aítion (ou aitía): culpabilidade, responsabilidade, causa
1. Visto que a metafísica é definida como um estudo das causas últimas, Aristóteles começa o seu trabalho sobre este assunto por uma revisão pormenorizada da procura das causas feita pelos seus predecessores (Metafísica 983a-993a; recapitulado 988 a-b). Platão não tem nenhum tratamento formal da causalidade como tal, embora haja uma crítica da procura pré-socrática de uma causa motora no Fédon 95d-99d; Timeu 46c-47e, e Leis 892c, onde os primeiros físicos são censurados por confundirem acessórios (synaitia), que operam por necessidade (ananke) e sem desígnio inteligente (techne), com a única causa genuína do movimento, a psyche (confrontar Aristóteles De An. 414a e symbebekos). Mas no Phil. 26d-27c reduz a realidade a um elemento formal (ver peras), eficiente (ver demiourgos) e «material» (ver apeiron).
2. A própria doutrina aristotélica das quatro causas — formal (eidos), material (hyle; ver também hypokeimenon), eficiente (kinoun) e final (telos) — pode encontrar-se na Physica II, 194b-195a e Metafísica 1013a-1014a. Num desenvolvimento peculiar da doutrina é a identificação da causa material com as premissas de um silogismo que necessariamente «causam» a conclusão (cf. Anal. post. II, 94a, Physica II, 195a). Há uma outra divisão dos tipos de causalidades orientada mais eticamente na Ethica Nichomacos 1112a. Os filósofos posteriores fizeram alguns acrescentos à análise aristotélica: o logos de Fílon é a causa instrumental da criação (De cher. 35, 126-127), e Sêneca (Ep. 65, 8) dá uma lista de cinco. Para causas acidentais, ver tyche. [FEPeters]
A tematização do plano responsável (αἰτία [aitia]) pelo sentido das situações humanas (πράξεις [praxeis]) em analogia à pergunta sobre o sentido dos fenômenos físicos
Podemos encontrar uma caracterização desta investigação no Fédon. Procura-se, aí, pôr a descoberto a «causa fundamentalmente responsável» (αἰτία) por cada coisa, tanto no plano físico como no plano prático [Cf. R. D. Archer-Hind, The Phaedo of Plato, Macmillan, 1984 (repr. Amo Press, 1973), p. 99, D. Ross, Plato’s Theory of Ideas, Oxford, 1951, pp. 29-30, R. Hackforth, Plato’s Phaedo, Cambridge, 1955, pp. 143-146, R. S. Bluck, Plato’s Phaedo, London, 1955, pp. 111-113, e W. K. C. Guthri, A History ofGreek Philosophy, vol. VI, Cambridge, 1975, pp. 350-352, para uma tradução do termo αἰτία por «causa». Cf. G. Vlastos, «Reasons and Causes in the Phaedo», in Plato I, Nova Iorque, 1971, pp. 132-167, onde Vlastos procura derivar o sentido de άιτία a partir da carga significativa que Aristóteles lhe imputa: «Aristotle’s so-called four ‘causes’ are his ‘four becauses’» (p. 135). E. L. Burge, «The Ideas as Aitiai in the Phaedo», Phron., 16,1,1971, pp. 1-14, e D. Gallop, Plato, «Phaedo», Oxford, 1975, que ora traduzem por razão ora por explicação. Cf. também Shigeru Yonezawa, «Are the Forms αἰτίαι in the Phaedo», Hermes, 119,1991, pp. 37-42, que procura reconduzir o sentido da αἰτία à noção de forma. Christopher Rowe, «Explanation in Phaedo 99c6-102a8», OSiAP, 11, 1993, pp. 49-69, que deixa por traduzir o termo aitia (p. 49).]. Em vista tem-se o apuramento do sentido que articula as mais diversas situações pelas quais o humano pode passar (πρᾶξις). Isto é, um saber daquilo através do qual qualquer coisa passa a ser, deixa de ser ou é [Féd., 96a9]. Este plano fundador do sentido dos horizontes físico e prático dá uma resposta à pergunta «através do que é que?» (διὰ τί) [Cf. Donald L. Ross, «The Deuteros Plous, Simmias’ Speech, and Socrates Answer to Cebes in Plato’s Phaedo», Hermes, 110,1982, pp. 19-25: a identificação das «physical aitiai» e o respectivo «desappointment» (pp. 22-23).] qualquer coisa vem ser, se mantém numa subsistência sua e deixa de ser? É um plano que se constitui na diferença relativamente ao plano em que se encontram as coisas.
Há um princípio organizador de todas as coisas e responsável por todas elas: um plano de compreensão e sentido [Féd., 97c1. Cf. Filebo, 28e-30e.]. Se for o sentido compreensivo (νοῦς [noûs]) o sentido que articula todas as coisas, é ele que as organiza e estabelece, por forma a que cada uma delas seja da melhor maneira possível [Féd., 97c4. Cf. Féd., 97e2, 97e4, 98a5, 98a7, 98b2 e 98b6.]. Para se descobrir a causa responsável por cada coisa, tem de se descobrir o que é o melhor para cada coisa [Féd., 97c8], isto é, qual é a melhor forma de ser, qual a melhor forma de qualquer coisa ser afetada ou de fazer algo [Ibid]. O que convém ter em vista (σκοπεῖv [skopein]), por um lado, é o mais excelente e o melhor de tudo [Féd., 97c6-d1] e, por outro, saber daquilo que é o pior, porquanto há uma mesma articulação do sentido que permite ver os dois extremos que unifica.
Explicar qualquer coisa significa, por conseguinte, explicitar a sua causa responsável e a sua necessidade [Féd., 97e1], dizendo o que é melhor e por que é melhor para ela que seja da maneira que é [Féd., 97e1-4]. Só preenchendo esses requisitos se chega a um ponto arquetípico que dá por terminado o inquérito aberto e em que já não se precisa de continuar a formular mais nenhuma espécie de interrogação sobre a causa responsável [Féd., 98a1] por um determinado acontecimento. A possibilidade de dizer o que é «o melhor para cada coisa» e, assim, de «explicitar o bem» depende do sucesso da operação de distinção do plano das coisas relativamente ao seu plano fundacional [Anaxágoras, porém, não fez nenhum uso do espírito nem procurou imputar responsabilidade a certos fundamentos para a ordenação estrutural das coisas, responsabilizando antes o ar, o éter, a água e outras muitas coisas absurdas (Féd., 98b8-c2). Anaxágoras não conseguiu explicar nada porque, dizendo, primeiro, que essas coisas são ordenadas pelo espírito, imputou-lhes, depois, um outro tipo de causa responsável, não dizendo por que é melhor que as coisas sejam assim tal como são (Féd., 98a8). Não faz uso de nenhum espírito nem responsabiliza nenhumas causas como responsáveis para o organizar das coisas (Féd., 98c9). Cf. Charlotte. L. Stough, «Forms and Explanation in the Phaedo», Phron., 1-30, xxi, 1976, que imputa um mesmo estatuto de ininteligibilidade ao plano eidético como ao plano causal físico (pp. 28-30).]. Ou seja, não se consegue explicar uma coisa através de outra coisa. E necessário ter em vista o aspecto essencial da causa responsável (εἶδος ἀιτίας [eidos aitias]) por cada coisa [J. T. Bedu-Addo: ο εἶδος ἀιτίας é constituído «by reasoning of the cause» [ἀιτίας λογισμός (cf. Ménon, 98c)] e é contrastado com um desocultamento de uma situação meramente opinativo (ἀληθὴςJ δόξα) (JHS, 104, 1984).]
O mesmo se passa quando, ao pretender tematizar a causa responsável (αἰτία) do horizonte da situação (πρᾶξις [praxis]) humana, se procurasse ter em vista o plano de sentido que dá luz a toda e qualquer situação por que alguém passa, tentando fazer uso do sentido compreensivo (νοῦς) [Dizendo que Sócrates passa por tudo aquilo por quanto passa fazendo uso do νοῦς (Féd., 98c3).], e fizesse, depois, uma mera descrição objectiva daquilo que está a acontecer a alguém, como se essa mera descrição por mais pormenorizada que fosse levasse à determinação do que situa alguém numa determinada situação (πρᾶξις). Desta forma, dá-se uma confusão de planos. Ao procurar explicitar uma determinada situação, descreve-se o seu resultado como se por esse escrutínio se tivesse acesso ao plano em que eclodem as causas responsáveis (αἰτίαι) de cada situação por que se passa [Féd., 98c5].
Se esta descrição meramente objetiva explicasse a razão fundamental pela qual se dá um determinado fato, também se poderia compreender a situação de Sócrates pela descrição pormenorizada daquilo que ele faz. Ou seja, seria como se o fato de ele estar aqui e agora sentado [Féd., 98c6], a falar com os seus amigos, encontrasse a sua explicação na mera descrição objetiva do fato que está a acontecer. Se assim for, para pôr a descoberto o através do quê e porquê (διὰ τί) de um determinado estado de coisas ou de uma determinada situação, bastava apurar que o seu corpo é composto de ossos e de tendões, que, por um lado, os ossos são rijos e há articulações entre eles a mantê-los afastados uns dos outros, que, por outro lado, os tendões se encontram aptos à contração e à descontração, que os ossos estão cobertos a toda à volta [Cf. LSJ: «cover all over» para περιαμπέχω.] por carne e por pele que os mantêm juntos; que, sendo os ossos elevados nas suas articulações, os tendões, ao contraírem-se e ao relaxarem-se, fazem que Sócrates possa agora dobrar as suas pernas, e, por esta razão, está ali sentado com o corpo dobrado [Féd., 98d5]. A causa responsável por Sócrates estar sentado aqui é, em última análise, dada pela capacidade anatômica que o seu corpo detém para se poder dobrar e, assim, sentar-se. Sócrates está aqui e agora sentado porque é da disposição natural (φύσις [physis]) do seu corpo pequeno (σῶμα [soma]) poder sentar-se.
O mesmo se passa quando se pretende enunciar as causas responsáveis que tornam compreensível a situação em que Sócrates se encontra, de estar à conversa com os seus amigos, chamando à responsabilidade as suas vozes, o ar, as percepções acústicas e miríades de outras coisas deste gênero, sem mencionar as verdadeiras causas [Féd., 98e1]. «Conversar» assim explicitado é compreendido como uma situação que tem na sua base apenas os fenômenos físicos que estão a ter lugar e permitem que se desenrole uma conversa. Como se, em última análise, uma conversa fosse a soma de percepções acústicas com os sons emitidos pela atmosfera.
Ao circunscrevermos a explicação de uma determinada situação à descrição pormenorizada do que é fenomenalmente visível, mesmo percebendo que estes fenômenos são possibilidades consignadas pelo horizonte do corpo humano, nós percebemos a forma circunstancial, artificial e absurda de darmos sentido ao que está a acontecer. A estratégia metodológica de abafamento do plano de sentido conduz paradoxalmente à sua notificação. A provocação da presentificação do plano etiológico dá-se pelo esforço constante de reconduzir tudo o que se dá a um plano coisal. Só assim se criam as condições de possibilidade de lançar o olhar para a dimensão em que verdadeiramente se atinge a causa fundamentalmente responsável por uma determinada situação que se verifica de fato.
O fundamento para uma determinada situação é a compreensão do sentido que a articula. Um fenômeno de sentido não pode ser nunca reduzido a uma forma de objetivificação. Não pode ser reificado. Essa compreensão é dada por um acesso noético, por uma compreensão de sentido compreensivo (νοῦς), e não por um recenseamento que faz o escrutínio de tudo o que de fato está já constituído.
A causa fundamental, responsável pelo sentido de tudo quanto se verifica no plano da situação humana (πρᾶξις), é constituída num plano completamente outro em relação àquele em que os fenômenos se encontram objetivamente «aí». O fato de Sócrates estar sentado ali a conversar com os seus amigos, ali na prisão, à espera da hora da sua morte, tem um outro sentido que é irrecuperável pela simples enunciação desses fatos: «Sócrates está ali naquele momento sentado à conversa com os seus amigos.» O sentido que pode dar inteligibilidade a esse fato só pode ser dado pela abertura a uma dimensão diferente da meramente objetiva a partir da qual descrevemos o que vemos. Essa outra dimensão é tanto mais fugaz e irrecuperável, quanto mais persistimos em tocar-lhe e agarrá-la com descrições pormenorizadas daquilo que se está a ver, mesmo quando supostamente localizamos a procura do «sentido» no «lado oculto das coisas», como quando referimos «ossos», «tendões», «articulações», «carne», «pele», «corpo», «estar dobrado», ou «vozes», «sons», «percepções acústicas», etc.
«Estar sentado num determinado lugar à conversa com amigos» pode ser a expressão de um fato que se dá com cada um de nós ao longo da nossa existência. Na praia, durante os meses de Verão; na sala de aula, durante o Inverno; em casa, à hora do jantar. Em cada um desses enunciados pode descrever-se objetivamente o mesmo. «Estar sentado num determinado lugar à conversa com amigos» corresponde a um sentido comum a todas as situações consideradas. O sentido autêntico de cada uma delas é, porém, completamente diferente de umas para as outras e a fortiori é-o quando se espera pela hora da morte.
Nenhuma descrição objetiva de um estado de fato pode, porém, fundamentar e articular uma determinada situação no horizonte especificamente humano (πρᾶξις). A causa responsável (αἰτία) tem de apontar para uma determinação de sentido, ou seja, uma determinação que não seja do mesmo tipo dos entes que procura explicar [Cf. Sofista, 242c: μῦθόν τινα διηγεῖσθαι, «contar uma certa história».]. A situação em que Sócrates se encontra resulta antes do fato de ter parecido melhor [Féd., 98e2] aos atenienses que ele fosse condenado. E se Sócrates não pensasse que era mais justo e mais belo [Féd., 99b2] submeter-se ao castigo que a cidade lhe infligiu em vez de fugir e de escapar [Féd., 99a.] não ficaria em Atenas para morrer [«Há já muito», diz ele, «que estes tendões e estes ossos estariam em Mégara ou na Beócia, levados também pela opinião do que é o melhor de tudo» (Féd., 99a2). τὸ ἄριστον καὶ τὸ βέλτιστον e aquilo por onde se passa o melhor possível pelas coisas e o fato de lhe ter parecido melhor. A possibilidade de uma verdadeira abertura para τὸ ἄριστον καὶ tò βέλτιστον pode por exemplo conduzir a situações que aparentemente são absurdas. De fato, fazia sentido que Sócrates tivesse levado a sua «carcaça» para Mégara ou para a Beócia e não que ficasse em Atenas à espera da morte. Esse fato só tem sentido na medida em que ο βέλτιστον eclode para além do prazer e do sofrimento tal como patologicamente se constituem, levando-nos a propender para fugir de Atenas porque a morte é sofrimento e perseguir Mégara porque a vida é prazer, etc. Mas nessa altura não teria havido nenhuma αἵρεσις τοῦ βέλτιστου nem nenhuma σκέψις do que é τὸ βέλτιστον καὶ τὸ χεῖρον, mas apenas uma afetação do que é a nossa φύσις.]. [CaeiroArete:68-72]