VIDE diálogos platônicos
O convívio íntimo com as nossas aporias e a aceitação da possibilidade de equívoco como um traço inelutável dos limites de toda inteligência humana talvez não fosse tudo o que de melhor pudéssemos colher ao frequentarmos as interrogações de Sócrates nos Diálogos de Platão. Talvez algo assim tão bom colhêssemos ao recolhermos os diversos indícios, diversamente espalhados pelos Diálogos, de um princípio de equivalência estrutural entre o discurso filosófico e o mitológico. As páginas de Platão surpreendem e registram a elaboração interminável e a paulatina conquista do discurso filosófico, tanto quanto compreendem e testemunham o perene vigor do discurso mítico ou mitológico; e estabelecem um princípio de equivalência estrutural que permite passar da clara (in-)compreensão de um à clara (in-)compreensão do outro.
Quais são esses indícios e qual é esse princípio? Alguns dos muitos indícios desse princípio são, em resumidas palavras, a atribuição de epítetos tradicionais da noção mítica de Deuses à noção filosófica de idéa / eîdos (v. idea / eidos; cf. Fédon 79 d, 80 a, 81 a; Rep. 517 d), e inversamente a atribuição à noção mítica de Deuses de qualificações próprias da noção filosófica de idéa / eîdos, a saber, o bem e a forma simples e inalterável (cf. Rep. 379 a – 382 e). Em Fédon, as formas inteligíveis se dizem divinas, imortais, imperecíveis. Em República, os týpoi perì theologías impõem critérios para se falar a respeitos dos Deuses, de modo que esses sejam compreendidos à maneira das formas inteligíveis: todo Deus é bom, Deus é simples e o menos propenso de todos os seres a mudar de forma, etc.
Há muitos outros indícios, mas bastem-nos por ora essas atribuições recíprocas e complementares dos epítetos e propriedades de umas a outras noções, de modo a estabelecer-se entre as noções míticas e filosóficas, por diversas que sejam elas próprias e as regras diversas dos discursos diversos a que diversa-mente pertencem, um princípio de equivalência estrutural, cujas consequências, por igual equivalentes, podem-se observar tanto em um quanto em outro de ambos os diversos discursos.
Uma dessas consequências é que às aporias dialéticas, que se leem por exemplo na primeira parte de Parmênides, correspondem as aporias mitológicas, que se leem por exemplo em Eutifronte; e, portanto, há de encontrar-se para umas e outras um mesmo padrão de configuração estrutural e assim um mesmo padrão de (caso haja) solução das aporias. Outra dessas consequências, a que agora nos interessa mais de perto, é que uma mesma relação se estabelece, por um lado, entre a noção mítica de Deuses como fundamento transcendente e as imagens com que se indicam e se pensam a noção mítica de fundamento transcendente, e por outro lado, entre a noção filosófica de formas inteligíveis como fundamento transcendente e as imagens com que se podem indicar e pensar essas formas inteligíveis. Uma mesma percepção da imagem sensível se torna possível tanto no interior do discurso filosófico quanto no interior do discurso mitológico, porque uma mesma concepção de verdade, não como produto do pensamento, mas com fonte originária da forma mesma de pensar, observa-se tanto dentro do discurso filosófico quanto dentro do discurso mitológico. E quando se fala de concepção de verdade, em termos míticos, fala-se também de concepção de conhecimento e de ser; e isso, dado esse princípio de equivalência estrutural, vale também para o discurso filosófico nos Diálogos. [Jaa Torrano]