Blondel

BLONDEL (Maurice), filósofo francês (Dijon 1861 — Aix-en-Provence 1949). Ensinou na faculdade de Aix a partir de 1895. Sua filosofia da ação é, na verdade, uma religião da ação, que descobre na experiência da vontade atuante, um mundo “supra-fenomenal”, o da fé encarnada. Sua tese de doutorado: A ação, ensaio de uma crítica da vida e de uma ciência da prática (1893) inspira todo o resto de sua obra, da Ilusão idealista (1898) ao Espírito cristão e filosofia (1939). [Larousse]


Maurice Blondel, professor na Universidade de Aix-Marseille, publicou a sua primeira Ação em 1893, O pensamento em 1934, O Ser e os seres em 1935, a Nova ação em 1936-37. Chocou-se, a princípio, com uma oposição universitária e doutrinai. Censurava-se-lhe o catolicismo e os católicos, por sua vez, lhe verberavam o imanentismo, isto é, acusavam-no de não dar suficiente transcendência a Deus, de confundi-lo demasiado com o mundo. De fato, a própria ideia de Deus implica a sua transcendência absoluta, embora não deixe de ser também verdade que, para agir sobre o mundo, força é que Deus tenha algum ponto de contato com ele. No fundo tratava-se apenas de precisar e tornar claras algumas fórmulas. Foi o que se fez, e o trabalho foi realizado quer pelo próprio autor, quer pelos seus comentadores.

A filosofia de Maurice Blondel, como a de Bergson, é ainda e em primeiro lugar o repúdio de um pensamento excessivamente conceptual. O pensamento, afirma ele, não é uma operação lógica mas sim uma operação vivida cuja raiz está no movimento interior que a desencadeia e de onde lhe advém todo o seu valor. É também por isso que a ação se revela como o fundamento da e nos revela o que somos. A ação — lemos no fim da primeira Ação — “fundamenta a realidade de ordem ideal e moral; ela contém a presença real daquilo que o conhecimento pode apenas representar”.

Quanto ao pensamento, se o acompanharmos em sua natureza, sua gênese, seus resultados ou seu mecanismo não tardaremos a perceber — e percebe-se igualmente aonde isso nos leva — que ele se apresenta incompleto ao mesmo tempo que exige ser completado. Existe em primeiro lugar um pensamento “cósmico”, e por esta expressão devemos entender que se o universo pensa ou, pelo espetáculo que oferece, leva a pensar, também configura um plano pela sua marcha, pelas suas realizações sucessivas; há um pensamento “psíquico” que desempenha o mesmo papel no indivíduo orgânico; há um pensamento que se descobre e toma consciência de si, um pensamento pensante e que pensa a si mesmo. Ora, é aqui que se manifesta o mistério em todo o seu alcance trágico. Que somos nós? Qual é o segredo desse movimento que nos faz apreender as coisas, distinguir-nos delas, e nos impele a avançar por um caminho ao qual não podemos atribuir nenhuma meta, nenhuma finalidade última? Deixamo-nos enganar um momento por pesquisas insuficientes, senão ilusórias, separamos o sujeito do objeto e aplicamos todos os esforços a fixar-lhes a relação por meio de fórmulas falazes. Não advertíamos que, embora lográssemos êxito, teríamos podido desmontar assim o “mecanismo” do pensamento, mas que a essência, o fundo, a natureza do pensamento continuariam a ocultar-se como antes e que ele teria guardado o seu segredo.

Ora, que é que revela um exame do pensamento, não já superficial e puramente descritivo, mas aprofundado até a substância? Que não há na matéria, no corpo, nem nele próprio, nada que o explique, que o justifique ou o defina em sua origem e em seu fim. Está como que suspenso no ar e no entanto sabemos que, débil como é, ele não seria capaz de sustentar-se por si e, portanto, deve receber de outra parte aquilo que não pode dar a si mesmo. Não é o cérebro que o “segrega” e ele não tem anatomia, nem tampouco se engendra a si mesmo, como parece querer afirmar o idealismo contemporâneo, derradeira forma do nominalismo medieval. Será o sujeito, enfim, criador da sua natureza própria — relativo no seio de toda a relatividade — ou não terá, pelo contrário a necessidade de apegar-se a alguma coisa da qual receba, com a vida, o princípio e já a realidade do pensamento?

Prossigamos esta investigação que avança com lentidão e prudência, sem querer aventurar-se, e parece evitar toda ideia preconcebida. Se o homem não basta para explicar o todo do homem, já se deixa entrever aonde será preciso ir buscar a explicação. Mas o pensamento apresenta, desta vez em si e na sua ação, outra dificuldade e outra impossibilidade. É raciocinador e discursivo; deduz, procede por silogismos e, quer desenvolva, quer comprima o silogismo, podemos sempre reduzi-lo a ele. Tem, por outro lado, conhecimentos imediatos e instantâneos, evidências que se impõem, intuições que o iluminam de golpe e com tanta segurança como a mais rigorosa demonstração. A maneira por que se consegue definir, por exemplo, os casos de igualdade de triângulos não é a mesma pela qual se concebem a própria figura desses triângulos ou os axiomas donde partem as indagações que podemos efetuar a seu respeito. Existem, em suma, o espírito de fineza e o espírito de geometria, sem nada a ligá-los, e, entre esses dois mundos do pensamento, uma “falha” que não permite passar de um ao outro.

Mas, se nada se completa numa tal ordem, tudo nela exige ser completado; se há um problema “da dualidade persistente e da insanável inadequação entre o pensamento e o seu objeto ou no seio do próprio pensamento”, não é suprimindo um dos termos ou o outro que o resolveremos. Encontraremos no objeto de litígio alguma coisa que possa ao menos lançar-nos no caminho das soluções?

Se o nosso pensamento é tão fragmentário, inadequado, informe e incapaz de se bastar, não será porque existe acima dele, a condicioná-lo e a atraí-lo, um pensamento total, uno, perfeito, para o qual ele deve tender como para a sua fonte e o seu termo? “Se é verdade”, escreve Blondel, “que um determinismo encadeia as fases da espontaneidade intelectual… é mais verdade ainda… que a inteligibilidade da inteligência e a destinação do pensar implicam uma liberdade, uma responsabilidade, uma generosidade espiritual… que cumpre sejam levadas à perfeição… O conhecimento do nosso próprio pensamento e dos seus verdadeiros fins precede e domina implicitamente a consciência explícita dos objetos e dos fins parciais…” Que significa isto, senão que a nossa imperfeição é solicitada por uma perfeição soberana, que a nossa desordem será corrigida por uma ordem cujos lineamentos percebemos em nós, com a condição de que saibamos sair de nós mesmos, e que devemos aceitar “a todo custo”, sem consideração de lugar, de tempo ou de meios, o auxílio que se nos oferece?

É, pois, a Deus que encontramos no termo desta dialética conduzida com tanta prudência e tanto vagar, um Deus que não foi necessário nomear mas que já se acha delineado com singular precisão. Nem uma só vez no curso do seu livro confessou Maurice Blondel uma religião qualquer, e no entanto jamais esquecemos que ele é católico. Apesar disso, a sua doutrina nunca lançou mão do que devia à e a demonstração se desenrolou sem a intervenção de outros argumentos que não os da simples razão. Esta reserva não impediu Blondel de dar testemunho da sua e de servi-la, se a exprimir, com todo o seu zelo e toda a sua penetração.

A consideração do ser conduz a um resultado semelhante. Assim como o pensamento implica um Pensamento, um pensamento do pensamento, também o estudo do ser e dos seres, da noção e da realidade do ser, estabelece a existência de um Ser absoluto e primeiro do qual deriva todo ser e em que se concentra essencialmente o ser. E já podemos notar nesse trabalho um passo inicial muito significativo. Não apreendemos esse ser exteriormente, por uma simples operação lógica; descobrimo-lo ao nos descobrir nele e ao descobri-lo em nós, isto é, mais uma vez pela ação e, se assim podemos expressar-nos, vivendo-o. Aliás, acrescenta o filósofo, cumpre evitar um duplo erro que consiste em “imaginar… quer que tenhamos sido primitivamente colocados pela reflexão fora do ser para nele penetrar em seguida por um golpe de força ou de habilidade do pensamento, quer que nos seja possível fazer desvanecer-se como uma ilusão ingênua a nossa certeza espontânea do ser…”.

É exatamente neste ponto que peca uma dialética ou uma sofistica de nossos dias, a de Sartre, que pretende mostrar a inanidade do ser ou tirar o ser do nada. Acontece, porém, que Blondel já tentara com antecedência uma refutação, da qual tornaremos ainda a falar.

Em O Ser e os seres passa ele da noção e da realidade acessível do ser à estrutura dos seres e, tendo concluído pela existência do ser absoluto, examina o que podemos saber e exprimir a seu respeito. “O que açode ao espírito quando o estudamos ou procuramos exprimir-lhe a razão última é que nós possuímos efetivamente o ser e, com ele, a necessidade de ser, e em terceiro lugar a necessidade de conhecer, de conhecer para ser, visto que o conhecer é o descobrimento do ser. E por este ser, enfim, é mister entender sempre não uma abstração, mas uma substância concreta.”

Este concreto a que retornamos era já uma exigência bergsoniana. Aqui ela se consubstancia ainda mais, parece-nos mais precisa e assenta sobre bases mais sólidas. É que Blondel não cogita de introduzir uma novidade radical, e por isso não repudia a contribuição do passado. Revivifica esse pensamento conceptual que permanece, no fundo, a forma inevitável do pensamento, do mesmo modo que opõe ao fenomenismo — sob a forma fenomenológica, como adiante veremos — uma ontologia que restabelece a essência, vendo nela não apenas uma necessidade lógica mas um princípio animador.

Retendo, pois, o que existe de constante na filosofia, isto é, a sua própria forma, esta filosofia torna a mergulhá-la na vida, prende-a ao abstrato, e mereceria assim esse nome demasiado em voga de existencialismo, se entendermos a palavra no sentido de filosofia vivida que acabou por assumir. Mas vamos ver que ela é também o contrário do existencialismo. [Truc]