Filosofia – Pensadores e Obras

desapego

Na mística e para a mística de toda experiência, tudo que podemos fazer é não fazer, em todo nosso fazer. E deixar o fazer nos fazer. Eckhart denominou esta atitude de “deixar ser”, sein lassen, cuja força e poder de vigência ele chamou de Gelassenheit, que, em português, poderíamos invocar com a atitude de serenidade e/ou desapego, de disponibilidade e/ou desprendimento, de despojamento e/ou tranquilidade. É a partir e dentro dessa atitude que, originariamente, sempre experimentamos o mundo, o homem, Deus, em nós mesmos e nos outros.

Mas como é que o homem, o mundo e Deus se dão e se apresentam no deixar ser místico de uma serenidade tranquila e despojada, disponível e desprendida? Deixar, deixar de, deixar ser, que há de mais banal e corriqueiro na vida de todo o dia do que uma atitude dessas?

A mãe diz para a criança arteira: Deixa de brincar com fogo! O pai diz para a filha adolescente: Deixa de cavilação! De quem entrou para o mosteiro, ou do anacoreta, que foi para o deserto, costuma-se dizer que deixou o mundo. Nesses casos, deixar, lassen, é verbo transitivo, e significa renunciar, abandonar. Prevalece, então, o lado negativo do fenômeno de deixar, ao menos aparentemente. Trata-se do aspecto mais claro e evidente, embora menos essencial e decisivo na experiência de deixar. Pois esta só se completa e conclui se, implícita ou explicitamente, se acrescentar ser, deixar ser, como no apelo que, muitas vezes, se faz a um adulto invasivo: Deixa a criança ser criança! Não que o adulto possa impedir a criança de ser criança. E que o adulto se incomoda tanto com ele ser criança que tenta e busca não ser criança na criança.

Deixar ser remete não apenas para uma renúncia, mas para a vigência de ser e não ser, aquém de toda intervenção da parte do sujeito. A renúncia não vive primordialmente de rejeição, mas se alimenta de aceitar transformação. O lema de reformador de Eckhart é ontológico: Tendo de reformar-se sempre, o homem deve transformar-se para não se deformar. [12] A mística é, pois, a negação da negação – sem estardalhaço até mesmo no estardalhaço –, mas na serenidade tranquila de deixar ser o ser que se dá no sendo que se é. Deixando ser, a serenidade se toma disponível e, nessa disponibilidade, encontra-se com o mundo, com Deus, com o homem, justamente naquilo que eles mesmos são em si, para si e por si mesmos. Segundo Mestre Eckhart, na mística penetramos onde já sempre estamos, nos arcanos ônticos, ontológicos e místicos da serenidade, vivendo, como “a rosa, sem porquê”. Pois, então, vai-se abolindo o sentido transitivo e passivo e aparecendo o sentido criativo de deixar ser.

No deixar ser radical de Deus, homem e mundo, a perguntaquem é que deixa ser quem?” é uma pergunta sem sentido, uma vez que deixar ser inclui em si deixar de agir, pois deixar ser já não é atividade de um sujeito sobre um objeto a partir do interesse de um poder. Tudo, portanto, se deixa ser, mas não há nada que pratique o deixar ser. Na raiz mística da experiência, é sempre o nada que reina em todo deixar ser. E no nada, não somente se ultrapassa e supera toda negação pela negação, como, sobretudo, não há possibilidade alguma, nem de afirmar, nem de negar, nem de negar a negação. Reina radical desprendimento, puro despojamento, total disponibilidade. Ser livre de, a independência, e ser livre para, a criação, mergulham ambas e desaparecem na imensidão de uma tranquilidade sem vontade, nem desejo de nada, sem imagem nem representação de coisa alguma. Eckhart diz, então, que vigora, completa e perfeita, “a limpidez da serenidade”, die Ledigkeit der Gelassenheit.

Na serenidade, toda experiência caminha sempre para inscrever-se nas peripécias e vicissitudes das ações e reações de nosso comportamento, tanto conosco mesmos, como com tudo o mais. Nessa caminhada, a serenidade atravessa três níveis, integrados, de busca de si mesma em si mesma: o nível ôntico, o nível ontológico e o nível místico. Todavia, não se trata de três níveis separados que se excluíssem e distinguissem um do outro. São três níveis que se incluem e se identificam, em todo fazer e/ou deixar de fazer dos homens. Compreender e viver essa integração é compreender e viver a mística de Eckhart em Eckhart.

1o nível: O nível ôntico é o desprendimento com total desapego. Trata-se do despojamento da pobreza. Eckhart forja a palavra “abegescheidenheit” que, no alemão moderno, se diz Abgeschiedenheit. E uma palavra derivada, por prefixação e sufixação, do verbo scheiden, cindir, dividir, separar. O prefixo ab designa clivagem, tanto no sentido de desfazer-se de alguma coisa, abetuon, como no sentido de afastar-se, desviar-se, abekere. O sufixo, heit, designa a condição, o estado e a atitude. No uso transitivo, o verbo, abscheiden, significa isolar, e, no uso intransitivo, ir-se embora, morrer. No alemão de hoje, o uso intransitivo significa, quase sempre, morrer. Assim, o poeta Georg Trakl dedicou um famoso poema a um amigo morto com o título de: Gesang des Abgeschiedenen – Canto do falecido. Eckhart consagrou todo um tratado a este nível ôntico da experiência mística de serenidade, cujo título é precisamente: Abgeschiedenheit, serenidade, desapego. Num sermão, intitulado In diebus suis placuit Deo et inventus est iustus (Ecl 44,16), prega Eckhart: “Se o espírito conhecesse a pura serenidade do desprendimento, já não se voltaria para nenhuma coisa, mas inclinar-se-ia e haveria de permanecer no completo desapego da serenidade”.

Tudo que somos em nossos afazeres é puro vir a ser vida em realizações. O desapego nos é dado na ordem e como ordem de todo relacionamento conosco e com os outros. Tal desprendimento de todas as coisas, porém, nem rejeita, nem nega, mas acolhe o ser de Deus em toda criação. Por isso o desprender-se não destrói nada, não rejeita coisa alguma, vem do nada e vai para o nada.

Muito bem! Todavia, como é para se entender concretamente tanto despojamento?

Um poeta japonês do século XVII (1644-1694), Tetsuo Bashô, poderá nos valer. Ele compôs um famoso haiku a partir de uma experiência ôntica da serenidade em quinze sílabas de um verso que o velho Suzuki trouxe para o Ocidente. O haiku fala de Nazuna. Nazuna é uma pequenina flor silvestre que se encontra por toda parte no campo. Diz o verso, na citação de Suzuki:

Yoku mireba Nazuna hana saku Kakine kana

Suzuki traduziu:

“Quando olho atentamente, / Vejo florir a nazuna, / Ao pé da sebe” (Zen-budismo e psicanálise, Cultrix, 1960, p. 9).

A partir da mística de Eckhart, talvez se pudesse dizer num português tosco e desajeitado:

“No desapego do desprendimento, sou e não sou nazuna ao pé da sebe”. [14]

Bashô é poeta e, como todo poeta, é místico dos seres da natureza. E tão desprovido de apego que se sente em uníssono com o ser da natureza e de tudo que é natural. Esta identificação da natureza com a natureza se avivou em Bashô quando descobriu uma pequenina flor, brilhando, sem vontade nem desejo de nada, ao pé de uma velha sebe. O poeta sente o profundo mistério de a vida ser vida, no esplendor insignificante de uma flor silvestre. É um exemplo da experiência de desapego e desprendimento da serenidade em que vive a mística de Eckhart.

No século XVII, alguém, na Silésia, fez a mesma experiência mística de Bashô. João Scheffler, doctor philosophiae et medicinae, médico de profissão e místico de vocação, vivia na Silésia uma geração antes de Leibniz (1624-1677). Estudioso de Mestre Eckhart, escreveu uma obra de poesia mística, publicada em 1657, com o título: Der Cherubinische Wandersmann. Sinnliche Beschreibung der vier letzten Dinge: O peregrino querubínico. Descrição sensível dos quatro novíssimos, e publicou, com o pseudônimo de Angelus Silesius, o Mensageiro da Silésia. Os quatro novíssimos são, na experiência cristã: morte, juízo, inferno, paraíso. O número 289 dos poemas traz o título, Ohne Warum, “Sem porquê”. O verso diz:

Die Ros’ ist ohn’ Wamm. / Sie blühet, weil sie blühet. / Sie acht’ nicht ihrer selbst. / Fragt nicht, ob man sie siehet!

“A rosa é sem porquê. / Floresce ao florescer. / Não olha p’ra seu buquê. / Nem pergunta se alguém a vê!”

O desapego do desprendimento, no entanto, não aparece por acaso, nem se dá, de quando em vez, nas peripécias de nossa experiência na e com a vida. E o vigor místico de todo ser. Por isso, ao despojar-se e para poder despojar-se, a serenidade remete para a fonte, donde ela mesma já vem, remete para o ontológico no próprio seio ôntico dos seres. E o segundo nível… [Carneiro Leão, Apresentação dos “Sermões Alemães de Mestre Eckhart 2”]