Filosofia – Pensadores e Obras

Croce

Benedetto Croce
A. A filosofia italiana e a posição de Croce.

O panorama global da filosofia italiana em fins do Século XIX não difere essencialmente do panorama que nos oferece a filosofia da mesma época nos outros países europeus. O positivismo, introduzido por Carlo Cattaneo (1801-1869), Giuseppe Ferrari (1812-1876) e Enrico Morselli (1852-1920), encontrou em Roberto Ardigo (1828-1920) um porta-voz tão influente que se converteu no movimento dominante da vida intelectual italiana. Mas a seu lado afirmava-se igualmente o idealismo, que Augusto Vera (1813-1885) e principalmente Bertrando Spaventa (1817-1883) aproximaram da filosofia hegeliana e da corrente historicista do Renascimento italiano. Havia também na Itália um número assaz considerável de neokantianos. Entre eles avultava, sobretudo, Alfonso Testa (1784-1860), que teve como sucessor, durante a geração de Croce, Alessandro Chiapelli (1857-1932). Vários filósofos eram partidários, à sua maneira, do idealismo no sentido lato, como, por exemplo, Bernardino Varisco (1850-1933). Contudo, em fins do século XIX predomina claramente o positivismo, não só entre os filósofos, como, de modo geral, no seio das classes cultas italianas.

Benedetto Croce foi quem primeiro modificou este ambiente espiritual. Como discípulo de Spaventa entrou em contato com a filosofia hegeliana, e embora a tenha acolhido em suas teses fundamentais, elaborou-a dando-lhe uma forma pessoal. Contudo, por outro lado, Croce deixou-se influenciar fortemente pelo positivismo e até pelo pragmatismo. Quando jovem, e sob a direção de A. Labriola (1843-1903), engolfou-se no estudo das doutrinas marxistas, bem como no do historicismo de Giovanni Battista Vico (1668-1744), dignificando-o novamente após longo olvido, sem descuidar correntes análogas da filosofia alemã de seu tempo. Mas Croce reuniu, em seguida, todas estas influências diversas numa síntese poderosa, apresentada com persuasiva eloquência.

B. Vida, obra, características.

Benedetto Croce (1866-1952) nasceu em Pescasseroli (Abruzos) e passou toda sua vida na Itália. Foi duas vezes ministro da educação, a última vez no “governo de libertação”, pois, ao contrário de seu amigo, o outro eminente idealista italiano Giovanni Gentile (1875-1944), que se pôs ao serviço do fascismo e foi fuzilado pelos patriotas, Croce manteve-se sempre fiel a suas convicções liberais e democráticas. A data mais importante de sua vida é o ano 1903, em que apareceu o primeiro caderno de sua revista La Critica, a maior parte dos artigos da qual são de sua autoria. Esta revista exerceu influência decisiva na vida intelectual italiana. Ocupa-se ela não só de filosofia, como também de história geral, de história da arte, de ciência literária e até de questões políticas; de fato, Croce é um espírito extraordinariamente universal e enriqueceu todos estes domínios com inúmeras ideias originais. Talvez até se possa asseverar, e não sem razão, que Croce é antes um historiador da arte e um crítico literário do que um filósofo. Não obstante, sua grande tetralogia, publicada entre 1902 e 1917 sob o título Filosofia ãello Spirito e que compreende uma estética, uma lógica, uma filosofia da prática e uma filosofia da história, exerceu grande influência não só sobre toda a filosofia italiana, como também sobre a filosofia europeia. Prova disso é, por exemplo, o fato de a Estética ter sido traduzida em inglês, francês, alemão, espanhol, húngaro e checo, e a Filosofia da prática contar até uma versão japonesa. O Breviário ãi estética é uma das obras mais famosas sobre estética.

Croce escreve num estilo muito claro, mas difuso. Sem dúvida, preocupa-se muito com a expressão literária, e tem-se a impressão de, em consequência disso, ficar um tanto sacrificado o rigor científico exigido numa obra genuinamente filosófica. Assim, por exemplo, as definições de Croce, comparadas com as dos neokantianos alemães, são geralmente imprecisas, as argumentações são frequentemente obscuras e por vezes até substituídas por simples asserções acompanhadas de violentas invectivas contra os adversários. À parte estas restrições, importa confessar que na obra de Croce se discute toda uma série de problemas e se encontram muitas posições originais e interessantes. Por debaixo da forma literária rebuscada e da imprecisão das fórmulas, alberga-se um pensamento metódico e coerente, que nos oferece uma síntese do idealismo hegeliano, do historicismo e do positivismo. Sem dúvida, Croce não ocupa já, nem mesmo na Itália, o lugar preeminente de outrora, mas isso não obsta a que sua obra continue sendo uma obra clássica do idealismo do século XX.

C. As teses capitais.

A base lógica do sistema de Croce é certo conceptualismo e uma teoria da síntese dialética a priori.

Segundo este conceptualismo (que, diga-se de passagem, Croce não designa com este nome) há duas e só duas espécies de conhecimento: o conhecimento intuitivo ou estético e o conhecimento conceptual ou lógico. O primeiro é sensível e tem por objeto o singular; o segundo é racional e refere-se aos universais. Valendo-se de reflexões notáveis, Croce critica e rejeita o nominalismo dos positivistas, que pretendem reduzir todo conhecimento à sensação. Contudo, segundo ele, os conceitos universais não podem ser senão conceitos de relação: o entendimento não nos faz conhecer os conteúdos das coisas, mas capta exclusivamente relações entre as coisas, as quais, por seu turno, são intuições sensíveis. Por outras palavras: não há (exatamente como em Kant) intuição intelectual, e ao entendimento compete exclusivamente a função de ligar entre si as intuições sensíveis; não existe no mundo nenhum conteúdo inteligível. Temos, portanto, em Croce um conceptualismo muito radical.

A dialética ensina, em primeiro lugar, que não existe nada de fixo nem de imutável no mundo, sendo este antes uma eterna corrente de acontecimentos. Em segundo lugar, professa que este devir é levado a efeito não pela síntese dos contrários (como em Hegel), mas pela síntese das diferenças, conservando estas sua peculiaridade na síntese. Em terceiro lugar, o devir (svolgimento) não é linear, mas circular, visto cada condição ser, por sua vez, condicionada. Finalmente, o devir cósmico não é senão o aspecto multiforme de uma só realidade, a saber: do espírito. Estas concepções fundamentais correspondem manifestamente à doutrina de Hegel, a qual sofreu apenas modificações de pormenor.

Importa distinguir no espírito diversas atividades. É fundamental a distinção entre sua atividade teórica e prática, cada uma das quais se diferencia, por seu turno, consoante seu objeto é individual ou universal. Podemos assim distinguir na atividade teórica uma atividade estética, orientada para o individual, e uma atividade lógica, referida ao universal, e na atividade prática, por sua vez, uma atividade econômica com fins individuais e uma atividade moral que se refere ao universal. De maneira análoga, importa dividir a filosofia, ou seja a ciência da realidade única, o espírito, segundo as quatro maneiras como este se manifesta.

D. A síntese estética.

A estética é a ciência da intuição sensível. Como tal, condiciona a lógica, sem ser, por sua vez, diretamente condicionada por esta, visto que não existe conceito sem intuição, embora existam intuições sem conceitos. Característica da intuição estética é a sua inseparabilidade da expressão: tão logo temos uma intuição, surge imediatamente uma expressão. Pelo que, não existe diferença essencial entre a atividade estética do artista e a do nâo-artista. Todavia, Croce parece aceitar, no Breviário de estética, uma certa distinção, ao estabelecer a tese de a arte constituir uma dupla síntese a priori: primeiramente, uma síntese das imagens intuitivas — portanto, não uma simples acumulação de imagens — e, em seguida, uma síntese da imagem e da sensação. A arte é uma intuição lírica, isto é, sintética e, neste sentido, orgânica.

A estética de Croce, que constitui com a sua filosofia da história a parte mais original de sua obra, contém grande número de observações interessantes e de teses atrevidas. Não podemos entrar aqui nos pormenores e temos de nos cingir a indicar que para Croce a arte não é um fato físico (porque a arte é uma realidade, ao passo que os fatos físicos são puras construções do espírito), como nem uma atividade prática (enquanto tal), e que é de índole totalmente alógica. A arte é um todo ou, melhor dito, uma síntese múltipla a priori, de conteúdo e de forma, de intuição e de expressão, de expressão e de beleza. Constitui uma unidade perfeita e a distinção entre artes particulares e gêneros artísticos e literários é totalmente arbitrária.

E. A síntese lógica.

Na lógica tem lugar uma síntese de ordem superior. No processamento lógico o conceito identifica-se, segundo Croce (como, em geral, segundo os idealistas), com o juízo, portanto, com uma síntese de sujeito e predicado. Mas, como o modo de expressão não o deixa sempre transparecer, a lógica formal (ou, melhor, “formalista”) que desde Aristóteles até à logística estava vinculada ao modo de expressão, deve ser rejeitada. Os juízos, desembaraçados desta forma, podem ser divididos em duas espécies: os juízos definidores, nos quais o sujeito e o predicado são conceitos universais, e os juízos perceptivos (os juízos históricos), nos quais um predicado universal é referido a um indivíduo. Só este último juízo é um juízo propriamente dito; mas, se olharmos mais de perto, vemos que nem mesmo no juízo definidor todos os seus elementos são universais, porque, sendo este juízo sempre condicionado por uma investigação ou interrogação histórica, encontra-se ligado ao concreto. Por isso, prova-se, por esta forma, que o juízo é, por essência, uma síntese a priori lógica do universal e do individual, do conceito e da intuição. Não seria possível explicar esta síntese, a não ser que se admita que os dois elementos que a compõem não são mais do que duas manifestações, diferentes mas não contraditórias, de um só espírito. Portanto, a estética e a lógica não são senão duas formas do desenvolvimento dialético de uma só realidade. B dado que toda a realidade, como em Hegel, é espiritual, segue-se que o real se identifica com o racional.

A lógica verifica as ciências da natureza. Daí resulta logicamente que os pretensos conceitos destas disciplinas não são mais do que pseudoconceitos, e de duas espécies. Por um lado, os pseudoconceitos empíricos (como o pseudoconceito do gato), que são meras aproximações “empíricas” arbitrárias; por outro lado, os pseudoconceitos abstratos (como o pseudoconceito do triângulo), que carecem de conteúdo. Como as ciências da natureza não podem por forma alguma obter verdadeira universalidade e estribam inteiramente (sem excluir a matemática) em convenções arbitrárias, infere-se que são pseudociências. A este respeito, Croce representa o mais radical positivismo e pragmatismo. Segundo ele, as ciências da natureza não se ordenam exclusivamente a fins práticos; contudo, enquanto atividade, pertencem ao domínio prático, e não ao teórico.

Tão pouco como as ciências da natureza, a metafísica e a religião não logram transmitir-nos conhecimentos reais. A metafísica é já impossível, pelo fato de não possuirmos intuições intelectuais (Kant) ; a religião, que outra coisa não é senão mito, reduz-se a uma falsa filosofia. Croce é talvez, entre todos os idealistas contemporâneos, aquele que dá mostras de menos compreensão frente à religião. A única ciência que, segundo ele, merece este nome é a filosofia do espírito.

Contudo, tanto as ciências da natureza quanto a metafísica e a religião revestem-se de certo interesse para ele, na medida em que são fenômenos reais, e, portanto, “momentos” do espírito, e devem ser investigadas como degraus pelos quais o espírito se eleva até à filosofia.

F. A síntese prática.

A atividade prática, que, juntamente com a atividade teórica, compete ao espírito, divide-se, por seu turno, numa atividade econômica e noutra moral. A primeira, que corresponde no domínio prático à intuição estética do domínio teórico, concentra-se no individual; seu campo é o útil, entre outras coisas a política e a economia, no sentido usual destas palavras. Dela se distingue a atividade moral, pelo fato de se endereçar ao universal, ao todo, ao espírito. Após penetrante crítica, rejeita Croce as doutrinas hedonistas, utilitaristas e outras afins, segundo as quais não haveria, em suma, atividade moral, transcorrendo a vida sem ela, feita apenas de atos isolados, sem ligação recíproca, e privada de qualquer sentido profundo. 3É preciso também, segundo Croce, descartar a ideia de recusar a atividade econômica ou de a reduzir à moral. Pelo contrário, a atividade econômica é independente da moral, e sem ela a moral seria impensável, do mesmo modo que a estética não depende da lógica, mas esta pressupõe a intuição sensível. Não se pode emitir juízo moral sobre o homem prático que atua tendo em vista o útil. Com efeito, de um ponto de vista diferente do moral é manifestamente impossível um juízo desta espécie, mas do ponto de vista moral o econômico não se opõe à moral, senão que, ao invés, lhe está antes ligado numa síntese superior. O homem moral, ou seja, aquele que atua tendo em vista um fim universal e espiritual, por forma alguma deixa de agir de maneira utilitária, por exemplo, de buscar a alegria que, aliás, coincide com a ação. A atividade moral e a econômica não são coisas antagônicas, mas tão-somente uma diferenciação a mais no domínio do espírito.

Não podemos deter-nos em examinar a riqueza de conteúdo da doutrina de Croce. Note-se, em todo caso, que Croce rejeita energicamente a moral do sentimento e considera a atividade moral como pertencente ao âmbito da vontade; que rejeita a distinção entre intenção e ato, entre meio e fim, e toda espécie de moral material, particularmente o “utilitarismo religioso” e a moral altruísta; e que se ocupa a fundo com a liberdade, para aceitar finalmente a tese hegeliana de que a vontade é, a um tempo, determinada e livre: determinada, porque sem condições determinantes nunca poderia agir; livre, porque aquilo que ela cria, seu ato, precisamente por se tratar de uma criação, ultrapassa todos as dados anteriores.

No que concerne à relação entre atividade prática e teórica, importa primeiramente assinalar que ambas reciprocamente se precedem e seguem. A ação prática exige um conhecimento prévio, mas, por sua vez, não pode haver conhecimento sem ação. De novo deparamos com a trajetória circular do espírito: a intuição transforma-se em juízo, este provoca a atividade prática, a qual, por seu turno, nos coloca ante uma nova matéria, porque condiciona uma nova intuição, etc. Observemos ainda que, não obstante a unidade fundamental das etapas que o espírito assim percorre, nada seria mais falso do que confundi-las, assim por exemplo julgar o artista, enquanto tal, do ponto de vista moral. No ato criador, todo poeta é moral, porque exerce uma função sagrada.

Esta última tese permite-nos ver claramente que tanto no sistema prático de Croce quanto em sua síntese teórica não resta lugar para a religião. Apesar disso, após ter negado a religião como forma específica do espírito e depois de ter condenado, à base das Provinciais de Pascal, “a moral jesuítica”, Croce apresenta-se-nos como defensor da moralidade religiosa, que ele contrapõe ao psitacismo e à superficialidade das diversas formas de moral laica. A doutrina moral católica é, segundo ele, tão rica que contém quase toda a verdadeira moral do espírito.

G. História e filosofia.

Importa distinguir, diz Croce, a história da crônica, que é história morta, ação prática. A verdadeira história é a história do tempo presente, que parte da estrutura espiritual da época e coincide com a criação e o devir do espírito. O juízo histórico é, enquanto tal, um juízo individual. Entretanto, embora se refira ao singular, não só contém predicados universais, como também seu objeto próprio é igualmente universal. Assim, por exemplo, o que interessa à história literária não é tanto Dante quanto a poesia. Por conseguinte, a história identifica-se com a filosofia e esta com a história, pois, como a filosofia representa uma obra concreta e histórica, não é possível separá-la do devir. Portanto, Croce afirma a total identidade de filosofia e história, as quais só por motivos didáticos se mantêm separadas, atribuindo-se à filosofia a investigação do método histórico. Na realidade, segundo Croce todo filósofo é, ao mesmo tempo, historiador, e todo historiador é filósofo, e do mesmo modo se pode asseverar que na filosofia de um homem se alberga a história, a vida inteira desse homem.

O homem individual, do mesmo modo que as diversas disciplinas: arte, filosofia, ciência em geral, são apenas “momentos” passageiros de uma realidade única que abarca todos os elementos diversos numa unidade: na unidade do espírito. Do exame precedente dos diversos domínios resulta, para Croce, que não existe outra realidade senão o espírito. O mundo é o espírito, no qual se unem sujeito e objeto, individual e universal, teoria e prática. Porque o espírito constitui a síntese a priori de todas as sínteses. Ele é o desenvolvimento (svolgimento) puro, infinito, eterno, que alcança e ultrapassa uma etapa após a outra. Esta infinidade constitui para nós um mistério, que consiste simplesmente na etapa, ainda não alcançada, do todo, o mistério do actus purus, do verdadeiro absoluto. Nele tudo se encerra, e todo ente não é senão sua manifestação, a qual é real na medida em que é um “momento” de seu eterno desenvolvimento. [Bochenski]