Este enunciado não é uma frase de efeito, nem uma maneira de dizer, mas a fórmula mais concisa da metafísica orteguiana. Em bom português: a síntese de sua nova visão da realidade. Ortega distingue entre a realidade radical e as realidades radicadas. A realidade radical é a vida humana (em sentido biográfico, não biológico); não “in genere”, mas individualizada. A realidade radical é a minha vida, a tua, a dele. Isto não significa que a vida humana é a única realidade, ou a mais importante; significa, simplesmente, que é a realidade que serve de raiz para todas as demais, ou seja, para as realidades radicadas. A vida humana é o âmbito no qual aparece tudo o que eu encontro; inclusive a realidade suprema, Deus mesmo, “anuncia-se no âmbito estremecido de nossa própria vida”. A vida humana, minha vida, em primeira descrição, é “o que eu faço e o que me acontece”. Ora, o que me acontece é estar permanentemente às voltas com determinada circunstância, com a qual tenho que fazer algo para viver. Por isso, eu sou eu e minha circunstância. Não se trata de uma teoria a mais, e sim de simples constatação, verificada, precisamente, quando ponho de lado todas as teorias. Como sou obrigado a fazer algo com minha circunstância, ainda que na modalidade do não fazer, minha vida é quefazer. Eu e minha circunstância — explica J. Marias — não constituem dois elementos separáveis entre si, que se encontram juntos por acaso, pois a realidade radical, o que eu chamo de minha vida, é este quefazer do eu com as coisas. Eu e minha circunstância são dois termos inseparáveis na coexistência dinâmica que constitui a minha vida. Viver é coexistir com o outro que não eu mesmo, a circunstância, ou mundo. Eis aí, num só golpe, duas superações: do realismo (que ensina a prioridade das coisas em relação ao eu); e do idealismo (que ensina a prioridade (33) do eu sobre as coisas). Eu e as coisas, eu e o mundo, eu e minha circunstância somos absolutamente inseparáveis um do outro, conforme verifico executivamente em minha vida, na qual não se dá o eu separado das coisas, nem estas, separadas daquele. Não há prioridade de nenhum deles em relação ao outro, nem absorção de um pelo outro. Eu e minha circunstância — diz Ortega — são como aquelas divindades gêmeas das mitologias mediterrâneas, que nascem e morrem juntas, os dii consentes, Cástor e Pólux.
Minha circunstância está sempre definida por uma perspectiva; porque eu vivo a circunstância a partir de meu ponto de vista, ou de minha perspectiva. A realidade só se me constitui nos limites de certa perspectiva, o que significa que “a perspectiva é um dos componentes da realidade. Longe de ser sua deformação, é sua organização”. O ser definitivo do mundo — escreve Ortega — não é matéria, nem alma, não é coisa alguma determinada, e sim uma perspectiva. Relativismo? De forma alguma. A perspectiva não é um fragmento discutível da realidade, mas a realidade inteira, a qual aparece, forçosamente, a partir de um ponto de vista.
“Em suma: a reabsorção da circunstância é o destino concreto do homem”. Ao reabsorver a circunstância, eu a converto em criação minha, livrando-me do seu jugo. Nesta reabsorção consiste a vida humana como quefazer. A vida nos é dada, mas não nos é dada feita. Tenho que decidir a cada instante o que vou ser, optando entre as possibilidades que encontro, e como só eu, e mais ninguém, posso decidir qual minha opção, sou forçosamente livre. E como tenho que justificar-me por assumir esta ou aquela decisão, a vida humana é intrinsecamente moral. Para decidir o que vou ser, tenho que me constituir, previamente, num programa, numa figura de vida determinada, ou seja, num projeto vital. Não se trata de querer ou não querer adotar um projeto vital. Bem ou mal, todos nós o possuímos. E como no projeto vital vou eu mesmo, cabe afirmar que eu sou, essencialmente, projeto. Circunstância é tudo o que não sou eu (= projeto); a começar pelo meu corpo e minha alma.