jogos possuem um espírito próprio e especial. Isso também não diz respeito ao humor ou ao estado de espírito daqueles que jogam o jogo. Mais do que isso, essa diversidade do estado de ânimo ao se jogar diferentes jogos ou de sentir prazer em tais jogos é consequência e não causa da diversidade dos próprios jogos. Os próprios jogos diferenciam-se entre si através de seu espírito. Isso repousa não mais no fato de que eles caracterizam e ordenam o vaivém do movimento do jogo, que eles são, cada vez, diferentes. As regras e os regulamentos, que preservem o preenchimento do espaço lúdico, perfazem a essência de um jogo. Isso vale, com todo seu caráter geral, onde quer que haja um jogo. Vale, por exemplo, também para os jogos de águas ou para animais que brincam. O espaço lúdico em que se desenrola o jogo (brincadeira), será, ao mesmo tempo, mensurado de dentro pelo próprio jogo (brincadeira) e limita-se bem mais através da regulamentação, que determina o movimento do jogo, do que através daquilo contra o que ele se choca, isto é, os limites do espaço livre, que restringem o movimento de fora.

Para o jogo humano, em face dessas determinações gerais, parece-me característico que ele joga algo. Isso significa que a regulamentação do movimento a que se subordina possui uma determinação que o jogador “escolhe”. De início, ele limita-se [113] ao comportamento lúdico expressamente contra outros comportamentos seus pelo fato de que quer jogar. Mas também no âmbito de sua disposição de jogar realiza ele sua escolha. Escolhe este jogo e não aquele. A isso corresponde que o espaço de jogo do movimento do jogo não é simplesmente o espaço livre do colocar-se em jogo, mas sim um espaço limitado e que é mantido livre propriamente para o movimento do jogo. O jogo humano exige seu lugar de jogo. A delimitação do campo de jogo — tal qual ocorre no âmbito sagrado, como acentua Huizinga com razão — coloca o mundo do jogo, enquanto um mundo fechado, em oposição ao mundo dos fins, sem transição e sem intermediação. O fato de que todo jogo é jogar — algo passa a valer por primeiro aqui, onde o vaivém ordenado do movimento do jogo é determinado como um comportamento e coloca-se contra um comportamento de feitio diferente. O homem que está jogando, mesmo no jogo, é uma pessoa que se comporta, mesmo que a natureza do jogo propriamente dita resida no fato de que está se livrando da tensão com que se comporta com relação a seus fins. É assim que se determina mais de perto de que maneira o jogar é jogar-algo. Cada jogo coloca uma tarefa ao homem que o joga. Não pode igualmente abandonar-se à liberdade do colocar-se em jogo, a não ser através da transformação dos fins do seu comportamento em simples tarefas do jogo. É assim que a criança estabelece para si mesma sua tarefa num jogo com bola, e essas tarefas são tarefas do jogo, porque o verdadeiro fim do jogo não é, de forma alguma, a solução dessas tarefas, mas a regulamentação e a configuração do próprio movimento do jogo. [GadamerVM:2]