É uma doutrina difícil e ao mesmo tempo de uma simplicidade grandiosa. Ao ler pela primeira vez a Lógica, imaginávamos poder representar este pensamento por uma figura simbólica, espécie de nuvem imensa e universal em que a inteligência recortasse porções claramente delimitadas até o conjunto assumir, por seu turno, uma regularidade geométrica. E com efeito, é uma imagem bastante fiel desta primeira intuição imediata, deste conceito do objeto mediatizado pela negação, deste absoluto atingido ao termo da síntese.
Que vem a ser então o Espírito, uno, múltiplo e único, que vem a ser este idealismo que vemos aparecer depois de tantos outros, depois de Platão, de Leibniz e de Spinoza? Possui o caráter original de ser dinâmico e de fazer passar a ideia, sem que ela saia de si e pelo seu próprio movimento, da unidade à multiplicidade e por fim a uma nova unidade. Não que o platonismo, o leibnitzianismo e o spinozismo não comportassem uma força espiritual a se propagar e a criar de alguma forma; mas aqui essa força se reduz exclusivamente a si e confunde-se com a sua noção. Desaparece a dualidade sujeito-objeto, reduzindo-se tudo ao sujeito; desaparece igualmente a distinção entre o que percebe e o que é percebido, e a possibilidade! de conceber uma criação ex nihilo ou mesmo a criação simplesmente. Deus não tem necessidade de criar, porquanto a criação, o ato de criar, já é o próprio Deus.
No entanto, isto não é um panteísmo, ou pelo menos não é um panteísmo à maneira de Spinoza. O mundo não é Deus nem o conjunto das modalidades de Deus: é a série ou o ciclo dos momentos de Deus. O movimento do Espírito basta para diferenciá-lo, para marcá-lo numa sucessão de realidades em cujo termo tornará a reconstituir-se e que, apesar disso, serão suficientemente distintas dele.
Mas o sistema tem outras consequências metafísicas e religiosas bastante graves. É a redução de toda a matéria à matéria espiritual tínica e a supressão de qualquer transcendência. Esta lógica é de fato uma lógica, se bem seja uma lógica substancial; não é mais uma metafísica na significação precisa da palavra. O próprio Hegel o confessará ao colocar no termo e no ápice da atividade humana, não a religião, ainda figurativa, mas a “filosofia”.
Esta armadura e esta dialética emprestam todavia à doutrina uma coesão e um poder singulares. Os hegelianos souberam tirar proveito disto, chegando o mais inflamado deles, Vera, o tradutor e comentador perpétuo do mestre, a sustentar que fora do hegelismo não havia conhecimento, nem ciência nem pensamento válidos ou sequer possíveis. E realmente, como pensar fora do pensamento, quando o pensamento é tudo?
É um pensamento, ajunta este discípulo, “que não recebe o seu objeto e o seu conteúdo de fora e como um elemento que lhe seja estranho, mas que engendra objeto e conteúdo e não é pensamento livre e absoluto senão enquanto os engendra…”.
Impossível resumir ou definir melhor. Já não há meio, efetivamente, de sair da ideia uma vez dentro dela; tudo aí marcha muito bem, demasiado bem, principalmente ela, quando marcha sozinha. Convenhamos seriamente em que a sistematização e a profundeza hegelianas emprestam aos grandes valores e às grandes disciplinas humanas uma solidez e um alcance que eles não encontram em muitas outras construções filosóficas. Como tudo provém do absoluto, tudo nele se insere e dele tira a sua força. A história e a arte, por exemplo, já não são produtos adventícios, contingentes, condicionados pelo meio, pelo momento e pelas circunstâncias. São parte integrante do vir-a-ser, são esses outros momentos em que se assinalam as manifestações do Espírito, são o próprio Espírito na medida em que age, em que se deixa apreender, em que “se faz”.
“Vir-a-ser”, “fazer-se”, eis as palavras perigosas e o ponto que parece falho no sistema. Com efeito, como existiria o ser se ele “viesse a ser” e como “se faria” se já não estivesse feito? Mas antes de nos pronunciarmos é preciso distinguir e não exagerar ou simplificar o filósofo. Hegel não teria sido positivista nem marxista; não teria feito da Tenra um “grande fetiche”, e chegou mesmo a dizer que a religião devia ser uma religião “revelada”. Declarou simplesmente que o Espírito se afirmava, se desenvolvia, se apreendia, era apreendido, se realizava no seu movimento, e que, segundo a fórmula famosa, tornava-se o que era.
Ora, que vem a ser esse “espírito” e esse “movimento”? Ao dispô-los e ordená-los assim Hegel não realizou obra vã ou puramente ilusória; trouxe uma contribuição importante para a filosofia. Reduziu toda substância à substância espiritual, mas enriqueceu singularmente, se assim se pode dizer, essa substância. Antes de Hegel se poderia ser levado a ver nela uma suposição, ao pé da letra, uma suposição derradeira, uma hipótese ao cabo do trabalho da abstração. Visou transformá-la em algo “concreto” e o conseguiu, graças a essa noção de “movimento” que lhe acrescentava. O Espírito hegeliano é alguma coisa, talvez alguém. É um ser que aparece como uma realidade não imaginativa, fictícia ou lógica, mas substancial, origem e fim de tudo, e na qual tudo está compreendido. E é possível que este Espírito-Deus não tenha sido atingido também na doutrina hegeliana, pois os meios de que dispomos não são suficientes para tanto; jamais, porém, o movimento do nosso espírito se transviou em tão sutil profundeza.
O erro de Hegel, digamo-lo mais uma vez, foi o grande erro moderno: o desconhecimento ou a supressão da transcendência. Essa transcendência que a operação cartesiana separara demasiado bem — que isolara — não consegue mais restabelecer-se, nem mesmo em sistemas como o de Leibniz e o de Spinoza, onde desaparece pelo simples fato de subsistir sozinha. Uma vez que se tenha isolado a Deus do mundo não se pode mais alcançá-lo, apesar de todos os esforços e meios empregados, mesmo transformando o mundo em Deus. O Espírito de Hegel é pura e totalmente imanente e não pode ser outra coisa, pois que só existe ele e que ele é tudo, de forma que a própria questão da transcendência não tem mais razão de ser.
Portanto, também aqui chega a filosofia a um dos seus termos, isto é, a um dos seus impasses. E sempre pela mesma razão: pelo abuso, aliás inevitável, a que submete essa palavra, essa noção de realidade que o homem recebe do sensível e só por uma figura de linguagem transfere ao inteligível. Que é a realidade do Espírito, que é o Espírito? Podemos continuar a perguntá-lo depois de Hegel e o perguntaremos sempre; sempre se apresentará o problema do espírito e da matéria, por mais que o torçamos ou o neguemos, quer convertamos a matéria em espírito, quer o espírito em matéria, quer imaginemos alguma coisa que não seja espírito nem matéria. [Truc]