atribuição e acusação estão ligadas originariamente. Essa articulação é encontrada no século XVIII no par lockiano attribute-impute. Em Locke, a imputação é o elo essencial da construção da “relação entre a cons-ciousness, o self e a person enquanto “termo judicial” — forensic term. Da atribuição à imputação, a transição é contínua. O atributivismo culmina em uma teoria da responsabilidade qua imputabilidade. Na teoria lockiana, o self ou a pessoa é aquele a quem o homem ou a consciência atribui suas ações, enquanto sujeito de imputação possível; a imputação é uma atribuição de atos, efetuados “do interior”, que supõe a consciência (cons-ciousness), chamando a ela mesma ou a “si” os pensamentos e as ações realizados. A noção de sujeito de imputação é historicamente posterior à de sujeito de atribuição, ainda que o sentido de κατεγορεῖν do qual ele procede seja anterior àquele de onde provém o sujeito de atribuição. O paralelismo das duas séries é evidente:
κατεγορεῖν¹ ➔ acusar ➔ impute: sujeito² de imputação (homem individual, a pessoa, o Self), Moral
κατεγορεῖν² ➔ atribuir ➔ attribute: sujeito¹ de atribuição (o homem, a alma, o espírito, o corpo), Psicologia
Mas é evidente que, de novo, a dimensão teológica da passagem de um sentido ao outro, ou melhor, o enraizamento teológico da mediação que conduz de um ao outro sujeito não pode ser subestimado. Como se verá, de fato, a apropriação das ações (e de seu mérito ou demérito) pela pessoa – além de ser enunciada em uma linguagem que é a que a teologia trinitária utiliza – cruza inúmeras vezes o campo da teologia. No que se refere ao papel da imputação na definição da personalidade, o Ensaio diz de maneira clara:
É unicamente pela consciência que essa personalidade se estende ela mesma ao passado para além da existência presente: por onde se torna preocupada e responsável por atos passados, confessa-os e imputa-os, à si mesma, ao mesmo título e pelo mesmo motivo que os atos presentes. Tudo isso repousa sobre o fato de que uma preocupação com sua própria felicidade acompanha invariavelmente a consciência, o que é consciente do prazer e da dor desejando sempre também a felicidade que precisamente é consciente. É por isso que, se não pudesse, pela consciência, confiar ou apropriar para esse si atual atos do passado, ele não poderia mais se preocupar com eles a não ser que jamais tivessem sido realizados […] [J. Locke, Essai philosophique concernant l’entendement humain, II, XXVII, § 26, trad. Balibar, em John Locke, Identité et différence: L’invention de la conscience, apres., trad. e com. E. Balibar; para a tradução Coste, cf. idem, p. 129 (principalmente: “A personalidade não se estende para além da existência presente, até o que é passado, a não ser por meio da cons-ciência, que faz com que a pessoa tenha interesse por ações passadas, se torne responsável por elas, as reconheça como suas, e as impute a si com base no mesmo fundamento e pela mesma razão que se atribui as ações presentes”), e, aqui mesmo, p. 443.].
O que P. Ricoeur, após Scheler, chama de imputabilidade inscreve-se sem dificuldade, portanto, na arqueologia do sujeito. A consciência lockiana é um operador que, como se procurará mostrar, tem como função transformar o sujeito de atribuição em sujeito de imputação, ou, mais exatamente, prolongá-lo a parte ante do presente ao passado, para assegurar sua responsabilidade [nota abaixo]. Em A Memória, a História, o Esquecimento, P. Ricoeur liga estreitamente o que ele chama de o “coração da ipseidade” e o “foco da imputabilidade”. É uma boa maneira de ver um dos aspectos centrais na definição do sujeito moderno: uma melhor ainda seria analisar mais em detalhe como Locke entrelaçou para toda a filosofia moderna o si, o sujeito e pessoa, sujeito dito “psicológico” e sujeito dito “moral”. É o que se procurará fazer no quadro arqueológico.
Essa tarefa exige reinscrever Locke no horizonte da história da teologia, inclusive o da teologia trinitária. [LiberaAS:117-120]
NOTA: Em “De la morale à l’éthique et aux éthiques”, falando da “vontade boa”, onde supostamente as morais respectivas da Antiguidade e da Modernidade se comunicam, Ricoeur põe o conceito de imputabilidade no primeiro plano: “Que a moral dos Antigos e a dos Modernos possam se juntar, se reconhecer e se saudar mutuamente no conceito, a possibilidade não decorre mais nem da ética nem da moral, mas de uma antropologia filosófica que faria da ideia de capacidade um de seus conceitos diretivos. A fenomenologia das capacidades, que, de minha parte, desenvolvo nos capítulos de Si mesmo como um Outro que precedem a ‘pequena ética’, prepara o terreno para essa capacidade propriamente ética, a imputabilidade, capacidade de se reconhecer como o verdadeiro autor de seus próprios atos. Ora, a imputabilidade pode ser associada alternadamente ao conceito grego de preferência razoável e ao conceito kantiano de obrigação moral: é de fato do foco dessa capacidade que se lança o desejo ‘grego’ de viver bem e que se cava o drama ‘cristão’ da incapacidade de fazer o bem por sisi mesmo sem uma aprovação vinda lá de cima e concedida à ‘coragem de ser’, outro nome daquilo que foi chamado de disposição para o bem e que é a própria alma da boa vontade”. Sobre a controvérsia Ricoeur–Levinas a propósito da equação responsabilidade = imputabilidade, cf. P. Ricoeur, Autrement, Lecture d’Autrement qu’être ou au-delà de l’essence d’Emmanuel Levinas (espec. p. 26). [LiberaAs:119-120]