Filosofia – Pensadores e Obras

entusiasmo

(gr. enthousiasmos; in. Enthusiasm; fr. Enthousiasme; al. Enthusiasmus; it. Entusiasmo).

Em sentido próprio a inspiração divina, donde o estado de exaltação que ela produz, com a certeza de possuir a verdade e o bem. A primeira crítica do entusiasmo do ponto de vista da filosofia é de Platão, em Ion. este pretende demonstrar que a arte do rapsodo, assim como qualquer outra atividade que dependa exclusivamente de inspiração divina, não é realmente uma arte, porque não dá nada a conhecer (Ion, 538; cf. Men., 99 c). Com o predomínio da concepção religiosa em filosofia, ou seja, com o Neoplatonismo, o juízo sobre o entusiasmo muda: para Plotino, é o meio de alcançar o estado final da visão perfeita, o êxtase (Enn., VI, 9, 11, 13). Os neoplatônicos do Renascimento (Ficino e Pico) retomaram o conceito de entusiasmo no mesmo sentido. É um dos conceitos centrais da filosofia de G. Bruno, que concebeu a filosofia como religião da natureza, cujo instrumento principal é o entusiasmo, que ele designava com vários nomes (“furor heroico”, raptus mentis, contractio mentis, etc). A Bruno deve-se também a distinção entre entusiasmo intelectual ou natural e entusiasmo religioso: este é próprio daqueles que “por se terem feito habitação de deuses ou espíritos divinos, dizem e operam coisas maravilhosas sem que destas eles ou outros entendam a razão”. Graças ao entusiasmo intelectual, ao contrário, ocorre que alguns homens “com terem inato espírito lúcido e intelectual, por um estímulo interno e fervor natural, suscitado pelo amor à divindade, à justiça, à verdade, à glória, pelo fogo do desejo e pelo sopro da intenção, aguçam os sentidos, e no enxofre da faculdade cogitativa acendem o lume racional com que veem mais que de ordinário; estes, ao fim, não falam nem operam como vasos e instrumentos, mas como artífices principais e eficientes” (Degli eroici furori, III). Mas esse entusiasmo natural e intelectual, como se vê, tem o mesmo caráter do outro: dá aos sentidos e ao pensamento um poder sobre-humano, elimina os limites em que o homem se acha “ordinariamente” encerrado e é assumido como justificação da infalibilidade ou da impecabilidade do homem. Quando, a partir da segunda metade do séc. XVII, com o Empirismo e o Iluminismo, esses limites são claramente reconhecidos, o entusiasmo também é reconhecido pelo que é: uma justificação do dogmatismo e da intolerância; é o que faz Locke, em famoso capítulo de Ensaio (IV, 19). O entusiasmo, que não se funda nem na razão nem na revelação divina, não é senão uma presunção de infalibilidade: a luz a que os entusiastas fazem menção é “um ignis fatuus que os fará girar continuamente dentro desse círculo: é uma revelação, porque eles acreditam nisso firmemente; e acreditam firmemente porque é uma revelação” (Ibid., IV, 19, 10). Segundo Locke, esse círculo é tudo o que o entusiasmo consegue encontrar como apoio. Leibniz concordava com Locke aduzindo certo número de exemplos de entusiasmo fanático e observava: “As dissensões dessas pessoas entre si deveriam convencê-las de que seu pretenso testemunho interno não é absolutamente divino e que precisa de outros sinais para justificar-se” (Nouv. ess., IV, 29, § 16). Mais tarde, Leibniz aderia às ideias expressas por Shaftesbury (Recueil de diverses pièces sur la philosophie, la religion naturelle, l’histoire, les mathématiques, etc, de Leibniz, Clarke, Newton, etc, Lausanne, 31. ed., 1759, II, pp. 311-34).

A Carta sobre o entusiasmo (1708) de Shaftesbury estabelece pela primeira vez a oposição entre entusiasmo e ironia, que foi um dos temas preferidos do iluminismo setecentista e é um dos temas do iluminismo de todos os tempos. Shaftesbury insistiu na capacidade liberadora do riso: “Estou seguro de que só existe um caminho para salvaguardar os homens e preservar o tino do mundo: a liberdade espiritual. Ora, o espírito nunca será livre se não houver ironia livre, porque contra as grandes extravagâncias e os humores biliosos outro remédio não há além desse” 04 Letter concerning Enthusiasm, 2; trad. it, Garin, p. 44). A razão e o que nela se apoia nada têm a temer do ridículo, mas o ridículo é uma arma poderosa contra a aparência que não é substância, logo contra o saber ilusório e a virtude hipócrita. A obra de Voltaire inspirou-se nessa concepção fundamental. O próprio Voltaire afirmava que o entusiasmo “é sobretudo a herança da devoção mal-entendida” e só concedia aos poetas o “entusiasmo razoável” (Dictionnaire philosophique, art. Enthousiasme, 1765). As Cartas Persas de Montesquieu são outra manifestação da mesma tendência. Em Kant a crítica do entusiasmo era crítica do fanatismo, e a luta contra o fanatismo era o objetivo fundamental de sua atividade filosófica (v. fanatismo). Mas, por uma das não raras ironias da história, essa luta deveria prenunciar uma das maiores explosões de entusiasmo fanático conhecidas pela filosofia: o Romantismo. Por isso, não é de surpreender a defesa do entusiasmo num dos manifestos do Romantismo europeu, De l’Allemagne, de Madame de Staël (ed. de 1813, p. 603).

Na filosofia contemporânea, Jaspers definiu o entusiasmo de acordo com o conceito tradicional e apreciou-o positivamente. “Na atitude entusiástica”, disse ele, “o homem se sente tocado em sua substância mais íntima, em sua essencialidade ou — o que dá no mesmo — sente-se arrebatado e comovido pela totalidade, pela substancialidade, pela essencialidade do mundo” (Psychologie der Weltanschauungen, I, C.; trad. it., pp. 138 ss.). Contudo, Jaspers distinguiu o entusiasmo do fanatismo, no sentido de que, enquanto o entusiasta “se obstina em manter firmes suas ideias, mas tem vivacidade e vitalidade para aperceber-se do novo”, o fanático “fica fechado em determinada fórmula ou numa ideia fixa” (Ibid., p. 162). [Abbagnano]