Esse é o problema para o arqueólogo. Ele nos conduz ao nosso ponto de partida: “Como o sujeito pensante ou, se preferirem, o homem enquanto sujeito e agente do pensamento entrou na filosofia? E por quê?” Ou seja, nos termos derivados de Nietzsche: como e por que o sujeito se tornou, sob o nome de “eu”, sujeito de agência? Ou o “eu”, sob o nome de “sujeito”, gerente de agency’. Tal síntese não era desejável, nem mesmo concebível, de um ponto de vista aristotélico. A se acreditar em uma crítica recente de Descombes, ela não teria (não tem) mais razão de ser hoje. Segundo F. Neuf, um dos primeiros a ter trabalhado como filósofo sobre as gramáticas actanciais e as gramáticas narrativas, a categoria de sujeito não poderia de fato “ser pensada a partir da agência, seja nas gramáticas [55] casuais ou nas gramáticas descritivas” [Cf. F. Nef, “Logique de la grammaire et grammaire du sujet. Le Complément de sujet de Vincent Descombes”, s.p. Agradeço a F. Nef por me ter passado esse importante trabalho antes da publicação. Numerosas questões abordadas aqui são tratadas de um outro ângulo em F. Nef, Qu’est-ce que la métaphysique?]. “Subjetivação e agência não se equivalem”, por duas razões pelo menos: “não se pode […] definir o sujeito a partir da agência”; o sujeito não pode ser identificado, sem mais, com o agente, pois “ele pode ser uma parte do agente (ou do paciente?)” (como é o caso em frases como: “sua timidez assusta o menino” ou “minha raiva me humilha”). A própria distinção descombiana entre “frase narrativa” (ou “proposição narrativa”) e “proposição atributiva” não é pertinente [Cf. V. Descombes, Le Complément de sujet…, p. 67]. O que é de fato uma frase narrativa? Alguns diriam: uma proposição atribuindo a ação. Mas a quem? A um sujeito? A um agente? F. Nef responde: “não há […] frases narrativas e frases atributivas”, como não há tampouco “triângulos euclidianos e triângulos não euclidianos”: há “duas gramáticas, narrativa e não narrativa, assim como há geometrias euclidianas e não euclidianas”. Como determinar “se uma frase atribui uma qualidade (ou o que quer que seja) ou relata uma ação”? “Não há, de um lado, sujeito de atribuição, no sentido aristotélico, e, de outro, sujeito de um relato, no sentido das gramáticas de Propp-Greimas”. V. Descombes projeta erroneamente a gramática narrativa na gramática de atribuição. A “tese central” que ele toma emprestada de Tesnière — “o sujeito é um complemento como os outros” – “não é verdadeiramente justificada”: “[…] ela é solidária a toda uma série de pressupostos […]: negação da existência de uma forma lógica, redução do vago a um fenômeno sintático (a elipse), natureza dupla [56] conexão predicativa, redução da maior parte dos problemas ontológicos a problemas gramaticais”.
Para Nef, “todos esses pressupostos decorrem do sufocamento do lógico e do metafísico sob o gramatical”. E insiste:
Para descartar a ontologia dos acontecimentos em proveito de uma ontologia da substância entendida como supósito da predicação, Descombes elimina a dimensão semântica em proveito apenas da sintaxe. Mas é a forma lógica que dá a sintaxe lógica, a sintaxe universal, que não se confunde com o conceito de gramática relativa a uma língua particular e que é apenas uma forma de sintaxe particular e superficial, como mostram Russell e Carnap.
Gramática ou lógica? Chega-se aqui a uma encruzilhada. Segundo Nef, “não há categoria gramatical da ação”; há, ao contrário, uma “forma lógica de frases de ação” que contém “uma quantificação sobre os acontecimentos e um operador de ação, análogo a um operador modal”. O ponto de vista correto sobre a ação deve, portanto, “combinar a quantificação sobre os acontecimentos e a estrutura modal da ação”.
Muito bem. Mas falta explicar como e por que o que não deveria ser é e foi. Como, em suma, a subjetividade (quer se trate, como se verá, da Subjecthood de H. Granger ou da Subjektität segundo Heidegger) e a agência ou a agentividade se entrelaçaram historialmente para dar o que é chamado de “teoria clássica do sujeito”. Como, para dizer de forma ainda mais sumária, “sujeito” e “agência” puderam se tornar sinônimos para produzir o sujeito-agente. O belo artigo de Étienne Balibar e Sandra Laugier sobre “Agency” no Vocabulaire européen des philosophies [VEP] descreveu em todos os seus detalhes a constituição da rede desse “termo polissêmico” traduzido ora por “ação”, [57] ora por “agente”, “agência”, “agir” [E. Balibar e S. Laugier, “Agency”, em VEP, pp. 26-32], ou mesmo, como em Ricoeur, por “potência de agir”, e distinguiu cuidadosamente a agency como princípio de ação e a agency como descentramento do sujeito, e, para concluir, os dois autores observam que era “impossível estabelecer uma correspondência, mesmo de forma muito global, entre o conjunto inglês action/agency/agente, o conjunto francês ação/agir/ator (e também o conjunto alemão Handlung/Wirkung/Kraft)” [Idem, ibidem, p. 31]. Os usos clássicos desse termo, em Hobbes e Hume, os modernos, em Davidson, e o corrente (Anscombe, Geach, Kenny), que recorre ao conceito de intenção para “definir a agency em termos estruturais, pela intencionalidade” [Idem, ibidem, p. 29], mas também em Austin que, ao contrário, “como Wittgenstein em seus escritos sobre a filosofia da psicologia”, exclui “a solução fácil demais que consistiria em definir a ação e […] com mais forte razão ainda a agency (humana), pela presença de uma vontade metafísica ou subjetiva”, de um artista nos bastidores [Idem, ibidem, p. 31], tudo foi dito, e bem dito, no VEP sobre a agency, sua ambivalência, sua tradutibilidade e sua intradutibilidade. Contudo, o problema nietzschiano, aumentado por sua dupla sobretradução franco-inglesa, ainda não está resolvido: o que é que liga, em profundidade, ao mais profundo da história da filosofia, semântica da ação e filosofia da subjetividade? Sobre esse ponto, pode-se ficar tentado a responder observando que o primeiro uso filosófico do termo agency no século XVIII é “classicamente aristotélico”, que “opõe ação e paixão, agente e paciente”. Mas nada impõe nem explica aqui a intrusão do sujeito. O sentido é bem outro, sem dúvida, a se levar em conta [58] Balibar e Laugier, quando afirmam que, “graças ao trabalho de diferentes expressões na língua inglesa”, agency permite à época contemporânea “pensar o agir não mais como categoria oposta à paixão, mas como ‘disposição’ à ação”, disposição que “enfraquece a oposição ativo/passivo” [Cf. E. Balibar e S. Laugier, op. cit., p. 26]. Não há disposição sem sujeito disposto – essa é, como se verá, o cerne da crítica averroísta da teoria alexandrina do intelecto. Se a agência é uma disposição a agir, é preciso um sujeito do qual ela seja a disposição. Mas não seria isso um jogo com a palavra “disposição”? Ou melhor: haveria ali uma noção arqueologicamente precisa? Pode-se duvidar. No fim das contas, não é esse o problema.
Nossa tarefa não é determinar quando o inglês subjecthood encontrou agency, supondo-se que jamais tenha encontrado; mas sim explicar o que, bem antes do século xvm inglês, instituiu os “conjuntos” inglês, francês e alemão, que, como nos dizem os autores do vep, não poderiam ser colocados “em correspondência”, mas que mesmo assim — e a própria tradução do texto de Nietzsche é prova disso – os filósofos insistem em sobrepô-los. Em termos arqueológicos, isso equivale prima facie a traçar os teoremas ou os princípios de que se tirou a premissa:
m: toda ação supõe um sujeito que a realiza
no silogismo gramatical nietzschiano [Em outras palavras: o traçado dos princípios, axiomas ou teoremas é necessário porque, como afirma Foucault, em L’Archéologie du savoir, p. 96, os conceitos não são “de modo nenhum formados diretamente sobre a base aproximativa, confusa e viva das ideias, mas a partir de formas de coexistência entre os enunciados”.]. Esse traçado implica, por sua vez, descobrir as redes em que se formulam as noções [59] de sujeito e de agente que intervém direta ou indiretamente, de uma forma original ou modificada, em tais teoremas.