ἀδικία: injustiça injustificada
O que desvirtua no homem a possibilidade que lhe assiste é, por exemplo, a injustiça injustificada (ἀδικία) [É nesta conexão que se toma em consideração os seguintes exemplos. Os cavalos e os cães, quando sujeitos a maus tratos, tomam-se piores (República, 335b6), a respeito da sua excelência (ibid.). E assim também os homens. Quando estes são maltratados, tornam-se piores, em vista da excelência humana (Rep., 335c). Tomam-se, necessariamente, mais injustos (Rep., 335c7). Estes exemplos tomados em consideração têm em vista a excelência do vivente. Em causa está a possibilidade de em determinadas circunstâncias e situações um determinado ente desvirtuar todas as suas possibilidades, de se tornar pior, de regredir, de se fechar, de se impossibilitar. Para uma análise do sentido de βλάπτειν [blaptein] e da sua equivocidade, cf. Andrew Jeffrey, «Polemarchus and Socrates on Justice and Harm», Phron., XXIV, 1979, pp. 54-69. A βλάβη [blabe] a estudar é a que destrói a οἰκεῖα ἀρετή [oikeia arete] do humano (cf. pp. 55 e 58-61).]. Ao tornar-se injusto e [34] ao agir de uma forma injustificada (ἄδικος [adikos]), o homem torna-se mais perverso (χείρων [cheiron]) [É estranho que o ser ativamente injusto, o perpetrar, e não o sofrer passivamente a injustiça tem o sentido de βλαπτόμενος [blaptomenos]. Aparentemente, faz mais sentido que quem sofre a injustiça ou passa por um ato injustificado é que é quem fica prejudicado ou lesado na sua intimidade.]. O pior que nos pode acontecer é perpetrar a injustiça (ἀδικεῖν [adikein]). Ao cometê-la, pode acontecer-nos ficarmos lesados e impossibilitados de desenvolvermos com plenos poderes todas as possibilidades que de antemão nos estão concedidas. A injustiça e toda a ação injustificada podem confiscar a possibilidade de viver a vida tranquilamente. A quem incorre na realização de atos injustificados pode acontecer ficar lesado na sua possibilidade mais autêntica. Mas ao compreender o sentido de uma ação perpetrada como tendo sido injusta, realiza-se de algum modo uma possibilidade de excelência (ἀρετή [arete]), uma possibilidade de tematizar e de pôr a descoberto a verdade e o sentido de um determinado acontecimento que poderia permanecer para sempre no seu silenciamento. [CaeiroArete:34-35]
O modo como a injustiça (ἀδικία) faz surtir o seu efeito é idêntico ao de uma doença que afeta o corpo mas que não o destrói. Pela sua presença, não causa imediatamente a morte ao homem sobre o qual incide a sua ação [República, 609c]. Não se morre de injustiça, nem em geral da presença em nós daquilo que impossibilita e desvirtua a vida humana (ψυχή) [Para responder a estas questões, Platão começa por ver o que não a destrói. Ο ἀπόλλυσθαι [apollysthai] da ψυχή [psyche] não se dá com a febre (Rep., 610b1), nem com nenhuma outra doença (Rep., 610b2), nem pela destruição física do corpo humano, por exemplo, pelo corte da garganta (ibid.), nem mesmo se alguém cortasse todo o corpo em pedaços pequeníssimos. Tudo isto são afetações do corpo (Rep., 610b5). Ora, só no caso de se provar que este tipo de afetações torna a alma mais injusta e mais impiedosa é que podíamos admitir que são elas que constituem a οἰκεῖα κακία [oikeia kakia] ou ο ἔμφυτον κακόν [emphyton kakon] da ψυχή. Mas tal não parece ser o caso.]. [44] A presença da perversão (κακία) na existência humana não destrói o corpo [Rep., 610b-c. Andrew Barker, «Why did Socrates refuse to escape», Phron., XXII, 1977, pp. 13-28: «The man is harmed only if his human ἀρετή is impaired, where his ἀρετή is the characteristic in virtue of which he is enabled to do well what a man does» (p. 25).]. Se fosse esse o caso, se a injustiça (ἀδικία) fosse mortal [Rep., 610d6], não seria de todo em todo terrível [Rep., 610d5]. A morte seria, na verdade, como a livração dos males [Rep., 610d6]. Acontece, porém, que pela presença da injustiça (ἀδικία) na lucidez humana (ψυχή), aquele que a sofre é que fica «cheio de vida» [Rep., 610e2] e sem poder dormir [Rep., 610e3]. O mal da vida humana (ψυχή) não a destrói nem a erradica da existência. Antes, a forma específica do seu impedimento compreende-se pela alteração convulsiva no modo como habitualmente existe [O resultado desta argumentação serve para Platão inferir a imortalidade da alma. A alma é imortal neste sentido. Se a forma específica sua de impedimento não a mata nem a destrói, como acontece para os restantes entes analisados, não há nada portanto que a possa destruir (Rep., 610e7).].
Temos de considerar a forma de impedimento e de dificuldade específica da lucidez humana (ψυχή), sem ser ultrajada pela sua comunhão com o corpo ou com outros males [Rep., 611 c1], a forma como habitualmente a consideramos [Rep., 611c2] e dilucidá-la através do sentido compreensivo (λόγος [logos]) [Rep., 611c3]. Os limites perversão-excelência (κακία-ἀρετή) no seio dos quais é possível ter em vista a lucidez humana (ψυχή) ultrapassam as meras oposições vida-morte, funcionalidade-disfuncionalidade, saúde-doença, ou o modo como qualquer ente experimenta a sua forma específica de deformação. [CaeiroArete:43-44]