Resumo de KINGSLEY, Peter. Reality. Inverness: The Golden Sufi Center, 2003, p. 69-72.
A tradução do fragmento 3 como “pois pensar e ser são um e o mesmo”, apresenta dificuldades. A começar por Parmênides, mais adiante no próprio poema, negar que pensar e ser sejam o mesmo. Ele explica em detalhe como um está relacionado com o outro — mas idênticos definitivamente não são.
Se tomarmos em consideração a expressão “existem para pensar” utilizada pela deusa no parágrafo II, nos defrontamos com algo surpreendente no original grego. Literalmente traduzido, a escolha particular de Parmênides por palavras significaria que estes são os únicos dois caminhos que “estão para o pensar”. E estas mesmas palavras ocorrem aqui no fragmento III, assim como continuarão aparecendo em outros pontos chaves do poema. Tomando a indicação do próprio Parmênides, podemos dizer que mantendo o significado da primeira ocorrência, aqui no parágrafo III teríamos então: “Pois o que existe para pensar, e ser, são um e o mesmo”.
O que existe para pensar é o que quer que se seja capaz de pensar sobre. Assim, em outras palavras, Parmênides está dizendo que algo que se possa pensar sobre, tem que existir para se pensar sobre. E graças à estranha lógica só encontrada nos domínios do sem-sentido, isto imediatamente faz perfeito sentido quando posto em paralelo com o que a deusa já tinha dito no parágrafo II.
Afirmar que pensar e ser são mesmo seria dizer algo sobre a existência do pensador. Mas levantar a questão do que existe para pensar é bem diferente: é dizer algo ao invés sobre a existência do que pode ser pensado, do que pode ser ponderado ou reconhecido ou considerado. E, como já sabemos, esta é a preocupação fundamental da deusa. Pois assim que introduz os dois caminhos de inquirição ela descarta o segundo imediatamente porque: “não há nenhum caminho que possas reconhecer que não é — não há nenhum viajar nesse caminho — ou dizer algo sobre ele”.
Não-existência é irreconhecível, não mencionável, impensável. O que quer que se pense sobre, deve existir simplesmente porque existe para se pensar sobre. E certamente isto é totalmente absurdo. Significa que unicórnios teriam que existir só porque se pode pensar sobre eles ou imaginar um. Mas se queremos compreender Parmênides então a pior coisa que podemos fazer é descartar o absurdo. Ao contrário, devemos guardá-lo tanto quanto possível.
Construímos um muro entre pensamento e realidade. Toda nossa vida medimos nossos pensamentos contra o que parece ser a realidade do mundo externo. Decidimos chamá-los inefetivos, sem propósito, imaginativos, não realísticos; ou apropriados, frutíferos, construtivos, realizáveis. Com Parmênides estas distinções são derrubadas.
Para ele qualquer pensamento é sobre algo que existe: é tão real, tão perfeito como parte da realidade, como qualquer outro. Seu critério de justeza jaz não em sua relação a algum mundo externo, objetivo, concreto, sólido — mas em sisi mesmo.
Todo pensamento é sua própria validação. Não necessita confirmação fora dele. O que quer que sejamos capazes de pensar é verdadeiro. O que deixa os “escolásticos” em pânico, buscando qualificar que tipos de pensamentos se enquadram na afirmação de Parmênides. Mas ele não está fazendo restrições a certos pensamentos naquilo que afirma: ele está se referindo a cada um e todos os pensamentos que acontecem se ter. Na fala da deusa não há distinção entre bons e maus pensamentos.
Aceitando a existência de todo e qualquer pensamento somos levados além do pensamento, a sua não importância, a indicação de que para deusa não há uma preocupação com os pensamentos. É um apontamento para que nos recolhamos sob o pensar e vejamos o que realmente são. É como se olhássemos centenas de cores, cada uma tentando te persuadir que acontece ser a mais importante — então com uma passo atrás as vemos formando um único arco-íris. Pensamentos em si levam sempre à divisão e à separação. Mas todos os pensamentos, juntos, são um único todo.
Somos nosso próprio inimigo. Tudo é um. E não há necessidade de se esforçar por nada porque o que quer que pensemos já existe: nada a completar, nada a temer. O pensar é o domínio de tudo que conhecemos, ou pensamos conhecer. E este fim à discriminação é o fim de toda sabedoria, o fim da filosofia — assim como seu início. É onde tudo que fazemos o tentamos fazer por nós mesmos se torna inútil.
É preciso lembrar em toda esta reflexão que o termo que Parmênides usa quando traz à atenção a questão do pensar, é a palavra grega noein, que tem uma miríade de nuances. Certamente o sentido de pensar, mas muito mais, referindo-se tanto ao ato de perceber como ao ato de pensar: à percepção intuitiva e direta assim como à percepção através de nossos sentidos. E além disso, descrevendo exatamente o que em nossos dias nos referiríamos como consciência ou presença. Assim o caminho que ele nos guia é o da aceitação: o que quer que se está consciente, “é”; o que quer que se percebe ou se nota, “é”; o que quer que se pense, “é”.
Mas tão importante quanto este endosso, esta total aceitação, é o fato que Parmênides está também dizendo algo mais quando formalmente identifica existência com o que existe para perceber e pensar. Não há nada que exista exceto o que pode ser pensado ou percebido. Em outras palavras, o mundo não é em absoluto o que pensamos que é; ou melhor é exatamente o que pensamos que é mas somente porque o pensamos. E o que quer que pensemos que não é, isso é o que ele é também.