VIDE glória
Contudo, ao contrário do que certos intérpretes modernos pretenderam ler em fontes cristãs, não há qualquer indicação da moderna glorificação da atividade do trabalho no Novo Testamento ou em escritores cristãos pré-modernos. Paulo, que foi chamado “o apóstolo do trabalho” não era nada disso, e as poucas passagens nas quais se fundamenta tal assertiva ou são dirigidas àqueles que, por preguiça, “comiam o pão do próximo” ou recomendam o trabalho como bom meio de evitar problemas, isto é, reforçam a prescrição geral de uma vida estritamente privada e o alerta contra atividades políticas [Cf. I Ts 4,9-12 e II Ts 3,8-12]. Ainda mais relevante é o fato de que, na filosofia cristã mais recente, e particularmente em Tomás de Aquino, o trabalho tornou-se um dever para aqueles que não tinham outro meio de sobrevivência, consistindo o dever em manter-se vivo e não em trabalhar: se fosse possível sustentar-se com esmolas, tanto melhor. Quem ler essas fontes com isenção de modernos preconceitos pró-trabalho ficará surpreso ao verificar inclusive quão pouco os Pais da Igreja se aproveitaram da oportunidade óbvia de justificar o trabalho como punição do pecado original. Assim, Tomás de Aquino não hesita em seguir Aristóteles, e não a Bíblia, nesse particular, ao dizer que “só a necessidade de sobrevivência pode compelir ao trabalho manual” [Summa contra Gentiles, iii. 135: “Sola enim necessitas victus cogit manibus operari.”]. Para ele, o trabalho é o modo pelo qual a natureza mantém viva a espécie humana, e conclui daí que não é de modo algum necessário que todos os homens ganhem o pão com o suor do rosto; antes, isso é uma espécie de recurso último e desesperado de resolver o problema ou de cumprir o dever [Suma teológica, ii. 2. 187. 3, 5]. Nem mesmo o uso do trabalho como uma forma de evitar os perigos da ociosidade chega a ser descoberta cristã, pois já constituía um lugar-comum na moralidade romana. Finalmente, em completo acordo com as antigas convicções sobre o caráter da atividade do trabalho está o frequente uso cristão da mortificação da carne, na qual o trabalho, principalmente nos monastérios, desempenhava às vezes o mesmo papel de outros dolorosos exercícios e formas de autotortura [v. ponos].
A razão pela qual o cristianismo, a despeito de sua insistência na sacralidade da vida e no dever de se permanecer vivo, jamais desenvolveu uma filosofia positiva do trabalho reside na inquestionada prioridade atribuída à vita contemplativa sobre todos os tipos de atividade humana. Vita contemplativa simpliciter melior est quam vita activa (“a vida dedicada à contemplação é simplesmente melhor que a vida dedicada à ação”), e, quaisquer que fossem os méritos de uma vida ativa, os de uma vida dedicada à contemplação eram “mais efetivos e mais poderosos” [Tomás de Aquino, Suma teológica, ii. 2. 182. 1, 2. Ao insistir na absoluta superioridade da vita contemplativa, Tomás de Aquino difere de Agostinho de modo característico, uma vez que este último recomenda a inquisitio, aut inventio veritatis: ut in ea quisque proficiat – “pesquisa ou descoberta da verdade, de modo que alguém dela possa beneficiar-se” (A cidade de Deus, xix. 19). Esta, porém, é pouco mais que a diferença entre um pensador cristão formado pela filosofia grega e outro formado pela filosofia romana.]. É verdade que dificilmente se encontraria tal convicção, certamente devida à influência da filosofia grega, nas pregações de Jesus de Nazaré; contudo, mesmo se a filosofia medieval tivesse se mantido mais próxima do espírito dos Evangelhos, dificilmente teria encontrado neles algum motivo para glorificar o trabalho.85 A única atividade que Jesus de Nazaré recomenda em suas pregações é a ação, e a única capacidade que ele salienta é a capacidade de “realizar milagres”. [ArendtCH:C44]