Filosofia – Pensadores e Obras

Brunschvicg

BRUNSCHVICG (Leon), filósofo francês e historiador da filosofia (Paris 1869 — Aix-les-Bains 1944). Professor na Sorbonne (1909), retomou a análise do conhecimento, inaugurada pela crítica kantiana, à luz do estudo aprofundado das ciências. Sua filosofia do juízo (A modalidade do juízo, 1897) valoriza a atividade infinitamente criadora do espírito nas matemáticas (As etapas da filosofia matemática, 1912); seu método de reflexão sobre a história da filosofia (Spi-noza e seus contemporâneos, 1894), que consiste em separar em cada autor o verdadeiro do falso, o joio do trigo, transgride por vezes a pura objetividade histórica. [Larousse]


Leon Brunschvicg

A. Antecedentes históricos e particularidades.

O idealismo francês do século XIX, cujo representante principal foi Charles Renouvier (1815-1903), kantiano original, conheceu ainda toda uma série de figuras notáveis, mas que, via de regra, publicaram pouco. Merece ser citado em primeiro lugar Octave Hamelin (1856-1907), autor de penetrantes estudos sobre vários grandes filósofos, mas de uma única obra sistemática, Essai sur les éléments principaux de la représentation, vinda a lume em 1907. À mesma tendência pertence Jules Lagneau (1851-1894), que teve sobretudo influência pessoal; seus escritos não apareceram em forma acessível senão em 1924-1925. Mencionemos ainda Domiotque Parodi (1870-1955) e Edouard Chartier (1868-1951), conhecido pelo pseudônimo de “alain”. Mas o idealista francês mais importante e o filósofo que, depois de Bergson, maior influência exerceu em França é Leon Brunschvicg (1869-1944). Sua primeira e mais importante obra sistemática, La modalité du jugement, apareceu em 1897. Seguiram-se-lhe a Introduction à la vie de l’Esprit em 1900, a monumental obra histórica Les étapes de la philosophie mathématique em 1912, e a não menos notável Le progres de la conscienoe ãans la philosophie occidentale em 1927. Brunschvicg publicou, outrossim, toda uma série de trabalhos até ao início da segunda guerra mundial; sua influência culminou entre os anos 1920 e 1939.

Brunschvicg é um idealista no duplo sentido da palavra. Por um lado, propõe-se continuar e completar Kant e Hegel, por outro lado utiliza Platão, Descartes, Spinoza e até mesmo Pascal, do qual aceita alguns pensamentos em seu sistema, interpretando-os no sentido do idealismo epistemológico. Ao mesmo tempo transparece nele uma forte influência positivista. No que se refere às ciências da natureza, professa um mate-matismo e um convencionalismo extremamente radicais, e vê na matemática a mais alta etapa alcançada pelo pensamento humano. Não resta dúvida de que encontramos nele as mesmas ideias acerca de uma síntese que vimos em Croce, com o qual ostenta também em comum um particular interesse pela história, embora sua erudição neste domínio não pareça ser tão vasta como a do idealista italiano. Em compensação, o estilo de Brunschvicg é muito mais preciso que o de Croce e as discussões que trava com os que pensam (je modo diferente mantêm-se sempre dentro dos limites da mais estrita cortesia, ao contrário do que sucede com Croce. De modo peculiar, professa em matéria moral e religiosa nobres opiniões que lhe granjearam o respeito de todos.

B. O idealismo.

Logo no início de sua obra principal, La modalité du jugement, estabelece Brunschvicg dogmaticamente a tese fundamental do idealismo epistemológico: “O conhecimento constitui um mundo que é para nós o mundo. Para além dele nada existe; uma coisa que estivesse para além (au dela) do conhecimento seria, por definição, o inacessível, o indeterminável; por outras palavras, para nós seria o mesmo que o nada”. Pelo que, a filosofia não pode ser senão uma crítica do pensamento, e tanto mais quanto só o pensamento é transparente ao pensamento. O objeto principal do pensamento não é a representação, mas sim a atividade do espírito, pelo que pode a filosofia ser definida como uma atividade intelectual que toma consciência de si mesma.

Como geralmente acontece, este idealismo une-se a um conceptualismo que, neste caso, significa que o juízo precede todas as outras atividades do espírito. O conceito, por simples que pareça ser, é já uma síntese de compreensão e de extensão. Pressupõe, portanto, um ato que reúna estes dois aspectos. Donde, podermos asseverar que conceber e julgar são uma e mesma coisa. O pensamento racional consiste, em última instância, no juízo, e por conseguinte o juízo representa o ato fundamental único do espírito. A este respeito, Brunschvicg discute em pormenor não só o intelectualismo realista de Platão e de Descartes, que procuravam basear a atividade sintética do espírito numa realidade transcendente, como também se defronta com Kant que não soube desligar essa atividade de sua subordinação à categoria de relação e, portanto, ao conceito. A verdadeira filosofia deve, segundo Brunschvicg, libertar-se de toda pressuposição do juízo.

O próprio julso consiste na afirmação de um ser como necessário ou como possível. Seu elemento essencial é o verbo, que, em referência ao conteúdo do juízo, se chama “cópula”. Portanto, as modalidades do verbo constituem o objeto fundamental da investigação filosófica.

C. A modalidade do juízo.

Considerando mais de perto esta modalidade, deparamos com duas formas, a forma de interioridade e a forma de exterioridade. A forma de interioridade consiste na imanência recíproca das ideias e é própria, especialmente, do juízo matemático, no qual o sujeito e o predicado carecem de significação, quando considerados separadamente um do outro. Ela é a unidade do espírito, que a si próprio dá sua lei. Mediante a forma de interioridade o juízo torna-se inteligível, acha-se essencialmente vinculado a ela. A forma de interioridade é própria dos juízos ideais e está à base da modalidade de necessidade. Mas por si só não basta e a par dela encontramos uma forma de exterioridade, porque o juízo deve possuir em sisi mesmo uma certa multiplicidade. A forma de exterioridade é condicionada pelo irracional com que o espírito se defronta. Contudo, este irracional não é o ser independente do espírito, nem uma projeção deste espírito para fora, mas simplesmente a limitação do espírito por sisi mesmo. Quando o espírito encontra este limite, no qual reside uma negação de sua atividade, experimenta como que uma comoção, a qual comumente se supõe provir de um ente alheio ao espírito. A forma de exterioridade é própria dos juízos de realidade. Existe pois no espírito uma dualidade, por um lado a forma de interioridade — pela qual se unem a inteligibilidade e a necessidade do juízo matemático — e, por outro lado, a forma de exterioridade, à qual pertencem a irracionalidade do insondável e a realidade do juízo de fato. Entre estas duas formas existe ainda, segundo Brunschvicg, uma forma mista que corresponde à possibilidade.

Sendo o espírito unidade, o pensamento humano perfaz-se no juízo da análise matemática, onde a forma de interioridade aparece em toda sua pureza. Este juízo é a priori. A ciência matemática é determinada por sua forma e não por seu objeto, do qual é completamente independente. Não existe intuição matemática, isto é, intelectual. Os outros juízos (o geométrico, o físico e o juízo de probabilidade) que são cada vez mais irracionais, formam, no entanto, um mundo diferente do mundo da percepção, a saber, o “mundo da ciência”, que não se deixa reduzir ao mundo da percepção. É teoricamente insolúvel a questão de saber qual destes dois mundos é o verdadeiro. Neste particular não logramos esquivar-nos a um dualismo. Outro tanto acontece com a vida prática, na qual as leis morais internas do espírito se contrapõem à atividade exterior e à dispersão dos indivíduos. Assim como há dois mundos, assim há também duas humanidades. Este dualismo é finalmente resolvido pela história do espírito, que tende à unidade e à interioridade.

D. As etapas da vida espiritual.

Em seus eruditos trabalhos sobre a história do espírito humano esboça Brunschvicg em largos traços um quadro da evolução deste. Podemos distinguir essencialmente duas épocas: a infância e a idade adulta. A primeira época é a da exterioridade, do “acusmático”, do homem da oral; a segunda, a do matemático, do homem da ciência racional. A ciência racional foi descoberta pelos pitagóricos, criadores das matemáticas, e por Sócrates, o mestre da reflexão. Infelizmente, com Aristóteles a vida do espírito retrocedeu à idade da infância, pelo que a Europa se manteve durante vinte séculos sob o signo acusmático. Foi Descartes quem redescobriu a via matemática e de novo devolveu à humanidade o gozo pleno de seu direito à verdade. Mas só pouco a pouco se conseguiu progredir no caminho por éle aberto. Os pensadores não souberam libertar-se imediatamente dos preconceitos realistas, como, por exemplo, o da dependência do espírito relativamente a um mundo exterior. E o romantismo ameaçou reconduzir o homem à Idade Média. Mas, finalmente, a ciência ajudou o espírito a vencer: Einstein eliminou definitivamente a ideia das qualidades intuitivas. Há motivos para crer que, enquanto a vai definhando, a razão caminha para um porvir magnífico. Deve admitir-se que nada existe além da liberdade do espírito, ou seja, da pura consciência.

Esta evolução não deve ser compreendida no sentido de Hegel, como um desenvolvimento necessário da ideia. O espírito é livre e contingente. Sua marcha para a frente é comparável ao curso de um rio, rico em meandros. Mas apesar desta contingência, a história constitui um progresso constante da consciência até ao pleno desdobramento da razão, cujo protótipo é a ciência matemática. Na história temos, como outra característica do espírito, o fluente, o dinâmico, o que nunca está fixo. O próprio Brunschvicg sublinhou a semelhança dé sua doutrina, neste domínio, com a de Bergson.

E. A religião do espírito.

Ao contrário de Croce, Brunschvicg, que estudou a fundo Pascal, mostra vivo interesse pelas questões religiosas; todo seu pensamento, em última instância, desemboca numa filosofia da religião. Segundo ele, não é possível defender a religião no terreno do pensamento profano: ela deve construir-se a si própria. Infelizmente porém não existe apenas uma religião, senão muitas, que se digladiam no terreno propriamente religioso. Por outro lado, não pode o filósofo admitir uma dupla verdade, uma religiosa e outra científica^; a verdade religiosa deve ser a verdade pura e simples. Aliás, esta verdade já de há muito foi descoberta, é a religião do Verbo, da luz interior. Consiste ela na certeza de que Deus se encontra presente em nosso pensamento e em nosso amor. Mas este Deus não é um Deus transcendente, criador do mundo. Não é um objeto, nem um conceito, nem sequer um objeto do amor, capaz de ser contraposto a outro. É aquilo, mercê do qual todos vivemos da vida do espírito. Por outras palavras, Deus é o Verbo (a Palavra); podemos mesmo dizer: a cópula do juízo. Este conceito de Deus não só nos emancipa de doutrinas mitológicas, como também nos liberta, no sentido moral: não esperamos de Deus senão a compreensão plena e pura do divino. Do mesmo modo que Galileu na teoria, assim devemos nós, em moral, renunciar à primazia da terra. Mediante esta renúncia, o caráter da razão humana, seu desinteresse e humildade, manifestar-se-ão em plena luz e esta purificação nos conduzirá a um “Terceiro Testamento”. Ao mesmo tempo, a consciência libertar-se-á completamente de seu próprio passado, embora mantendo-lhe fidelidade e não se lhe mostrando ingrata. Assim como o novo Testamento é a consumação do Antigo, assim a religião do espírito — que deveria identificar-se com a investigação científica — é a consumação do Evangelho.

Como se vê, esta doutrina nada mais é do que a expressão de uma filosofia profundamente imanente e monista. Nada há fora da liberdade, do impulso criador do espírito, que se desdobra em formas cada vez mais elevadas, para alcançar finalmente a unidade perfeita da consciência. [Bochenski]